A construção da verdade nos inquéritos

06/05/2017

Por Javan Moisés Girardi e Vilmar Urbaneski - 06/05/2017

1.INTRODUÇÃO 

O inquérito faz parte da história judicial desde tempos remotos. Antes mesmo de se ter uma organização jurídica propriamente dita, a investigação – por diversos meios e modos – era praticada para se estabelecer, ou afastar, determinado fato, para que com o resultado desta investigação, se pudesse apontar, pelo menos, o culpado e doravante, aplicar-lhe a pena cabível.

Este artigo tem o escopo de investigar a relação de poder perante a construção de verdades nos inquéritos desde a Grécia Antiga – berço, inclusive, da persecução pela verdade jurídica - perpassando por pontos importantes da História, até chegarmos ao século XXI.

A relação de poder que se encontra no inquérito e se estende no embate entre defesa e acusação, entre súdito e soberano, entre povo e Estado, que se dá até a sentença judicial, onde os mesmos fatos são, possivelmente, analisados de formas diferentes durante o desenrolar da História devido às mudanças culturais que ocorreram através do tempo, dos lugares e da cultura.

Para o desenvolvimento deste trabalho foi utilizado unicamente a pesquisa bibliográfica. Os métodos de abordagem foram utilizados o método indutivo - onde se buscou a partir da união de dados gerais, concluir alguns aspectos em relação ao tema - e o método comparativo, tendo em vista que será possível cruzar informações com algum teor parecido. Tais métodos foram utilizados devido à possibilidade de estabelecer laços de proximidade (ou ao contrário), tentando aflorar a realidade próxima, porém, com o maior embasamento científico possível.

2. A PERSECUÇÃO DA VERDADE (REAL) ATRAVÉS DA HISTÓRIA DO INQUÉRITO 

2.1. O inquérito na Grécia Antiga

O papel e a forma da investigação se modificam durante a História conforme basilares filosóficos, referentes à determinada época e também conforme o poder do Estado se coloca aos seus cidadãos. Por exemplo, a forma de inquérito depende a quem se protege, se a um soberano, se a uma verdade filosófica como a verdade das religiões, ou a um Estado formado por suas instituições.

Logo, é salutar perceber que conforme se modifica aquele que detém o poder, modifica-se também a forma que este quer que se produza uma verdade, porque a investigação e positivização dos fatos traduzidos em relatórios, como ocorre nos dias atuais, nada mais é do que a formalização de verdades pelos discursos proferidos.

Durante a História jurídica da civilização ocidental muito se problematizou acerca desse procedimento. Na Grécia ancestral, uma das histórias mais importantes para entendermos a persecução pela verdade (real) é a de Édipo - rei[1], analisada por Foucault no seu livro “A verdade e as formas jurídicas”. Segundo Foucault (2003, p. 31).

A tragédia de Édipo é fundamentalmente o primeiro testemunho que temos das práticas judiciárias gregas. [...] trata-se de uma história em que pessoas – um soberano, um povo – ignorando uma certa verdade, conseguem, por uma série de técnicas [...], descobrir uma verdade que coloca em questão a própria soberania do soberano.

Vemos que já nos tempos da Grécia antiga preocupavam-se com a descoberta daqueles que praticavam atos ‘anormais’ na sociedade, pois pelas crenças daquele tempo, a verdade deveria aparecer, se não, as divindades se encarregariam de punir a cidade, a coletividade e não, necessariamente, o indivíduo cometedor do delito. O medo estava presente e, segundo o estudo de Gastaldi (2006, p.60), “aqueles que deixarem o culpado impune devem converter-se em responsáveis pela perda [...]. Portanto, continua, é necessário fazer vingança e purificar a cidade”.

Essa purificação significa punição àquele que comete o crime, sobretudo pelo medo que a sociedade tem de sofrer a ira dos deuses. Inclusive, é importante ressaltar que na Grécia antiga o julgamento tinha viés de vingança, pois as partes representavam a si mesmas, sendo a vítima representada por seus familiares, ou por alguém capaz de requerer a justiça.

