A cômoda interpretação que leva à “legalização” e à erosão da Constituição

04/12/2015

Por Gisela Maria Bester – 04/12/2015

Lenio Luiz Streck e tantos outros já nos ensinaram, há tanto tempo, que no Brasil havia uma farra, na seara de interpretação de normas infraconstitucionais, de modo a fazer a Constituição a elas adaptar-se e não o contrário. Era a famosa onda de legalizar a Constituição ao invés de constitucionalizarem-se as leis, lato sensu falando. No que se refere a normas novas, pós-Constituição de 1988, isto é grave, e mais grave ainda o é em relação às anteriores, que, ou foram recepcionadas, ou não o foram, pelo novo texto maior do ordenamento jurídico.

É o professor Lenio também que, com genialidade, nos relembra uma sentença inescapável, a de que “estamos condenados a interpretar”. Isto porque, segundo ele, “não existe um texto que seja tão claro semanticamente que consiga ser o espelho da realidade. [...] Nós sempre interpretamos todos os casos jurídicos e todos os textos.” (2015, online).

Porém, não se pode, definitivamente, e isto é basilar em teoria constitucional, interpretar comodamente as normas ao bel-prazer dos seus destinatários, com aproveitamentos espúrios disso, cujo resultado seja a provocação da erosão do próprio texto constitucional.

Os olhares dos intérpretes também não podem se dirigir mais ao passado do que ao presente quando do advento de um novo texto constitucional. É o que outrora afirmamos: “a interpretação deve ser prospectiva, não retrospectiva” (BESTER, 2005, p. 177). José Carlos Barbosa Moreira, com sua autoridade crítica, chamou a atenção para o perigo da interpretação constitucional retrospectiva, já em 1988: “Sem dever o seu título de investidura à nova ordem, e sem compromisso político com a transformação institucional que se operara no País, a Corte reeditou burocraticamente parte da jurisprudência anterior, bem como alimentou inequívoca má-vontade para com algumas inovações. Não se escapou, aqui, de uma das patologias crônicas da hermenêutica constitucional brasileira, que é a interpretação retrospectiva, pela qual se procura interpretar o texto novo de maneira a que ele não inove nada, mas, ao revés, fique tão parecido quanto possível com o antigo”. (MOREIRA, 1988, p. 152). Nunca encontrei autor que melhor o dissesse; por isso, sigo citando-o.

A partir disto, vamos aos fatos da vida que me motivaram a escrever este breve artigo para a Coluna Levando a Constituição a Sério, deste Empório. É que, mais uma vez, quer-se fazer uma lei (no caso o Código Brasileiro de Comunicações, de 1962!) valer mais do que a Constituição (de 1988). Vejamos.

Matéria da Folha de São Paulo, do dia 22/11/2015, assinada por Ricardo Mendonça e por Paula Reverbel, com a colaboração de Bruno Fávero, demonstra que 40 parlamentares federais brasileiros aparecem atualmente como radiodifusores, sócios de 93 emissoras. São 32 deputados federais e oito senadores, que aparecem nos registros oficiais, no Ministério das Comunicações, como sócios de emissoras de rádio ou de TV pelo País afora. É por isso que, em iniciativa inédita, o Ministério Público Federal, por meio de suas sedes estaduais, recentemente prometeu agir contra tais parlamentares, com o aval do Procurador-Geral da República e em coautoria com o Coletivo Intervozes. Entre os alvos dessa iniciativa “estão alguns dos mais influentes políticos do país” (MENDONÇA; REVERBEL, 2015, online)[1]. A primeira leva destas ações civis públicas, e frise-se tratar-se de iniciativa inédita, foi protocolada no dia 19 de novembro de 2015, em São Paulo. A Procuradoria visa a, com elas, conseguir a suspensão das concessões e ainda a condenação obrigando a União a novamente licitar o serviço, abstendo-se então de dar novas outorgas aos citados. Em tais peças iniciais cita-se o caso já julgado no Supremo Tribunal Federal, com condenação, do ex-deputado Marçal Filho (PMDB-MS), em que os votos dos Ministros Rosa Weber e Luis Roberto Barroso enalteceram a teleologia do artigo 54 da Constituição federal de 1988, visivelmente direcionado a coibir abusos e concentrações de poder político. O ex-deputado fora processado por falsificar documentos a fim de omitir a sua condição de sócio de uma emissora de rádio.

