A continuidade  

09/06/2019

No artigo “O problema filosófico do átomo” (https://emporiododireito.com.br/leitura/o-problema-filosofico-do-atomo) foi exposta a problemática do atomismo e de sua visão de mundo, que entende não haver uma ordem de mundo anterior à existência material decorrente da agregação de partículas atômicas.

Como foi destacado, para os atomistas:

“A ordem (o cosmo) é efeito de encontro mecânico entre os átomos, não projetado e não produzido por uma inteligência. A própria inteligência segue-se ao e não precede o composto atômico” (Giovanni Reale e Dario Antiseri. História da filosofia: Filosofia pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 46).

Contudo, a ciência moderna aponta para uma inteligência anterior ao composto atômico, que já valia antes da formação dos primeiros átomos e da própria matéria, quando o universo era formado por uma energia tendente ao infinito, segundo o modelo do Big Bang.

“O cenário desenvolvido por Gamow começa com o Universo cheio de prótons, nêutrons e elétrons. Esse ‘componente material’ do Universo foi chamado de ylem por Alpher. Fora seu componente material, o Universo era banhado por fótons altamente energéticos, o ‘calor’ do Universo primordial. O Universo era tão quente nesse estágio inicial que nenhuma ligação entre seus constituintes era possível” (Marcelo Gleiser. A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 366).

É de se notar que o ‘componente material’ está destacado na passagem acima porque a matéria tal como a conhecemos ainda não havia se formado naquela época primordial, na medida em que apenas “quando o Universo tinha em torno de 300 mil anos de idade, as condições tornaram-se propícias para que elétrons e prótons formassem átomos de hidrogênio” (Idem, p. 369).

A física indica, assim, que, ao contrário do que sustentavam os atomistas, precursores dos materialistas modernos, há, sim, uma ordem ou inteligência que precede o composto atômico. O mundo material é regido por uma ordem ou inteligência que transcende a existência da própria matéria conhecida, sendo as chamadas matéria escura e energia escura apenas um sintoma dessa situação.

Para sair dessa encruzilhada filosófica, os atomistas modernos, que são os materialistas, passaram a defender a hipótese não comprovável, que, portanto, é fruto da mais pura especulação, e que se transformou em um mito moderno, na acepção deletéria da palavra mito, de que existem tantos universo quantas forem possíveis as combinações das leis da natureza. Nessa linha de pensamento: “Os resultados descritos neste capítulo indicam que nosso universo é também um entre muitos, e que suas leis aparentes não são determinadas de modo único” (Stephen Hawking e Leonard Mlodinow. O grande projeto: novas respostas para as questões definitivas da vida. Tradução Mônica Gaglioti Fortunato Friaça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p. 105).

O fato de as leis da natureza serem fixadas de modo único significa a compatibilidade racional entre a Ciência e o Monoteísmo, o que é evitado de todo modo possível pelo materialismo, pelo que essa filosofia não teve alternativa senão remeter o acaso para antes da criação ou formação do universo, tentando fazer crer, mais uma vez, que a inteligência é posterior à organização material ou universal, e não anterior. Assim, ao invés de aceitar que a inteligência precede o composto atômico, o que é a conclusão óbvia dos dados científicos, mas que indica o quão especial é o universo, o materialismo tenta desmerecer o nosso mundo, criando infinitos universos imaginários, apenas para defender uma pretensa insignificância cósmica da vida humana e rejeitar, injustificadamente, a cosmovisão monoteísta.

O ateísmo/materialismo não aceita a dependência de uma ordem de continuidade que lhe seja superior, nega uma inteligência que esteja acima do plano material. O materialismo quer nascer do acaso, da sorte, para ser livre de Deus, porque a existência de uma unidade cósmica anterior à matéria aponta para a continuidade entre essa inteligência e tudo o que existe, remete à dependência de uma origem, para tudo, aponta para uma criação, e para Deus.

