A crise no sistema penitenciário brasileiro e a afronta a dignidade da pessoa humana

11/08/2016

Por Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino e Wagner dos Santos - 11/08/2016

Aumenta a cada dia o número de pessoas as quais praticam crimes. De acordo com a gravidade do ato, essas são encarceradas nos presídios, seja para esperar sua condenação ou por já terem sido condenados. O maior espanto é o descaso com a situação dessas pessoas na determinação dos locais de cumprimento da sanção, especialmente os que esperam por julgamento.

Com o reforço policial em operações, a maior demanda de prisões e a falta de estrutura planejada, tem-se a superlotação das penitenciárias e, por consequência, a falta de apoio aos presidiários e o devido amparo social destinado a esta instituição. Ademais, problemas na saúde, alimentação, convívio, são fatores essenciais para manter a condição de cidadãos e de seres humanos, entretanto, o que é visto expressa uma direta afronta à Dignidade de quem cumpre a sanção imposta por sentença judicial.

A partir da leitura do artigo 1º, III da Constituição Federal, a Dignidade da Pessoa Humana é um dos fundamentos os quais regem a União, primando pelo respeito máximo, assegurando o homem como um cidadão de direitos, lhe conferindo um caráter maior do que mero objeto ou ser humano, com o fim de garantir a sua integridade, tanto física quanto moral. Indubitavelmente, definir ou caracterizar a Dignidade da Pessoa Humana[1] é algo de extrema dificuldade, caso sendo feito, iria vir a limitar gravementeseu sentido e sua proteção jurídica.

A Dignidade da Pessoa Humana é algo intrinsecamente oriunda de cada humano. Quando entendida pela axiologia, percebe-se o seu caráter mutável na história para se evidenciar quais fatores, quais condições permitem a todos ter uma vida qualitativa. A dignitasencontra-se em permanente formação com o indivíduo, expressa pela dimensão da moral. É uma condição inalienável ou incapaz de ser perdida ou esquecida. A Dignidade confere àquele indivíduo o status de Pessoa Humana[2].

Além desses fatores, é necessário ressaltar que toda pessoa, ao ser reconhecida a partir de sua dignidade, compreende o sentido da responsabilidade não somente para si, mas, também, por meio do Outro. Ao se vislumbrar a extensão e o alcance do sentimento de Alteridade, cabe ao “Eu” enxergar a Dignidade presente no Outro, tolerando-o[3] e acolhendo-o na sua absoluta diferença. Além dessa atitude ser uma vida digna consigo, de respeitar ideais pessoais, estimula-se, ainda, a relação de proximidade, permanente, com o Outro, pois é ali que habita e se justifica a minha Dignidade.

Contudo, o que se pode constatar, atualmente, é um esquecimento sobre a importância do termo Dignidade[4], pois a marginalização de nossa Humanidade, ou, ainda, ter a Dignidade arrancada de nossas vidas, favorece o surgimento e manutenção da violência, já que o resgate desse atributo – de se ter novamente uma vida digna – ocorrerá do mesmo modo como foi expropriada do ser humano: pela violência. Esse cenário é absolutamente contrário aos princípios jurídicos e éticos do Estado Democrático de Direito a fim de se aperfeiçoar a organização social e propiciar uma paz mais duradoura.

O atual cenário do sistema penitenciário expressa, de modo nítido, o descaso com a Dignidade de cada indivíduo ali “depositado”. É notório a ocorrência de uma soma de fatores cujo contribuem para a decadência da pessoa na qual cumpre uma sanção judicial e a dificuldade na garantia e cumprimento da lei acerca da Dignidade. A entrada de objetos ilícitos e entorpecentes devido à falta de fiscalização, comprometimento e investimento sinalizam, na prática, a obliteração daqueles princípios jurídicos e éticos fundadores do Estado Democrático de Direito.

No entanto, o problema mais alarmante e notório no sistema carcerário é a superlotação dos estabelecimentos prisionais. Interagir e garantir direitos num ambiente com cerca do dobro da capacidade de detentos[5], torna-se ilusório achar que aqui se terá – ou se estimulará - respeito, integridade e comprometimento com direitos e deveres.

Pode-se constatar também o descaso com atendimento médico e psicológico ao apenado, principalmente quando tratado das mulheres no cárcere, sem o devido amparo principalmente quando são gestantes. Falta de saneamento básico e infraestrutura ou alimentação adequada são ocasiões as quais contribuem para que o indivíduo deixe de se sentir como parte daquela sociedade e se reconheça como um intruso passando a agir a margem desta ou nos piores casos fora desta. Esta soma de problemáticas causam um espanto, um sentimento de esquecimento por parte detodos, atingindo diretamente ao ser, no qual, mesmo por sua vontade, não conseguirá ser ver como membro deste grupo.

Privar o indivíduo não somente de sua liberdade, mas, ainda, do mínimo necessário para sua existência e manutenção de sua Dignidade é propriamente traçar o destino deste cidadão para voltar a sua vida de crimes. Não apenas problemas estruturais, como, também, problemas sociais, afetam diretamente essas pessoas. A falta de afeto familiar e o etiquetamento[6] como criminoso, perseguem este cidadão por toda a sua vida, dificultando a escolha ou o prosseguimento por um caminho alternativo.