Por certo que normas jurídicas geralmente trazem em seu bojo vaguezas, imprecisões, indeterminações, ambiguidades. No entanto, aqui está-se diante de um caso em que a Constituição ampliou um controle (do poder político), pela restrição de uma possibilidade, pois o Código Brasileiro de Comunicações diz que parlamentares não podem ser diretores de veículos de comunicações, não proibindo nem permitindo expressamente a possibilidade de serem sócios dos mesmos. Porém, a Constituição de 1988, em seu art. 54, I, como bem se lê, foi clara ao restringir o conteúdo impreciso da norma de 1962, fixando que congressistas não possam ter contratos com concessionárias de serviços públicos: Art. 54. Os Deputados e Senadores não poderão: I - desde a expedição do diploma: a) firmar ou manter contrato com pessoa jurídica de direito público, autarquia, empresa pública, sociedade de economia mista ou empresa concessionária de serviço público, salvo quando o contrato obedecer a cláusulas uniformes; [...].. No entanto, há congressistas, e a materia da Folha de São Paulo ilustra isso, defendendo que a legislação permite esse tipo de participação, desde que eles não exerçam funções administrativas nas emissoras”. "O ordenamento jurídico permite [ser sócio]. Não exercendo direção, não há vedamento legal", disse um deles à equipe da Folha. (MENDONÇA; REVERBEL, 2015, online). Logo, o que estão a fazer é uma interpretação com fins egoísticos, arbitrária, por vontade própria, não restam dúvidas quanto a isto. Trata-se de interpretar uma norma de modo tão pernicioso, que chega a ser capaz de destruir a força normativa da Constituição, fazendo com que se lhe perca o respeito enquanto norma hierarquicamente superior. É o tipo da hermenêutica jurídica rasteira, que revela, para relembrar Lassalle, falta de “vontade de Constituição” e excesso de “vontade de poder”, literalmente. Poder econômico, político, midiático; também, sede de fama, ânsia por influência, obsessão de nossos políticos por renome, “desejo de status” (Alain de Botton).

Os políticos brasileiros das últimas décadas, sobretudo após a entrada em vigor do novo texto constitucional, em 1988, vêm se tornando “profissionais”, e isto é péssimo diante do significado do princípio republicano. A ideia de res pública implica, inclusive, e sobretudo, o rodízio nos postos de mando, de poder, e isto deveria incluir também o âmbito dos integrantes do Congresso Nacional, daqueles que fazem boa parte do cipoal de leis que nos governa. No entanto, o que temos é parlamentares em seus quartos ou até quintos[2] mandatos. Isso não faz rodar a democracia, no sentido de que não se areja o pensamento, a visão de mundo, enquanto ideologia mesmo, donde a repetição de lobbies acaba mantendo boa parte do ordenamento jurídico que se cria direcionado sempre em uma mesma direção. Depois tudo se complica quando por vezes correntes hermenêuticas contrárias ao ativismo judicial, por exemplo, dizem que o correto seja esperar que se criem, no Poder Legislativo, as condições de amadurecimento de um tema para que ele venha a ser objeto de legislação. Este artigo não objetiva tratar do ativismo judicial, mas parece-me salutar mostrar o quanto de implicações há na falta de oxigenação na formação do corpo de legisladores infraconstitucionais ordinários. Se não se trocam as cabeças pensantes, um dado tema, que não lhes agrade, nunca chegará a ser digno de merecer normatização em sentido antônimo. Possa ser que nem venha a ser normatizado, em sentido algum. Quanto a isto, trago-lhes um exemplo recente. A Emenda Constitucional de número 81, de 2014, criou a possibilidade de expropriação de terras onde sejam encontradas práticas de exploração de trabalho escravo. Porém, jogou às calendas gregas a sua regulamentação, pois, ao deixar para o Congresso Nacional fazê-la, a julgar pela sua atual composição, com forte bancada ruralista, e diante do alto índice de reeleição dos congressistas, pode-se facilmente imaginar que as referidas expropriações não devam ser possíveis tão proximamente. Não é nada forçado concluir que as reeleições, por sua vez, sejam fortemente influenciadas, propiciadas, até garantidas, pelo uso dos meios de comunicação de massa mais tradicionais (rádio e tv).