Assim, como enaltece Gastaldi (2006, p.56), há “necessidade de punição, não em termos de sentença justa, mas sim de vingança. A vingança é quase o leitmotiv[2] que norteia o discurso, [...] e é motivada pela piedade e pelo dever para com o pai”.

Problematizando a assertiva, poderíamos questionar trazendo aos dias de hoje, se no direito moderno o Estado também não busca a vingança, se as instituições não buscam pacificar, apenas, a sociedade, deixando a verdade real somente para os discursos, ou o inverso, fazendo com que os discursos criem verdades reais.

Sobre a persecução da verdade, Foucault (2003) nos apresenta uma mudança no direito grego a partir do mito de Édipo, pois analisa o deslocamento da base da verdade, outrora mítica/religiosa, e a partir de então embasada nos testemunhos humanos, das provas. Sobre o assunto, o autor discorre que

[...] toda peça de Édipo é uma maneira de deslocar a enunciação da verdade de um discurso de tipo profético e prescritivo a um outro discurso, de ordem retrospectiva, não mais da ordem de profecia, mas do testemunho. É ainda uma certa maneira de deslocar o brilho ou a luz da verdade do brilho profético e divino para o olhar, de certa forma empírico e quotidiano, dos pastores (FOUCAULT, 2003, p. 40). 

Já Gastaldi (2006), levanta uma questão em torno da preocupação da descoberta do homicida na Grécia do século V d.C. através de um terceiro inerte ao crime praticado, mas que narra oralmente o acontecido e pede a condenação do algoz.

Cita a autora sobre o testemunho oral, em um crime de homicídio:

O documento mais revelador da questão da mácula e do contágio por homicídio é o produzido por um orador: Antifonte [...]. O sofista demonstra com absoluta clareza que a oratória Ática constitui uma fonte importantíssima de dados para a apreciação da cultura e da vida política de Atenas (GASTALDI, 2006, p. 54).

Nota-se, nesta citação, a preocupação de criar, a partir da investigação, uma sistemática para descobrir o culpado. Percebe-se ainda que a forma que se estabelece o mecanismo utilizado, ou seja, a fala, o testemunho oral, conta muito da cultura grega. Portanto, as formas de inquirição são, sobretudo, sistemas institucionalizados pela lei, ou pela cultura de um povo, que dá, ou retira sua confiança no que virá a ser verdade, quando dos instrumentos utilizados para trazer à tona os fatos delituosos.

Podemos ter uma ideia de como funcionava a persecução penal analisando o trecho onde Gastaldi (2006) busca demonstrar a sistemática:

O arconte ou magistrado, no dia fixado para a apreciação do caso, tinha em seu poder um escrito (lexis), no qual constavam os nomes das partes, a exposição dos fatos que tinham dado lugar ao processo, o objeto da demanda e a designação de testemunhas que tinha presenciado o fato. (GASTALDI, 2006, p. 63).

Percebemos que há uma importância dada também aos escritos documentais sobre o ocorrido além das palavras orais das partes em contenção e dos testemunhos dados por aqueles que viram o fato ocorrido e que, juntamente com o juiz, constroem um veredicto. O termo construir cabe bem ao caso, pois podemos perceber que o que se tinha era, na verdade, um embate de performance, de convencimento, pois “com seus auxiliares [...] (as partes) eram envolvidas em uma disputa; os juízes concediam a vitória à performance mais impressionante” (GASTALDI, 2006, p.73). Ou seja, pouco importa descobrir quem matou, mas sim importa punir aquele menos eloqüente.

