O problema filosófico do átomo  

26/05/2019

 

A filosofia, em sua gênese, está intimamente ligada à física, ao fundamento mais básico da realidade. Nesse sentido, os pré-socráticos buscaram a explicação racional do mundo nos elementos água, ar, fogo e terra, especulando, ainda, sobre a existência do éter. Seguindo esse caminho, foi levantada a hipótese do átomo, que é a base da filosofia materialista. Como exposto no artigo “Tudo em todos” (https://emporiododireito.com.br/leitura/tudo-em-todos):

“‘Tales de Mileto (fim do VII – primeira metade do séc. VI a.C.) é o criador, do ponto de vista conceitual (mesmo que não ainda do ponto de vista lexical), do problema concernente ao 'princípio' (arché), ou seja, a origem de todas as coisas. O 'princípio' é, propriamente, aquilo de que derivam e em que se resolvem todas as coisas, e aquilo que permanece imutável mesmo nas várias formas que pouco a pouco assume. Tales identificou o princípio com a água, pois constatou que o elemento líquido está presente em todo lugar em que há vida, e onde não existe água não existe vida’ (Giovanni Reale e Dario Antiseri. História da filosofia: Filosofia pagã antiga. Trad. Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 17).

Em decorrência da adoção de um primeiro elemento ou princípio, a ele são associados os fenômenos, explicando-se o mundo em movimento no qual vivemos. A escolha do primeiro princípio tem um caráter religioso, segundo a etimologia da palavra, porque nele são ligadas racionalmente todas as coisas. Com essa eleição, tudo se liga, e tem-se daí o princípio racional da religião, que inclui uma atividade de manutenção dessa unidade principiológica.

Pode-se dizer que o atual materialismo decorre do princípio atomista, seguindo as ideias iniciais de Leucipo e Demócrito, os quais afirmaram que a realidade é formada de infinitos corpos invisíveis, por sua pequenez e pequeno volume, corpos esses indivisíveis, os ‘átomos’, palavra de origem grega que significa ‘o não divisível’.

‘Os atomistas passaram para a história como aqueles que puseram o mundo 'ao sabor do acaso'. Mas isso não quer dizer que eles não atribuem causas ao nascer do mundo (causas que, de fato, são as já explicadas), e sim que não estabeleceram uma causa inteligente, uma causa final. A ordem (o cosmo) é efeito de encontro mecânico entre os átomos, não projetado e não produzido por uma inteligência. A própria inteligência segue-se ao e não precede o composto atômico’ (Obra citada, p. 46).

Em sentido contrário, Platão sustentou a existência de um princípio supremo Uno, ao qual ele associou a ideia de Bem, afirmando uma realidade suprassensível, além das aparências sensíveis das coisas. Para Platão, a verdadeira realidade está no mundo das ideias ou essências das coisas. ‘Deste modo, o mundo sensível aparece como cópia do mundo inteligível. O mundo inteligível é eterno, enquanto o sensível existe no tempo, que é imagem móvel do eterno’ (Idem, p. 137).”

Contudo, a ciência do século XX indicou que a proposta atômica, da existência do átomo, estava incorreta em seu fundamento, na medida em que não existem aqueles corpos “invisíveis, por sua pequenez e pequeno volume”, e indivisíveis, os átomos, dos quais tudo o mais seria feito por meio de agregação desses mesmos corpos. Toda a filosofia materialista fundou-se na existência desse objeto sólido básico em sua localidade, mas a relatividade mostrou que a matéria mais básica pode ser transformada em energia ou radiação, que não é propriamente sólida, e a física quântica comprovou que nossa experiência material é dependente de uma opção mental, que está no problema da medição, descrito pelo experimento da dupla fenda, possuindo a realidade uma natureza não local.

Por isso, com exceção de Carlo Rovelli, de todos físicos a cuja obra tive acesso, incluídos Einstein, Bohr, Hawking, ninguém ainda sustenta a hipótese filosófica do átomo, e mesmo Rovelli subverte o conceito original de átomo utilizando, para tanto, em substituição, a ideia de quantum de ação, o que não é aquele corpo sólido indivisível que sustentava a filosofia materialista, mas a medida mínima da relação ou troca energética entre campos.

Segundo Amit Goswami: “O sucesso desfrutado pelo materialismo de Demócrito na ciência nos últimos 300 anos talvez seja apenas uma aberração” (In GOSWAMI, Amit; REED, Richard E.; GOSWAMI, Maggie. O universo autoconsciente: como a consciência cria o mundo material. Trad. Ruy Jungmann. São Paulo: Aleph, 2007, p. 84).

No mesmo sentido, repito uma passagem citada por mim em vários artigos, pela autoridade de quem a produziu e pelo significado de sua conclusão:

“Independentemente da decisão última, podemos mesmo afirmar agora que a resposta final (sobre a equação fundamental da matéria) estará mais próxima dos conceitos filosóficos expressos, por exemplo, no Timeu de Platão do que dos antigos materialistas. Tal fato não deve ser mal compreendido como um desejo de rejeitar de maneira muito leviana as ideias do moderno materialismo do século XIX, o qual, uma vez que pôde trabalhar com toda a ciência natural dos séculos XVII e XVIII, abarcou um conhecimento muito importante de que carecia a antiga filosofia natural. Não obstante, é inegável que as partículas elementares da física de hoje se ligam mais intimamente aos corpos platônicos do que aos átomos de Demócrito. (…) E, desde que a estrutura matemática é, em última análise, um conteúdo intelectual, poderemos afirmar, usando as palavras de Goethe no Fausto, ‘No princípio era a palavra’ – o logos. Conhecer este logos em todas as suas particularidades, e com total clareza em relação à estrutura fundamental da matéria, constitui a tarefa da física atômica de hoje e de seu aparelhamento infelizmente muitas vezes complicado” (Werner Heisenberg. In Problemas da Física Moderna, 3 ed., São Paulo: Perspectiva, 2011, pp. 26-27).