Talvez também seja por isso que, por outro lado, inúmeros parlamentares usem “laranjas” (que podem ser até seus parentes) para ter emissoras de rádio e de televisão em nosso País, como é sabido e consabido. Sei de pessoas, geralmente empresários, que enriqueceram com isso; muitos, depois, tornaram-se parlamentares também. Não posso, por óbvio, mencionar nomes, mas penso que, assim como eu, muitos de meus leitores e de minhas leitoras também estejam a identificar casos semelhantes, simplesmente porque isto é um clássico no Brasil. O que assombra, por isso mesmo, ou seja, pelo contexto histórico de fraude nas titularidades desses meios de comunicação – e não que se defenda isso, por favor – é a desfaçatez de muitos parlamentares assumirem tais titularidades com todas as letras, fazendo pouco ou nenhum caso da Constituição.

Mais grave fica o quadro quando evidente conflito de interesses aflora, conforme foi bem explicitado pela mesma matéria da Folha, a partir dos Procudoradores legitimados ativos das ações acima mencionadas: como cabe ao Congresso Nacional a apreciação dos atos que outorgam e renovam concessões de rádios e de tv´s, os congressistas ditos “radiodifusores” terão sempre a propensão de votar pela aprovação, eis que com isso não prejudicarão futuras análises de processos seus neste sentido. “As peças citam uma sessão da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara de 2011 que deu aval a 38 concessões e 65 renovações em apenas três minutos e com só um deputado presente. Citam ainda casos de políticos que votaram na aprovação de suas próprias outorgas ou renovações.” (MENDONÇA; REVERBEL, 2015, online). Até por isso, há ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) sobre a temática sendo preparada para ler levada ao STF.

Se quisermos seguir na vigília para que o texto constitucional de 1988 não seja erodido desta maneira, devemos fazer ressoar críticas como estas, combatendo os usos egoísticos da Constituição. Ressaltei, no artigo anterior, desta mesma coluna, ser preciso que cada um do povo sinta a Constituição como sua, como coisa própria. Até para chamá-la de sua, sim, mas sempre tendo em consideração que o “sua” somos nós, somos todos, é uma coletividade imensa, regida pelo conteúdo precioso que se encontra em seu texto, o qual não pode ser corroído por ações de infidelidade constitucional.

A fidelidade constitucional, na insubstituível lição clássica, não pode ser violada. Há abertura para muitas interpretações no texto constitucional federal de 1988, porém não podem elas, por diversas que o sejam, ferir o princípio da fidelidade constitucional.


Notas e Referências:

[1] Nesta mesma fonte podem ser identificados os 40 nomes, entre integrantes do Senado da República e da Câmara dos Deputados.

[2] Conforme, por exemplo, informação disponível em: <http://www.prb10.org.br/noticias/beto-mansur-exercera-seu-quinto-mandato-na-camara-dos-deputados/>. Acesso em: 2 dez. 2015.

BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional. V. 1. Fundamentos Teóricos. Barueri, SP: 2005.

BOTTON, Alain de. Desejo de status. São Paulo: L&PM, 2013.

HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1991.

LASSALLE, Ferdinand. A essência da Constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

MENDONÇA, Ricardo; REVERBEL, Paula. Ações visam cassar licenças de rádio e TV de 40 congressistas. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/11/1709360-acoes-visam-cassar-licencas-de-radio-e-tv-de-40-congressistas.shtml?cmpid=newsfolha>. Acesso em: 22 nov. 2015. [Licença para citações obtida em 25 de novembro de 2015, junto à Folhapress - Agência de Notícias do Grupo Folha].

MOREIRA, José Carlos Barbosa. O poder judiciário e a efetividade da nova Constituição. Revista Forense, n. 304, p. 152, 1988.

STRECK, Lenio Luiz. Cresce o interesse dos alunos por hermenêutica nas faculdades. Revista Consultor Jurídico, 26 de novembro de 2015. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2015-nov-26/senso-incomum-cresce-interesse-alunos-hermeneutica-faculdades>. Acesso em: 26 nov. 2015.


Gisela Maria BesterGisela Maria Bester é Professora de Direito Constitucional. Colaboradora convidada no Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e no Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestre (UFSC), Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) e Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Integrou o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT/CEP), e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça. Consultora da CAPES. Pesquisadora do CNPq. Advogada constitucionalista. Diretora Geral da ESA-TO (Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Tocantins). Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB TO. Integrante Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Professora Titular do PPGD da UNOESC.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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