A decisão do STF sobre o impeachment representa uma judicialização da política? Uma resposta a Luis Werneck Vianna – Por Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes Bahia, Diogo Bacha e Silva e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira

08/01/2016

Luiz Werneck Vianna, importante sociólogo, em texto recentemente publicado, defende que a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 378, ao definir os ritos a serem obedecidos pelo processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, representou uma verdade judicialização da política que, na sua visão, seria um caminho sem volta (a “travessia do Rubicão” pelo STF) em direção a um governo de juízes. Segundo alega, o Supremo Tribunal Federal desconsiderou o voto do relator Min. Edson Fachin e do Min. Dias Toffoli, dois que, de acordo com sua opinião, são ministros com posições convergentes com o governo atual, que clamavam pela autorrestrição do Supremo Tribunal Federal em favor de uma suposta soberania popular[1], representada ali pelo Congresso Nacional no exercício de prerrogativas que lhe seriam próprias, especialmente, no que se refere às chamadas “matérias interna corporis”.

De igual sorte, sustenta o renomado sociólogo que a decisão do Supremo Tribunal Federal teria contrariado até mesmo marcos teóricos importantes para o mundo do Direito, como o de Habermas e o de Dworkin, transformando-nos em um “pontificado laico” dos juízes, jamais uma República[2].

Interessa-nos, sobretudo, oferecer uma resposta[3] ao sociólogo no que diz respeito às suas críticas dirigidas contra a decisão do Supremo Tribunal Federal que estabeleceu parâmetros para o exercício do devido processo legal do impeachment. Aliás, remetemos, desde já, ao leitor aos nossos comentários feitos a essa decisão do Supremo Tribunal Federal[4].

Em primeiro lugar, deve-se ter bem clara essa questão: o Supremo Tribunal Federal, na decisão da ADPF 378, apenas recuperou a decisão proferida no Mandado de Segurança 21.564 (caso Collor) no ano de 1992 que, conforme já dissemos em outra oportunidade[5], determinou a incidência da garantia constitucional da ampla defesa ao processo de impeachment, estabelecendo a maneira de seu exercício, bem como a forma de votação a ser realizada pela Câmara dos Deputados, tudo em interpretação de normas constitucionais. É dizer, o Tribunal mostra uma linha de continuidade com precedentes anteriormente estabelecidos (além do MS citado há outros do caso Collor e outras decisões a respeito da lei 1079/1950 que mencionamos em trabalhos citados); tal linha faz jus às ideias de interpretação construtiva e integridade no Direito de que nos fala Dworkin (O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999)

Luis Werneck Vianna apresenta a afirmativa de que o Supremo Tribunal Federal realizou uma “judicialização da política”, sem apresentar de modo mais claro e explícito uma justificativa para embasar essas suas afirmações. Ora, sobressai daí que ou o autor pretende com que o leitor se esforce em um exercício de adivinhação ou, então, acredita mesmo que sua autoridade acadêmica é o suficiente para a declaração de uma suposta verdade.

A decisão proferida na ADPF 378 realmente representou uma judicialização da política? Aliás, o que ele entende ser judicialização da política? Será que o autor agora entende que há temas judicializáveis e temas essencialmente políticos? Há questões essencialmente políticas quando tratamos da autoridade da Constituição? Quantas vezes o Supremo Tribunal Federal já não afirmou que mesmo estando a matéria em regimento interno das casas legislativas estaria ela passível de sofrer “revisão judicial” se tratasse de temática diretamente constitucional – v.g., regularidade de processo legislativo? Estariam todas essas decisões equivocadas? Podem os “representantes do povo” dispor, a seu alvedrio, da Constituição? Voltaremos ao tempo no qual o poder (Legislativo ou Executivo) criam barreiras ao conhecimento do Judiciário sob o verniz de “doutrina das questões políticas”? Exemplos disso em eras anteriores na nossa história constitucional não faltam[6].