O Logos é um termo grego que foi traduzido como “palavra” por Goethe, o qual, entretanto, faz uma referência inequívoca ao quarto Evangelho, atribuído, tradicionalmente, a João: “No princípio era o logos (verbo, palavra, discurso, razão), e o logos estava com Deus, e Deus era o logos. Este no princípio estava com Deus. Todas as coisas existiram por ação dele e sem ele existiu nem uma só coisa que existiu” (Jo 1, 1-3).

Assim, não é por acaso que Hegel faz de sua Filosofia a Ciência da Lógica, porque ele transforma em razão a ontologia Cristã, sendo a proposta dele fazer uma Filosofia do Cristianismo, para, nas palavras de Heisenberg, “conhecer este logos em todas as suas particularidades”

A Ciência se baseia no conhecimento racional de mundo, sendo que a busca dessa ordem decorre historicamente da junção da filosofia grega com a cosmovisão judaico-cristã, monoteísta, que se funda na existência da ordem natural universal, criada por Deus, pelo e no Logos, ou Sabedoria.

Daí porque o caminho da Verdade científica, considerando tudo o que entendemos como ciência desde Galileu, Descartes, Newton, até chegar à física moderna e sua compreensão adequada, passou e passa, necessariamente, pela unificação da cosmovisão monoteísta com a filosofia grega, em suas propostas no sentido de que o Logos é o princípio fundamental do mundo.

Todavia, a concepção tradicional dessa fusão decorre do pensamento de Agostinho, em que acabou prevalecendo um certo dualismo platônico que separa o mundo das ideias do mundo material, dualismo que se mostrou insustentável após a física quântica, que demonstrou haver uma unidade essencial entre o mundo sensível e o mundo inteligível. Assim, a Ciência, que é o conhecimento do Logos, a busca da Verdade, deve continuar a proposta filosófica de Hegel, ao refazer esse caminho de união da racionalidade grega com a ideia Cristã de mundo, aproveitando o conhecimento subsequente que se desenvolveu nesse sentido, o que inclui a psicologia analítica de Carl Jung e a leitura ontológica da física de David Bohm, consertando os erros pontuais de cada um deles. Ciência, assim, é o estudo da encarnação do Logos, em seus aspectos psíquicos e físicos, na sua unidade essencial.

Lendo Hegel, é surpreendente a precisão racional de sua exposição, ao enfrentar os fundamentos filosóficos da física, em conceitos como espaço, tempo e matéria. O princípio atomista, por exemplo, é abordado por ele como a “exterioridade completa”, insuficiente para a apreensão do conceito, do logos, como demonstrado pela física cerca de um século depois:

“Portanto, não admira que o princípio atomista se conservou em todas as épocas; a relação igualmente trivial e externa da composição que precisa ainda acrescentar a fim de chegar à aparência de um concreto e de uma multiplicidade, é tão popular quanto os próprios átomos e o vazio” (Georg Wilhelm Friedrich Hegel. Ciência da lógica: 1. A doutrina do ser. Traduzido por Christian G. Iber, Marloren L. Miranda e Frederico Orsini. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2016, p. 172).

A inteligência de Hegel, além disso, permitia que entendesse o funcionamento do mundo, criticando a desordem decorrente da proposta atômica e comparando-a com o mundo individualista, como aquele em que hoje vivemos.

“De outra maneira, contudo, as determinações ulteriores dos antigos sobre a figura, a posição dos átomos, a direção do movimento deles, são bastante arbitrárias e externas e estão, nesse caso, na contradição direta com a determinação fundamental do átomo. Nos átomos, no princípio da suprema exterioridade e, com isso, da suprema ausência de conceito, a física sofre nas moléculas e partículas tanto quanto a ciência do Estado que parte da vontade singular dos indivíduos” (Idem, p. 173).

Não é à toa que Bohm, que leu Hegel, quando esteve no Brasil, salvo engano, foi um dos principais filósofos ou cientistas do século XX, talvez o maior, qualidade que não é reconhecida em decorrência da cegueira que toma conta da intelectualidade contemporânea, aplicando-se o que se repete na História e já foi dito do maior filósofo e cientista de todos os tempos: “E a luz brilha na escuridão, e a escuridão não dominou a luz” (Jo 1, 5).

Indispensável, pois, superar o materialismo e o individualismo atômico para que seja possível o conhecimento do Logos, em sua universalidade cósmica indivisível, em sua totalidade, que inclui o observador, o ser pensante, pois este e o mundo observado, fisicamente, “são aspectos imersos e interpenetrados de uma realidade completa, que é indivisível e incomensurável” (David Bohm. Totalidade e a ordem implicada. Tradução Teodoro Lorente. São Paulo: Madras, 2008, p. 25).

É preciso reconhecer a insuficiência e, em última análise, a falsidade do atomismo, “temos de considerar o Universo como uma totalidade indivisível e inseparável. A divisão em partículas, ou em partículas e campos, não passa de uma aproximação e uma abstração grosseira. Portanto, chegamos a uma ordem que é radicalmente diferente daquela de Galileu e de Newton – ordem da totalidade indivisível” (Idem, p. 135), e essa ordem apenas é ordem porque, de fato, e de Direito, não existe o átomo, mas, apenas, o Logos.

 

 

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