Na peça de Édipo analisada por Foucault (2003), a verdade é buscada pela retórica e pela prova somente quando, postos frente a frente, Menelau e Antíloco disputam pela eloqüência e pela prova divina provocada pelo medo, quem vai ter a razão de apontar quem cometeu o crime. O embate dá-se da seguinte forma:

Há somente contestação entre os adversários Menelau e Antíloco. Esta se desenvolve da seguinte maneira: depois da acusação de Menelau – “tu cometeste uma irregularidade” – e da defesa de Antíloco – “eu não cometi irregularidade” – Menelau lança um desafio: “Põe tua mão direita na testa do teu cavalo; segura com a mão esquerda teu chicote e jura diante de Zeus que não cometeste irregularidade”. Nesse momento, Antíloco, diante deste desafio que é uma prova (épreuve), renuncia à prova, renuncia a jurar e reconhece assim que cometeu irregularidade. (FOUCAULT, 2003, p. 32).

O que se percebe é que o cenário que enquadra o drama está estabelecido pelo medo, pois poderia muito bem Antíloco ter mentido em relação à imputação do crime, ter jurado inocência. Não o fez com medo de ser posteriormente acusado de ter desperto a fúria divina e de prejudicar seus concidadãos.

A Grécia foi o berço da democracia. O inquérito e suas formas, desde aqueles tempos, faz parte das transformações democráticas, pois “através de uma série de lutas e contestações políticas, resultou na elaboração de uma determinada forma de descoberta judiciária, jurídica, da verdade” (FOUCAULT, 2003, p.55). Essas formas da verdade transformaram-se em discurso e em apreensão de um determinado saber. Segundo Nietzsche, “[...] o poder político não está ausente do saber, ele é tramado com o saber” (FOUCAULT, 2003, p. 51) e, na Grécia de Menelau, Antiloco, Édipo e Jocasta,

O rei e os que o cercavam, pelo fato de deterem o poder, detinham um saber que não podia e não devia ser comunicado aos outros grupos sociais. Saber e poder eram exatamente correspondentes, correlativos, superpostos. Não podia haver saber sem poder. E não podia haver poder político sem a detenção de um certo saber especial (FOUCAULT, 2003, p. 49).

Portanto, a história do inquérito na cultura grega analisado por Foucault e por Gastaldi, “nos apresenta um resumo de uma das grandes conquistas da democracia ateniense” (FOUCAULT, 2003, p. 54), pois demonstra o processo da alteração do poder que vai do Soberano aos súditos, quando estes se apoderaram “do direito de julgar, do direito de dizer a verdade, de opor a verdade aos seus próprios senhores, de julgar aqueles que governam (FOUCAULT, 2003, p. 54).

Após o período da Grécia antiga, de acordo com Foucault (2003) a história do nascimento do inquérito permaneceu esquecida e foi retomada, sob outras formas, vários séculos mais tarde, na Idade Média. 

2.2. O inquérito na Idade Média 

Na Idade Média, por exemplo, com a Santa Inquisição, buscava-se a verdade para punir os ditos “hereges” e, para isso, usavam-se várias artimanhas. Porém, todas as atitudes da Igreja à época, estavam embasadas em preceitos filosóficos e religiosos daquele período, onde justamente a Igreja é quem estipulava o que era correto, ou o que era heresia (pecado). A própria Igreja tratava de elaborar, portanto, as formas inquisitivas e punitivas.

Segundo a obra Vigiar e Punir, de Foucault (1987) “o procedimento do inquérito na Idade Média foi imposto à velha justiça acusatória, mas por um processo vindo de cima [...]”. (FOUCAULT, 1987, p. 186). E dessa sistemática, excluía-se – ao contrário do que ocorreu na Grécia antiga – o testemunho. Priorizava-se a defesa oral, feita até mesmo por terceiros, iniciando a prática do que viria a ser posteriormente o advogado. Assim, nos mostra Foucault, sobre a prática da busca da verdade através do inquérito, na Idade Média:

A confirmação de que ao nível da prova só se tratava de um jogo verbal, é que, no caso de um menor, de uma mulher ou de um padre, o acusado podia ser substituído por outra pessoa. Essa outra pessoa, que mais tarde se tornaria na história do direito o advogado, era quem devia pronunciar as fórmulas no lugar do acusado. Se ele se enganava ao pronunciá-las, aquele em nome de quem falava perdia o processo (FOUCAULT, 2003, p. 59/60).