Em alguns momentos, o descaso e a falta de comprometimento da sociedade com as penitenciárias, vem a contribuir com um ambiente desumano com o Outro, mesmo tendo cometido crimes. Muitas vezes, a sociedade utiliza ideologias para disseminar o ódio e o sofrimento a estes cidadãos, auxiliando na formação de uma visão de que o apenado jamais deve voltar ao convívio social.

A contribuição dessas atitudes ideológicas de sofrimento ao detento para “pagar o seu crime”, pode até mesmo ser ligado ao fato de que o Homem não consegue se ver diante de uma ação imoral e até provocar um sofrimento à sociedade em volta, “[...] no fundo, o desejo de ver castigado o culpado ‘parte de uma bondade natural’. Pode ser explicado, sobretudo, pela impossibilidade em que se vê o homem de permanecer inativo ou indiferente diante de um mal qualquer[7]”.

Ao se compreender a importância e sentido da Dignidade da Pessoa Humana inserido num contexto social, visa-se o bem-estar de indivíduos e grupos para se estabelecer condições viáveis de igualdade que se encontra escassa nas penitenciárias e na sociedade. A partir do momento no qual a dignidade física e moral do detento for violentada e/ou ameaçada, de não existirem formas de amparo familiar ou social, nega-se o preceito de igualdade perante os homens. O resultado deste choque é o apenado buscar, novamente, apoio nas atitudes criminais.

Os problemas atribuídos à falta de dignidade e o respeito desta ao indivíduo se contrapõem aos preceitos estabelecidos nos artigos 1º, III e 5º, XLIX da Constituição Federal. As dificuldades de cumprimento dessas prescrições legais são inúmeros: falta de reconhecimento como cidadão, julgamentos sociais e etiquetamentos, condições desumanas de vivência, ausência de igualdade para com a Sociedade, abandono e carência de afeto familiar, dívidas com o crime, entre outros fatores.

Esses são os principais motivos para a contribuição da completa destruição da Dignidade da Pessoa Humana para quem vive a realidade dos sistemas penitenciários brasileiros. Não é possível que, de um lado, a sociedade e, de outro, o Estado sejam promotores das misérias humanas[8].

O dever de reverter este quadro crítico do sistema carcerário não ocorrerá de forma simples ou imediata, mas, sim, com o apoio Estatal e social, investimentos no próprio sistema, tanto jurídico quanto carcerário, mas principalmente no quesito Educação. Educar não somente no sentido alfabetizar, mas de oportunizar acesso ao conhecimento a fim dessa pessoa poder decidir e escolher o que é melhor para a sua vida. Educar como libertar[9] sua alma e seu saber, dar a liberdade e a possibilidade de que estes cidadãos possam ter uma escolha em suas vidas.

Somente a partir dessas condições, os danos sociais e institucionais poderão ser revertidos. A reforma e investimentos nas penitenciárias poderão criar situações que favoreçam um ambiente mais sadio e que também propicie o respeito à integridade de todos. O cumprimento deste direito representa o cuidado necessário a este fundamento essencial ao Homem o qual é a sua Dignidade.


Notas e Referências:

[1] “A dignitas é um atributo que se confere ao indivíduo desde fora e desde dentro. A dignidade tem a ver com o que se confere ao outro (experiência desde fora), bem como com o que se confere a si mesmo (experiência desde dentro). A primeira tem a ver com o que se faz, o que se confere, o que se oferta [...] para que a pessoa seja dignificada. A segunda tem a ver com o que se percebe como sendo a dignidade pessoal, com uma certa auto-aceitação ou valorização-de-si, com um desejo de expansão de si, para que as potencialidades de sua personalidade despontem, floresçam, emergindo em direção à superfície. Mas, independentemente do conceito de dignidade própria que cada um possua (dignidade desde dentro), todo indivíduo é, germinalmente, dela merecedor, bem como agente qualificado para demandá-lo do Estado e do outro (dignidade desde fora), pelo simples fato de ser pessoa, independente de condicionamentos sociais, políticos, étnicos, raciais etc. [...] Só há dignidade, portanto, quando a própria condição humana é entendida, compreendida e respeitada, em suas diversas dimensões, o que impõe, necessariamente, a expansão da consciência ética como pratica diuturna de respeito à pessoa humana”. BITTAR, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade: e reflexões frankfurtianas. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 301/302.

[2]“A Dignidade da Pessoa Humana somente atinge seus objetivos, inclusive os de resgate sobre a categoria Pessoa mencionada no início desta pesquisa, quando os Direitos Fundamentais estão em sintonia com os movimentos culturais nos quais oferecem a cada pessoa um sentido singular sobre o existir. É nesse espaço da existência no qual se encontram as qualidades que, conforme Sarlet[2], são metas de preocupação constante da humanidade, do Estado e do Direito. A elaboração dos Direitos Fundamentais, a partir de uma identificação coletiva solícita, confere à Dignidade da Pessoa Humana seu status de zelo e responsabilidade por todos que compartilham o significado do con-viver”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; PELLENZ, Mayara; BASTIANI, Ana Cristina Bacega de. Guttacavat lapidem: reflexões axiológicas e práticas sobre Direitos Humanos e Dignidade da Pessoa Humana. Erechim, (RS): Deviant, 2016, p. 81.