Mais uma vez o tema retoma a tensão entre constitucionalismo e democracia e o papel do Judiciário em ser garante do primeiro quando este for ameaçado pela segunda. Desde já, cabe dizer que adotados a posição, em diálogo com a Teoria Discursiva do Direito, segundo a qual o Estado Democrático de Direito não deve ser visto como a união paradoxal de princípios contraditórios, se compreendermos a Constituição democrática, na sua abertura para o futuro, como um processo de aprendizado social, de longo prazo, com o Direito e com a Política, sujeito a tropeços e retrocessos, todavia capaz de corrigir a si mesmo[7]. Numa perspectiva republicana não-comunitarista, o Direito é constitutivo da democracia, na medida em que os direitos fundamentais representam as próprias condições jurídicas de institucionalização da democracia. A ideia, portanto, de um Direito como mero instrumento limitador da política é liberal, pois tende a reduzir o fundamento do Direito à moral, assim como a tratar a política como poder-violência[8]; assim como a ideia de uma soberania popular não revestida do Direito pode soar como puro jacobinismo.

O que Luis Werneck Vianna parece sustentar é que o Supremo Tribunal Federal teria interferido em matéria interna corporis e, portanto, infringido, com isso, a soberania popular.

Ora, desde quando o processo de impeachment é matéria interna corporis? Desde quando garantir a constitucionalidade do processo de impeachment é infringir a soberania popular? Ao que consta, o processo de impedimento toca o núcleo do sistema presidencialista de governo adotado pela Constituição – à separação de poderes, “cláusula pétrea” –, ou seja, ao modo com que as deliberações estatais mais fundamentais devem ser constitucional e democraticamente formadas, e, portanto, não pode dizer respeito a uma ideia burguesa de soberania popular reduzida ao interesse corporativo de uma classe de políticos, como se queria crer quanto aos parlamentos burgueses no século XIX (que, aliás, nada tinham de populares, ideia que apenas apareceria com as chamadas “democracias de massa no século XX); mas sim essa é uma questão que diz democraticamente respeito, num nível institucional, aos direitos políticos da cidadania em geral, que, uma vez ultrapassado o paradigma liberal do Estado e do Direito, não pode estar à disposição do arbítrio de maiorias sempre conjunturais no Congresso, já que afetam o próprio núcleo do sistema constitucionalmente adotado de governo republicano-democrático – e, no ano que passou, pudemos experimentar, mais do que nunca, os perigos de maiorias eventuais no Congresso, manipulando Regimentos em “manobras” para violar a Constituição em temas como reforma política e imputabilidade penal. Pretender que um dos pontos mais importantes da Constituição e do sistema presidencialista de governo, o processo de impeachment de uma Presidente diretamente eleita pelo voto popular – ou seja, através também do exercício de soberania popular constitucionalmente estruturada –, seja tratado como matéria interna corporis é pretender restringir, pois, não apenas o alcance do instituto à vontade política de um número restrito de indivíduos, que supostamente poderiam dispor, a seu bel prazer, das garantias constitucionais do próprio processo deliberativo democrático, mas pressupor uma visão liberal conversadora da própria soberania popular.

Ademais, que posição liberal-conservadora de democracia seria esta que pretende deixar a questão acerca da regularidade do processo ao sabor das eventuais maiorias políticas no Congresso, sem cogitar do devido processo constitucional, no julgamento de uma Presidente da República, por um alegado crime de responsabilidade?

Indubitável que caberia fazer uma diferença mais clara entre ativismo judicial e a judicialização da política, tema[9] que o próprio autor trabalha, ainda que de forma criticável, já há bastante tempo[10]. Criticável porque essa indistinção entre uma coisa e outra no modo com que o autor trata do tema, leva a uma confusão, quando da sua utilização, em relação às decisões do STF. Todavia, no caso da ADPF 378, não houve nem ativismo judicial - construtivismo interpretativo para além do já assentado jurisprudencialmente pelo Tribunal; nem judicialização da política, a adoção de argumentos de políticas em lugar dos argumentos de princípios, para usar as expressões de Dworkin – (mal) referidas por Werneck Vianna, como se Dworkin fosse algum defensor de um Judiciário de cariz liberal dezenovista. Ao não considerar a diferença essencial entre argumentos de políticas e argumentos de princípio em seu texto, Werneck Vianna deixa de fora algo essencial para a proposta dworkiniana a respeito da integridade no direito, a diferença entre o Direito como Integridade e o Pragmatismo.[11]

O autor ainda faz uma referência de passagem, que nos parece meramente retórica, a Habermas e a Dworkin, procurando afirmar que as posições desses autores teriam sido desconsideradas pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 378. Ora, em qual medida teria a decisão na ADPF 378 violado a integridade, a coerência de princípios, defendida por Dworkin? De outro modo, a decisão teria mesmo violado o papel que deve ser reservado à jurisdição constitucional, segundo Habermas, na garantia da gênese democrática do direito? Muito pelo contrário, não.