Portanto, como são representantes que embatem acerca da disputa da razão, e não necessariamente a vítima e o algoz, “a sentença consiste na enunciação, por um terceiro, do seguinte: certa pessoa tendo dito a verdade, tem razão, uma outra, tendo dito uma mentira não tem razão” (FOUCAULT, 2003, p. 61). Percebemos, então, que a preocupação de detectar a verdade jurídica, a verdade real dos fatos é colocada em segundo plano, porque, verificando somente a verdade pelo convencimento, “a sentença [...] não existe; a separação da verdade e do erro entre os indivíduos não desempenha nenhum papel; existe simplesmente vitória ou fracasso” (FOUCAULT, 2003, p. 61).

O modelo de inquérito utilizado pela Igreja era dividido em três estágios (FOUCAULT, 2003), o primeiro, a “inquisitio generalis, que era a fase que o representante da Igreja perguntava a todos que deviam saber, o que tinha acontecido na sua ausência” (FOUCAULT, 2003, p. 70); o segundo, a “inquisitio specialis, que consistia em apurar quem tinha feito o que, [...] em determinar o autor” (FOUCAULT, 2003, p. 70); o terceiro, “a confissão do culpado [...]. Aquele que tivesse cometido o crime, poderia apresentar-se e proclamar publicamente [...]” (FOUCAULT, 2003, p. 70). Ainda sobre o modelo de inquisição eclesiástica, segundo Foucault:

[...] foi ao mesmo tempo espiritual sobre os pecados, faltas e crimes cometidos, e inquérito administrativo sobre a maneira como os bens da Igreja eram administrados e os proveitos reunidos, acumulados, distribuídos, etc. Este modelo ao mesmo tempo religioso e administrativo do inquérito subsistiu até o século XII, quando o Estado que nascia, ou antes, a pessoa do soberano que surgia como fonte de todo o poder, passa a confiscar os procedimentos judiciários (FOUCAULT, 2003, p. 71).

Importante lembrar que na alta Idade Média não havia poder judiciário. “Pedia-se ao mais poderoso ou àquele que exercia a soberania não que fizesse justiça, mas que contatasse [...] a regularidade do procedimento” (FOUCAULT, 2003, p. 65). No entanto, o Estado, representado ainda pelo Soberano, deveria eleger alguém com o escopo de vigiar tanto a regularidade do procedimento, como defender os interesses estatais.

Nesse contexto aparece um novo personagem, o procurador. Esse novo ator “que aparece na Europa por volta do século XII, vai se apresentar como representante do soberano, do rei ou do senhor” (FOUCAULT, 2003, p. 65) e também, aparentemente, representante da coletividade.

Para nos situarmos, no Brasil colonial (final da Idade Média), por exemplo “D. João III havia concedido amplos poderes ao capitão-mor Martim Afonso de Souza para a criação de leis nas alçadas administrativa e criminal. Era o capitão-mor quem aplicava a justiça do rei” (SIRVINSKAS, 2003, p. 37), tudo isso amparado pelas “Ordenações Afonsinas. [...] (que) em seu Livro V, estabelecia os crimes e o processo penal” (SIRVINSKAS, 2003, p. 38).

Quando alguém é eleito como representante de uma coletividade, lesar a coletividade significa, sobretudo, lesar aquele que a representa. Assim ocorria quando havia um delito na Idade Média, pois a sociedade estava sob proteção de Deus e do seu soberano, este representante de Deus e representado pelo seu procurador. Portanto, “[...] a partir do momento em que o soberano ou seu representante [...] dizem ‘também fui lesado pelo dano’, isto significa que o dano é [...] uma ofensa de um indivíduo ao Estado” (FOUCAULT, 2003, p. 66). Com isso se exigirá do culpado “não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo, mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, o Estado, a lei” (FOUCAULT, 2003, p. 67).