Quando respondem à pergunta sobre a origem da vida, do universo, sobre o que é a natureza, os materialistas não conseguem explicar a continuidade existencial, a impressionante interdependência dos fenômenos do mundo, sendo o acaso o argumento para romper com a cadeia do ser, para que o ser não seja ser, mas apenas um estar fortuito, ainda que pelo subterfúgio mental da criação de universos que estão além da comprovação científica. Deus, que está fora dos limites da comprovação científica atual, para os materialistas, deve, absolutamente, ser excluído da teoria científica; mas o multiverso, que está na mesma situação epistemológica citada para Deus, além dos limites da comprovação científica, o multiverso é aceito em simpósios acadêmicos com toda naturalidade.

O multiverso significa a existência de universos submetidos a leis próprias, sem que haja uma unidade existencial absoluta, relacionada ao pleno conceito de ser.

O ser condiciona o estar. Não havendo ser, aquilo que está não tem responsabilidade essencial, perante o ser. O mero estar, que é a opção materialista, libera, liberta, a responsabilidade pela permanência, pela unidade e racionalidade do ser. Ao optar pelo estar como condição humana essencial, o homem é transformado em deus, em causa de si mesmo, numa pretensa autonomia, que, de fato, é artificial e arbitrária, porque isola a pessoa do mundo do qual faz parte, e tira a responsabilidade de cada um pela manutenção da unidade existencial, da ordem cósmica. A unilateralidade do estar, vinculada apenas à imanência provisória do ente, que deixará de estar, é falsa, porque todos os entes estão dentro da cadeia do ser e possuem origem transcendente, como exposto no artigo “Transcendência imanente” (https://emporiododireito.com.br/leitura/transcendencia-imanente-por-thiago-brega-de-assis).

A continuidade, a permanência de algo, é uma questão profunda, que abarca tanto a filosofia como a física moderna.

“Planck estava certo. A teoria quântica que ele ajudou a desenvolver provou ser uma revisão ainda mais profunda da ‘velha’ física do que a teoria da relatividade especial de Einstein. A física clássica é baseada em processos contínuos, como, por exemplo, planetas orbitando em torno do Sol, ou ondas propagando-se na água. A nossa percepção do mundo é baseada em fenômenos que evoluem continuamente no espaço e no tempo. O mundo submicroscópico, no entanto, é muito diferente: um mundo de processos descontínuos, um mundo que exibe comportamentos que contrariam frontalmente nosso amado bom-senso. Somos protegidos dessa realidade ‘chocante’ pela nossa própria cegueira sensorial; do mesmo modo que não percebemos as consequências da relatividade porque as velocidades de nosso dia a dia são muito mais baixas do que a velocidade da luz, as energias que ditam o comportamento de fenômenos acessíveis à nossa percepção sensorial contêm um número tão gigantesco de quanta de energia (pacotes de energia) que seu caráter ‘granular’ é perfeitamente desprezível. É como se vivêssemos num mundo de bilionários, onde um centavo é uma quantia desprezível de dinheiro. No mundo do muito pequeno, porém, o quantum é soberano absoluto” (Marcelo Gleiser. A dança do universo: dos mitos de criação ao Big Bang. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 273).

A continuidade é o grande mistério da ciência, notadamente da orgânica quântica, porque, apesar dos processos descontínuos que estão na base da realidade física, apenas a pressuposição da continuidade permite o desenvolvimento científico, apenas a pressuposição de uma inteligência permanente e constante possibilita que os eventos do mundo sejam conectados racionalmente, o que é o objetivo da empreitada científica.

Cada pessoa que nasce não é fruto do acaso, é filho de seus pais, que tiveram ancestrais, até o início da vida, que teve uma causa, assim como o início de tudo. Interromper a cadeia causal e racional do ser, pela aleatoriedade, em qualquer ponto da existência, é interromper a própria razão de ser, é promover o caos, a morte, o não ser, é renunciar, enfim, ao que é mais próprio da Ciência.

Logicamente, portanto, a Ciência é dependente de uma inteligência que precede a existência, a Ciência é dependente do Logos, que estava no princípio, e por meio do qual todas as coisas foram feitas...

 

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