A decisão na ADPF 378 foi coerente com princípios anteriormente reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal (e pelo Senado Federal), em 1992, na decisão do Mandado de Segurança 21.564 e, sob a perspectiva da integridade, garantiu, à sua melhor luz, princípios democráticos de nossa comunidade de membros livres e iguais, garantindo sejam aplicáveis o devido processo legal e a transparência na condução da coisa pública. Não que o Tribunal esteja preso ao passado, mas, como mostra Dworkin, a integridade exigiria daquele que assumisse um ônus argumentativo caso quisesse superar (overruling) o passado jurisprudencial. O que ele não pode é simplesmente desconsiderar tal passado.

Já quanto a Habermas, pode-se dizer que a decisão cumpriu o papel que seria esperado de uma Corte Constitucional, ao garantir a regularidade procedimental, buscando com que a vontade política possa ser gerada democraticamente.

Como dito acima, estamos dispostos a deixar a Constituição às variações de humor e interesses das Casas Legislativas? Mais uma vez ressoa a pergunta feita por Marshall ao construir o “judicial review” em Marbury v. Madison (1803):

“Ou a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável por meios comuns; ou se nivela com os atos de legislação usual, e, como estes, é reformável ao sabor da legislatura. Se a primeira proposição é verdadeira, então o ato legislativo, contrário à Constituição, não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são absurdos esforços do povo, por limitar um poder de sua natureza ilimitável”.

Mesmo um liberal como Ruy Barbosa, no seu tempo, quando da primeira construção do nosso edifício republicano, elogiava como uma das principais virtudes da Constituição Norte-Americana a competência reconhecida aos tribunais, para que mantenham a Constituição contra o excesso de poder por parte de quem faz as leis e de quem as executa, e afirmava: “Se os juízes brasileiros abdicarem essa autoridade, a Constituição republicana ruirá lamentavelmente num esboroamento irreparável, construção magnífica, que desaba em momentos, mal lhe retiraram os simples. É que lhe terá faltado o que não depende da ciência' do arquiteto: esse cimento que não se substituem, nem se cria, o elemento, humano, "a consciência jurídica e a energia moral”[12]. Mesmo Ruy Barbosa, acusado incorretamente de idealista por reacionários como Oliveira Vianna, já sabia que não se pode, sob o argumento das chamadas “questões políticas”, negar garantia judicial ao devido processo legal, como na sua batalha pelo balizamento constitucional do Estado de Sítio, sob pena de subversão da constitucionalidade e do regime republicano.

Enfim, caberia, quem sabe, indagar se Luis Werneck Vianna, ao assim criticar a decisão do STF na ADPF 378, não acabaria, na verdade, por de fato revelar uma posição política pró-impeachment da Presidente ou ao menos indiferente[13]. Para além de expressar uma visão liberal-conservadora: do modo com que a Constituição, numa democracia, articula direito e política – nesse sentido uma leitura da proposta do sociólogo Niklas Luhmann sobre a Constituição como acoplamento estrutural entre direito e política até seria bem útil –;[14] do papel da jurisdição constitucional na garantia das condições jurídicas para deliberações democraticamente legítimas, ao pretender sustentar que o STF estaria violando matéria interna corporis e criando um governo de juízes, ao garantir o devido processo constitucional de impeachment da Presidente da República; bem como ao não admitir que este instituto possa ser desvirtuado como instrumento de golpe.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-03/luiz-werneck-vianna-nao-limites-judicializacao-politica, acesso em 05 de Janeiro de 2016.

[2] Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-jan-03/luiz-werneck-vianna-nao-limites-judicializacao-politica, acesso em 05 de Janeiro de 2016.