Então, o Estado passa a utilizar o inquérito como uma das suas formas políticas, “uma forma de gestão, de exercício do poder que [...] veio a ser uma maneira na cultura ocidental, de autentificar a verdade [...]. O inquérito é uma forma de saber-poder” (FOUCAULT, 2003, p. 78).

Não somente o poder em si, mas vários discursos que canalizam o poder pelo saber foram, se não criados, autentificados pelo que o inquérito possibilitou. “O grande conhecimento empírico que recobriu as coisas do mundo e as transcreveu na ordenação de um discurso tem [...] seu modelo operatório na Inquisição (FOUCAULT, 1987, p. 186).

Na atualidade, o inquérito possui princípios inseridos na sua funcionabilidade. Um deles, se não o mais importante, é o princípio da verdade real. Tal filosofia tem o escopo de aflorar a verdade embasada em provas científicas, tais como os laudos periciais e exames grafotécnicos. Só é realmente relevante, aquilo que está expressamente afirmado pela ciência e pela prova testemunhal sobre juramento.

Para finalizar, utilizando mais uma vez as palavras sábias de Foucault, “o inquérito não é absolutamente um conteúdo, mas a forma de saber. Forma de saber situada na junção de um tipo de poder e de certo número de controle de conhecimentos (FOUCAULT, 2003, p. 77).

3. A BUSCA PELA VERDADE: OBJETIVO DO ESTADO 

A partir dos novos Estados criados com os princípios da Revolução Francesa, o “imaginário coletivo substitui o atentado à figura do velho rei-soberano pela figura [...] à ordem soberana. O corpo do rei-soberano perdeu o sentido diante do corpo do Estado, assegurado pela ordem política” (DAL RI JUNIOR, 2006, p. 203). Portanto, há, inclusive, uma nova definição do criminoso. Este é tido como “inimigo social” (FOUCAULT, 2003, p. 81), e esse inimigo social vai estar inserido numa sociedade peculiar, uma sociedade que vai induzir pela vigilância, um estado disciplinar. Foucault chama de “idade [...] de ortopedia social. É a idade do controle social” (FOUCAULT, 2003, p.86).

Para controlar e moldar a sociedade criaram-se várias formas de saber-poder, pois “[...] a instituição penal não pôde mais estar inteiramente em mãos de um poder autônomo: o poder judiciário” (FOUCAULT, 2003, p. 85). E uma dessas instituições criadas foi o inquérito policial, peça importantíssima dos processos judiciais.

Segundo Foucault (2003), temos nos processos judiciais um lugar privilegiado para entendermos a função do Estado na busca pela verdade “real”, pois os processos são a materialização de toda persecução à verdade estabelecida, ou criada, em qualquer acontecimento social. Sobretudo no processo penal é que se encontra o embate entre verdades distintas – geralmente galgadas entre vítima e réu, mas muitas vezes entre partes do processo e sociedade, ou o Estado, enquanto responsável por manter a paz e a harmonia entre os cidadãos.

Pois, é justamente para manter a ordem social que o Estado se integra dos sistemas processuais e pune qualquer contraventor, ou ainda, deve se posicionar perante uma lide. Uma das formas, no processo penal de se perseguir o fato até encontrar (ou criar) uma verdade, é justamente através do Inquérito Policial. E é pelo inquérito que se poda as arestas e busca deixar a sociedade a mercê do Estado, pois como aponta DAL RI JUNIOR (2006)

[...] quando o direito ordinário não consegue punir (a conduta do acusado não se tipifica nos crimes previstos), ou quando não o faz de modo adequado (a sanção não parece ser suficiente); no caso de existir o interesse de agir retroativamente (a repressão a todos os atos futuros similares que poderão se produzir não é suficiente), em particular porque o objeto da norma passa a ser não o próprio ato, mas as circunstâncias da espécie (seu autor, por exemplo); quando o soberano, os seus representantes ou o sistema político são concebidos como a encarnação da perfeição (elemento quase sempre presente nos discursos que fundamentamos regimes autoritários) (DAL RI JUNIOR, 2006, p. 204/205).

