A caminho dos seus 28 anos, como salvar a Constituição dos “constitucionalistas”? Breves reflexões sobre docência, doutrina e intérpretes

20/01/2016

Por Gisela Maria Bester - 20/01/2016

Há 20 anos, quando comecei a lecionar Direito Constitucional, observava que entre as rainhas das disciplinas jurídicas ainda estavam Introdução ao Estudo do Direito e Filosofia do Direito. Observava também que muitos professores, por óbvio, queriam lecioná-las, inclusive os mais novatos. E ouvia críticas, pertinentes, provindas dos mais experientes, de que IED e Filosofia do Direito não eram para serem cobiçadas por docentes recém-formados, graduados apenas, pois que eram matérias para professores mais experimentados, que tivessem maior vivência e olhar mais sistemático sobre todo o vasto orbe da Ciência Jurídica. Mais ou menos na linha waratiana de que só quem domina o todo, na sua completude e na sua mais alta sofisticação, pode explicar o início desse todo de forma adequada, inclusive simples! Neste contexto de discussões, sobre a conexão entre complexidade e simplicidade, lembrava-nos o gênio portenho, sempre, a linda história de Pablo Picasso com sua famosa e admirável série “corrida de touros”.

Alguns poucos anos depois comecei a ver que a disciplina menina dos olhos na docência jurídica passou a ser o Direito Constitucional, e muitos, mas muitos docentes, também recém-formados, independentemente de o Ministério da Educação exigir-lhes ou não maior qualificação, cobiçavam-na. Mais, as próprias direções das Faculdades de Direito diziam que “Constitucional qualquer um lecionava”. A essa concepção assisti não só na vida institucional diária, como também nos oito anos em que avaliei projetos de novos Cursos Jurídicos de Graduação no País, enquanto fiscalizadora ah doc, pelo MEC, quando essa realidade era espelhada nas listas de corpos docentes apresentadas pelas Instituições de Ensino Superior aos avaliadores, geralmente com seus currículos indigentemente documentados (não se vivia ainda a febre avassaladora e opressora das corridas pelos Lattes turbinados!). Por certo que ter um currículo fartamente documentado pode não significar ter didática, pode não redundar em um ótimo desempenho em sala de aula etc. etc., pois outros fatores somam-se no todo do exercício da docência jurídica (capacidade de alteridade, educação e cordialidade no trato interpessoal, pontualidade, pesquisa atualizada, levar a sério o que se faz, carisma e potencial de sedução para o conhecimento etc.), porém, é indício de que há bagagem de saberes ali, pela característica irrefutável de ser o conhecimento humano um fenômeno cumulativo. Em geral, quem sabe, sabe fazer, e bem, assim como quem sabe, e bem, quem faz, e bem, geralmente sabe também não ser preciso se refazerem caminhos (investigativos, metodológicos, epistemológicos e outros), cujo tempo investido seria, no mais das vezes, verdadeiramente perda de tempo e de energias, deixando de observar a sapientíssima lição de Boaventura de Sousa Santos: “contra o desperdício da experiência”, clamou o grande mestre da Sociologia Jurídica de Coimbra! Porém, para não desperdiçar a experiência, é preciso ter-se experiência (e experiências!).

E foi assim que a disciplina Direito Constitucional – talvez até por estar entre o rol das iniciais, nos Cursos de Graduação em Direito, tal como IED e Filosofia do Direito – ficou, por um bom tempo e em muitos lugares do País, nas mãos de docentes que nela viam – assim como suas IES – uma boa e “fácil” oportunidade de iniciarem no magistério. Poderiam perguntar-me: então como iniciar em uma disciplina sem antes ter tido experiência nela? Experiência em sala de aula é uma coisa; outra coisa é experiência no estudo detido, dirigido e profundo de seus conteúdos (via mestrados e doutorados sérios e reconhecidos, até especializações – ainda não avaliadas pelo MEC, mas no caminho de o serem). Desse modo poderíamos fugir, com tranquilidade, do paradoxo do primeiro emprego: ninguém o dava a quem não tivesse experiência, e nunca alguém teria experiência se não viesse a ter a famosa primeira chance. Também vivemos, disso bem recordo-me, logo após a entrada em vigor do nosso novo texto constitucional, em 1988, uma espécie de “limpeza” (foi esse mesmo o termo que usaram ao me selecionarem para contrato docente em uma tradicional Faculdade de Direito) no quadro docente de Direito Constitucional, cuja formação e estudo tinham sido sobre os textos constitucionais da época da ditadura, tratando-se de docentes que não tinham se atualizado – por ainda não terem tido tempo disso, ou por falta de interesse mesmo, uma vez que inúmeros professores constitucionalistas estavam raivosamente descontentes com as mudanças trazidas pela CF/88. No entanto, apesar disso tudo – registrado neste breve relato que aqui soa mais como reminiscência –, em paralelo foi-se assistindo a uma extraordinária qualificação e sofisticação do conhecimento produzido por uma leva de autores brasileiros, Constitucionalistas, que até hoje são extremamente respeitados, professores altamente dignos de tal disciplina jurídica e que a dignificaram com maestria. Nisso, o Brasil, apesar de ter copiado muita coisa, deu lição ao mundo jurídico ocidental de matriz civil law em muitos pontos, e até hoje o faz. O desenvolvimento de uma teoria/doutrina constitucional própria em muitos aspectos é ainda hoje admirado por muitos autores portugueses, por exemplo, cujo nível de qualificação é, reconhecidamente, elevadíssimo.