[3] Lenio Streck também apresentou uma excelente resposta a Werneck Vianna em http://www.conjur.com.br/2016-jan-07/senso-incomum-rubicao-quatro-ovos-condor-ativismo. Entretanto, teríamos, de início, uma ressalva a essa resposta que, contudo, talvez seja apenas uma questão de ênfase. Como se verá, para nós, o problema é, sobretudo, o da “judicialização da política” – se a entendermos como o uso de “argumentos de políticas” pelo Judiciário –, do que o do ativismo judicial – desde que compreendamos este último, todavia, como interpretação construtiva do sentido principiológico dos direitos fundamentais (no sentido, p. ex, do art. 5.º, § 2º, da Constituição). De tal modo que não criticamos da mesma forma que Lenio Streck, como ativismo judicial “incorreto”, as decisões do STF em matéria de direitos fundamentais e igualdade. Com Dworkin, entendemos que, embora o ideal ou virtude política da integridade seja “por vezes descrito pelo clichê de que os casos semelhantes devem ser tratados de forma parecida” ou semelhante (Dworkin, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 201), a integridade no Direito exige algo mais profundo, ou seja, uma coerência de princípios (não simplesmente de regras), que não pode correr o risco de ser meramente interpretada de forma convencionalista, no horizonte histórico-efetual prevalecente de uma dada tradição interpretativa. A interpretação construtiva envolve uma terceira etapa, crítica, “pós-interpretativa ou reformuladora à qual ele [o intérprete] ajuste sua ideia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele [intérprete] aceita na etapa interpretativa” ou de primeiro ajuste a um conjunto de decisões passadas (Dworkin. O império do Direito, p. 82). Nesse sentido, “Os membros de uma sociedade de princípio admitem que seus direitos e deveres políticos não se esgotam nas decisões particulares tomadas por suas instituições políticas, mas dependem, em termos gerais, do sistema de princípios que essas decisões pressupõem e endossam” (Dworkin. O império do Direito, p. 255).

[4] BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. IMPEACHMENT: Apontamentos à decisão do STF na ADPF n. 378, disponível em: www.emporiododireito.com.br,acesso em 05 de Janeiro de 2016.

[5] BACHA E SILVA, Diogo, BAHIA, Alexandre, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. IMPEACHMENT: Apontamentos à decisão do STF na ADPF n. 378, disponível em:www.emporiododireito.com.br,acesso em 05 de Janeiro de 2016.

[6] Sobre isso, ver CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Processo Constitucional, 3ª Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016, p. 260-262.

[7] HABERMAS, Jürgen. Constitutional Democracy: a paradoxical union of contradictory principles? Political Theory, v. 29, n. 6, p. 766-781, dec. 2001. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização. Disponível em http://www.academia.edu/11943741/Democracia_sem_espera_e_processo_de_constitucionaliza%C3%A7%C3%A3o

[8] HABERMAS, Jürgen. Facticidad y Validez. Madrid: Trotta, 1998, p. 212-218.

[9] BACHA E SILVA, Diogo. Ativismo no controle de constitucionalidade: a transcendência dos motivos determinantes e a (i)legítima apropriação do discurso de justificação pelo Supremo Tribunal Federal. Belo Horizonte: Arraes editores, 2013. p. 148 e ss.

[10] VIANNA, Luiz Werneck; et. al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

[11] DWORKIN, Ronald. O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[12] BARBOSA, Ruy. Os actos inconstitucionais do Congresso e do Executivo ante a Justiça Federal. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. p. 248.

[13] O mesmo autor em entrevista dada ao jornal O Dia apresenta certa dubiedade em seu posicionamento. Veja que, ao ser indagado sobre a admissão do impeachment pela Presidência da Câmara dos Deputados, ele afirma que “Não é golpe. Impeachment está previsto na nossa Constituição. É algo perfeitamente assimilável pelas nossas instituições, elas estão maduras”. Em outro momento, diz que “Até agora não apareceu nada que efetivamente comprometa o mandato da Dilma. Tem o julgamento das contas no Tribunal de Contas da União (TCU), o julgamento no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por exemplo, mas até agora não tem nada”. Entrevista disponível em: http://odia.ig.com.br/noticia/brasil/2015-09-26/ate-agora-nada-compromete-dilma-diz-cientista-social-sobre-impeachment.html, acesso em 05 de Janeiro de 2016.

[14] SIMIONI, Rafael; BAHIA, Alexandre. Como os juízes decidem? Proximidades e divergências entre as teorias da decisão de Jürgen Habermas e Niklas Luhmann. Revista Sequência: estudos jurídicos e políticos, Vol. 30, Nº 59, 2009, p. 61-88. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/2177-7055.2009v30n59p61/13590.


 

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