No entanto, a busca da verdade é uma constante em qualquer ação judicial que tenha que encontrar mérito, seja penal, ou civil. Segundo Foucault, “entre as práticas sociais em que a análise histórica permite localizar a emergência de novas formas de subjetividade [...], as práticas judiciárias estão entre as mais importantes” (FOUCAULT, 2003, p. 11). Mas a importância de aproximar-se da verdade nos processos penais concatena com a possibilidade de privar o réu de um princípio constitucional muito valioso, a liberdade.

Ainda segundo Foucault,

as práticas judiciárias – a maneira pela qual, entre os homens se arbitram os danos e as responsabilidades, o modo pela qual a história do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira como os homens podiam ser julgados [...] – me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas (FOUCAULT, 2003, p.11).

O que o autor quer problematizar é que, além da prática judiciária singular, existe uma carga muito grande de costumes e crenças, que de forma sorrateira, permeiam a concepção de verdade no âmbito jurídico. A própria norma legal é constituída por costume. Não obstante, a punição, ou sua descoberta, haveria de ser diferente.

Portanto, a partir da crítica em relação à elaboração do inquérito, é possível perceber vários aspectos relacionados aos elementos que o compõem. Importante frisar que é no inquérito que se auferem as perícias e demais provas técnicas. Elas, para o ordenamento moderno, são as provas de maior peso. Vale, portanto, problematizá-las dentro do contexto de inquirição. Pois, é nessa fase que se embasam a acusação e a possível condenação do acusado.

É salutar ao Estado punir aqueles que tenham desvirtuado o bem social, muito mais, aqueles que tomaram o papel estatal e inverteram a ordem, voltando assim, a um estado de barbárie.

Não há que se falar em controle ou em persecução penal sem comentar do sistema panopticon. Para Foucault, “o panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto” (FOUCAULT, 1987, p. 167), comumente utilizado em escolas, hospícios, penitenciárias, hospitais. Este sistema, amplamente presente nos dias de hoje, substitui, ou pelo menos auxilia o inquérito, pois “automatiza e desinvidualiza o poder” (FOUCAULT, 1987, p. 167). Portanto, “graças a seus mecanismos de observação, ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens” (FOUCAULT, 1987, p. 169) e amortiza a responsabilidade direta do Estado de investigar e manter a ordem social. Em síntese, o panóptico faz com que os próprios cidadãos utilizem-se das verdades criadas e fiscalizem-se uns aos outros levando ao conhecimento do Estado qualquer comportamento que se desvirtue do padrão.

Apropriadamente preconiza Batista (1990, 108 e 109) que “se o poder do estado de assegurar as condições de vida social não pode ser equiparado a um direito subjetivo, menos ainda a submissão do réu à pena pode ser tomada como cumprimento de uma obrigação jurídica”. E por fim, podemos analisar a aplicação da pena a partir de uma construção de verdade como sendo para proteger uma relação social, sobretudo entre classes.

Ainda segundo a ideia da verdade construída, o autor Batista (1990, p.116) diz que “numa sociedade dividida em classes, o direito penal estará protegendo relações sociais [...] escolhidos pela classe dominante, ainda que aparentem certa universalidade, e contribuindo para a reprodução dessas relações”. Ou seja, o fim do direito penal é punir por punir, apenas, sem o interesse efetivo de prevenção. A punição é fim, nunca início ou meio para afastar a criminalidade, embora defendida como tal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A sociedade se modifica, as formas do saber também se modificam. Desde a Grécia de Édipo, até os dias atuais, houve alterações significativas na configuração do Estado, portanto, tiveram modificações significativas também nas formas de perpetuação desse mesmo Estado. Ora, se há uma organização estatal, é premente que a mesma deva se perpetuar no poder ou, estar com o poder.