[3]“A Tolerância, [...], deseja fundamentar as ações humanas por meio da Ética, tornando-as espontâneas, ou seja, deseja-se sentir a utopia da alteridade e não apenas suportá-la como expressa o dever-ser da Modernidade. Entretanto, as pessoas, em sua vida cotidiana, ainda não concordam com determinadas mudanças, impedindo-as de conhecer quem é o outro. Sem se saber quem é esse desconhecido do dia-a-dia, promove-se o egoísmo, a individualidade exacerbada, a exclusão, a irracionalidade, enfim, a perda de sentido na vida. A intolerância e o fanatismo, [...], exerceram suas ações nos campos da Política e do Direito, criando atitudes e regras a partir de métodos por vezes perversos ou amorfos que coibissem as práticas de liberdade, fraternidade, solidariedade e generosidade. Esses momentos lúgubres são execrados pela História, embora seja necessário reconhecer que por meio da prevalência das trevas sobre a luz, da ignorância sobre o saber em determinadas épocas da caminhada humana, soube-se oferecer valor à singularidade da diferença e o papel que exerce no contemplar a Vida como prisma multifacetado de ambientes, cores, sons, movimentos. Tem-se, nesse pensamento, o primeiro aprendizado sobre ser tolerante”. AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de. Raízes do direito na pós-modernidade. Itajaí, (SC): UNIVALI, 2016, p. 149.

[4] “[...] onde não houver respeito pela vida e pela integridade do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde a intimidade e identidade do indivíduo forem objeto de ingerências indevidas, onde sua igualdade relativamente frente aos demais não for garantida, bem como onde não houver limitação do poder, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana, e esta não passará de mero objeto de arbítrio e injustiças. A concepção do homem-objeto, [...], constitui justamente a antítese da noção de dignidade da pessoa humana”. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. 3. tir. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 104.

[5] Segundo pesquisa elaborada pela CNJ, em 2014 a população carcerária do Brasil chegou a 200% de sua capacidade, cerca de 563.526 pessoas presas no sistema carcerário e 711.463 encarceradas e em prisão domiciliar. Informações obtidas de: Novo diagnóstico de pessoas presas no Brasil. CNJ. Brasília, DF. 2014 Disponível em: http://www.cnj.jus.br/images/imprensa/pessoas_presas_no_brasil_final.pdf Acesso em: 05 Ago. 2016

[6]“O chamado second code, conjunto de regras de interpretação e aplicação das leis penais baseado em preconceitos e estereótipos, determina a seleção de indivíduos, sua condenação e submissão ao cárcere, local onde será despojado de seus valores e acreditará ser aquilo que lhe foi rotulado: um criminoso.

A sociedade, por sua vez, tomada pela crescente insegurança das relações, vê naquele cidadão egresso seu inimigo. Nega-lhe direitos, possibilidades, emprego, atenção. As oportunidades de vida digna são consideravelmente diminuídas para aquele que possui antecedentes criminais, restando-lhe, por vezes, como único meio de vida, o crime.” SILVA, Suzane Cristina da. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. IBCCRIM Revista nº16 maio – agosto 2014. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/201-Artigos Acesso em: 10 Ago. 2016

[7] GUYAU, Jean-Marie. Crítica da idéia de sanção. Tradução de: Regina Schöpke e Mauro Baladi. São Paulo. Martins, 2007, p. 48.

[8] “A longa permanência do acusado em instituições totais (como as prisões e manicômios) fará com que este sofra um processo de desculturamento, rebaixamentos e humilhações. A pessoa perde sua identidade, de modo que não mais se concebe como antes era, é despojado de seus pertences e valores, o que a leva a carregar uma nova persona.” SILVA, Suzane Cristina da. Reincidência e maus antecedentes: crítica a partir da teoria do labelling approach. IBCCRIM Revista nº16 maio – agosto 2014. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/201-Artigos Acesso em: 10 Ago. 2016

[9]“A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência espacializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciência intencionada ao mundo. Não pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo”. FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 46. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 77.


Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino.

Sérgio Ricardo Fernandes de Aquino é Mestre e Doutor em Direito pela Universidade do Vale do    Itajaí, Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) – Mestrado – do  Complexo de Ensino Superior Meridional – IMED.

E-mail: sergiorfaquino@gmail.com..


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Wagner dos Santos é Graduando no Curso de Direito da Faculdade IMED do 4º semestre. Membro do grupo de pesquisa Ética, Cidadania e Sustentabilidade.

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Imagem Ilustrativa do Post: GO FREEDOM // Foto de: Jônatas Cunha // Sem alterações.

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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