Contudo, quanto mais se sofisticou um discurso e mais se requintou uma doutrina, ao mesmo tempo delicada e poderosa em seu grau de irradiação hermenêutica, um mundo rasteiro de interpretações realmente rasas igualmente popularizou-se na seara do Direito Constitucional brasileiro, de modo a fazer perder a força de importantes institutos, conceitos, bens e valores, direitos e princípios. Já se fez isso com os danos morais, com a própria dignidade humana, parecendo agora que a categoria da vez é a sustentabilidade, obedecendo a ondas de modismos que, de tanto querer fortalecer – ou dele tudo tirar, à exaustão – um conceito, um direito, um princípio, acabam por enfraquecê-lo, pela via da banalização, leviana e irresponsável, levando ao descrédito o potencial de concretização intrínseco que possui.

É difícil dizer-se se isto é um paradoxo, ou se é, precisamente, o resultado avesso e perverso da mais alta sofisticação, até muitas vezes lida, mas não “compreendida” e “apreendida” por uma leva imensa de “constitucionalistas”, no caso com “c” minúsculo mesmo e entre aspas. É que muitos pretensos juristas passaram a achar-se, também, pretensos constitucionalistas. E é justamente desses constitucionalistas “aspeados”, menores em qualidade, mas gigantes em número, que a Constituição precisa ser salva! Estudo Hermenêutica por causa do Direito Constitucional, mas nem por isso me acho apta a lecionar Filosofia do Direito, ou arvoro-me no direito de intitular-me filósofa do Direito e de manifestar-me como tal. Vejo, no entanto, muitos, mas muitos colegas, dizerem-se constitucionalistas, quando na verdade são filósofos do Direito, são internacionalistas públicos, são da Introdução ao Estudo do Direito, são penalistas, processualistas penais etc. Podem ser – e geralmente o são – excelentes em suas áreas de atuação docente, assim como ninguém é dono de disciplina alguma, porém, cada Disciplina autônoma no Direito possui seus códigos de estudo, sua linguagem própria, sua leva de autores clássicos e de vanguarda a ser estudada com afinco, sua historiografia. Querer ser-se o que não se é, aliás, parece-me já um problema de hermenêutica. Por outro lado, a crítica a quem não “bem” interpreta a Constituição poderia vir a ferir a linhagem de pensamento de Peter Häberle, ao defender uma ampla abertura na composição da “sociedade” dos intérpretes da Constituição. Respostas para este dilema, para além do princípio que sempre lembro – o do dever de fidelidade constitucional –, não tenho, por isso mesmo suscito a discussão.

Finalizo repetindo um apelo de Constitucionalistas. Há muito tempo que se pede, não só agora no ano do seu vigésimo oitavo aniversário: tomemos nossa Constituição a sério, para que tenha vida longa, admirada que é, apesar de todos os seus defeitos, não só por juristas, mas também por sociólogos e outros cientistas de vários países, e por muitos Constitucionalistas nacionais com cê maiúsculo. Levemos a Constituição a sério, para que siga ela mesma nos levando longe, já que longe de se verem esgotadas estão suas potencialidades de nos emancipar, nos igualizar, nos promover para a vida plena, nos dignificar.


Gisela Maria BesterGisela Maria Bester é Professora de Direito Constitucional. Colaboradora convidada no Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania, do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA) e no Colégio de Professores da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Mestre (UFSC), Doutora (UFSC e Universidad Complutense de Madrid) e Pós-Doutora em Direito pela Universidade de Lisboa. Integrou o Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da Universidade Federal do Tocantins (UFT/CEP), e o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, do Ministério da Justiça. Consultora da CAPES. Pesquisadora do CNPq. Advogada constitucionalista. Diretora Geral da ESA-TO (Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Tocantins). Presidente da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB TO. Integrante Consultora da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB. Professora Titular do PPGD da UNOESC.


Imagem Ilustrativa do Post: 350/365 - 9/23/2011 // Foto de: Gabriela Pinto // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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