Estar com o poder significa criar institutos de manutenção deste poder. Vários mecanismos foram criados durante a história, mas, como pudemos perceber, o inquérito foi um dos principais. É pelo inquérito que se percebe aquele que está traindo o soberano, que está usurpando o poder de fazer-viver, ou de deixar-morrer, do rei, que está maculando o status de conservador da vida, no Estado moderno. Portanto, o inquérito foi e é uma maneira de criar discursos de verdade, de perpetuação do poder do Estado desde a Grécia, perpassando a Idade Média e suas verdades religiosas, chegando até os dias de hoje, onde se busca cada vez mais a proximidade com a moral e com a ética.

É importante conhecer a importância do inquérito na história, pois pode-se, a partir de então, avaliar os discursos modernos de verdade, analisando o que se constitui crime, o que se constitui lesivo à ordem do Estado e, sobretudo, permite reconhecermos aqueles que detêm o poder e desejam cada vez mais mantê-lo consigo, mesmo no estado democrático de direito que vivemos hodiernamente.

Por fim, importante perceber a importância, dentro do sistema de inquérito, de se descobrir aqueles que se revestem de soberano e tiram a vida de algum cidadão, pois o sistema inquisitivo tem papel saliente na persecução da verdade em torno do homicídio. O que não se faz perceber é se o homicídio é foco de tantos estudos pela sua atrocidade, ou pelo sentimento indigesto que causa, justamente por parecer que ninguém, além daqueles autorizados, possa tirar a vida de outrem. Talvez o homicídio seja tão estudado justamente pelo fato de o Estado não autorizá-lo, provocando uma lacuna de entendimento em relação ao que leva alguém a revestir-se de soberano e matar alguém. Por precisar saber o porquê, instaure-se um inquérito.


Notas e Referências: 

[1] A peça “Édipo - rei” conta a história de Édipo, que desconhecia que o Rei Laio e a rainha Jocasta fossem seus pais verdadeiros, pois foi dado a Políbio ainda em tenra idade. Posto à prova, Édipo retornou à Tebas, assassinou o rei Laio e casou-se com Jocasta, praticando assim dois delitos: homicídio e incesto. Assim sendo, foi a julgamento pelos crimes, sem mesmo saber que havia matado o pai e casado com a mãe.

[2] José Pedro Machado, em "Estrangeirismos na Língua Portuguesa", dá-nos a seguinte tradução: «Motivo condutor (principal), no sentido filosófico, que é a matriz direta da causa.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos: a repressão política na história do direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976); tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

________________. A verdade e as formas jurídicas; tradução Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais, supervisão final do texto Léa Porto de Abreu Novaes... ET AL. J. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003.

________________. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis. Vozes, 1987.

GASTALDI, Viviana. Direito Penal na Grécia Antiga; tradução de Mônica Sol Glik. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006.

SIRVINSKAS, Luís Paulo. Introdução ao estudo do direito penal. São Paulo: Saraiva, 2003.


Vilmar Urbaneski. Vilmar Urbaneski é professor e advogado  e consultor jurídico (Urbaneski &Cani Advocacia e Consultoria Juridica). Graduado em Direito (FURB/Blumenau) e  Filosofia (Universidade São Francisco/São Paulo). Especialização em Filosofia (UNIFEBE) e Direito Penal (UNIASSELVI), MBA em Gestão Ambiental (Universidade Federal do Paraná). Mestrado em Educação (FURB)..


Javan GirardiJavan Girardi é Mestre em História na linha de Linguagem, Estética e Hermenêutica pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU, com pesquisa voltada à análise teórico-metodológica da história da música popular brasileira. Possui graduação em História pela Fundação Universidade Regional de Blumenau-FURB (2008) e Especialização em Direito Penal e Processual Penal pelo Centro Universitário Leonardo Da Vinci-UNIASSELVI (2011), com pesquisa voltada à História e Filosofia do Direito.


Imagem Ilustrativa do Post: Athens Greece // Foto de: Jirka Matousek // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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