80 ANOS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: RUMO AO FUTURO OU FIRMES NO PASSADO?[1]    

04/01/2022

“Examinar e problematizar as relações entre a História e o Direito reveste-se da maior importância, principalmente quando se tem em conta a percepção da normatividade extraída de um determinado contexto histórico definido como experiência pretérita que conscientiza e liberta o presente.”[2]

O atual Código de Processo Penal entrou em vigor exatamente no dia 1º. de janeiro de 1942, época em que o processo penal brasileiro era normatizado, basicamente, pelo Decreto nº. 4.824 e pela Lei nº. 2.033/1871, situação que perdurava desde a proclamação da República.

Com a promulgação da primeira Constituição de nossa era republicana, e atenta ao espírito federalista que a dominava, os Estados da federação passaram a ter a inciativa legislativa para a normatização de suas respectivas leis processuais (penais e civis), ressalvando-se apenas aquelas que dissessem respeito às normas atinentes à Justiça Federal.[3] Tratava-se, na verdade, e nas palavras de Vicente de Azevedo, de mais uma imitação da carta constitucional dos Estados Unidos da América do Norte.[4]

Com efeito, dispunha o art. 34, nº. 23, de nossa primeira Constituição republicana, competir privativamente ao Congresso Nacional legislar sobre Direito Civil, Direito Comercial e Direito Criminal, além do Direito Processual da Justiça Federal.

A partir dessa disposição constitucional, e cindida que restara a unidade do Direito Processual (Civil e Penal), quase todos os Estados da federação passaram a ter os seus próprios Códigos de Processo Civil e Penal[5]. O Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, foi um dos que promulgaram o seu próprio Código de Processo Penal, merecendo, inclusive, os Comentários de Florêncio de Abreu e Silva.[6]

Alguns outros, como São Paulo, apesar de ter o seu Código de Processo Civil e Comercial, continuaram com a velha legislação imperial - especialmente o Decreto nº. 4.824 e a Lei nº. 2.033/1871 -, com alguns acréscimos feitos por leis estaduais. A propósito de São Paulo, aliás, Vicente de Azevedo escreveu que o Estado “atravessou todo o período republicano, até a promulgação do atual Código de Processo Penal, em regime de verdadeira balbúrdia em matéria de legislação de processo penal, pois ainda estavam em vigor inúmeras leis do tempo do Império, anteriores algumas, ao próprio Código de Processo Criminal; e numerosas leis estaduais, promulgadas sem ordem, nem sistema.”[7]

Assim, e conforme João Mendes de Almeida Junior, “os Estados em geral, mantiveram, com poucas variantes, a organização judiciária e policial e o processo do tempo do Império, mesmo porque, por maior que fossem as suas autonomias, não podiam afastar-se dos princípios constitucionais da União, tanto no que dizia respeito à organização judiciária, como no tocante ao processo de ação penal, cujas formas estavam subordinadas aos princípios reguladores dos direitos de acusação e de defesa, então determinados no art. 407 do Código Penal da República.”[8]

Ainda sob o enfoque histórico, Frederico Marques afirmou que “o golpe dado na unidade processual não trouxe vantagem alguma para nossas instituições jurídicas; ao contrário, essa fragmentação contribuiu para que se estabelecesse acentuada diversidade de sistemas, o que, sem dúvida alguma, prejudicou a aplicação da lei penal; postos em vigor vários códigos estaduais, os mais diversos princípios foram adotados.”[9]

Também assim pensava João Mendes de Almeida Junior, para quem essa descentralização das normas de processo penal “não trazia vantagem alguma, quer para a segurança social, quer para a defesa dos direitos individuais, e não tinha, em geral, fundamento na natureza do movimento da ação judiciária; longe de simplificar, mais complicava as formalidades do processo.”[10]

Com a Constituição de 1934 a situação foi modificada e a unidade processual brasileira passou a ser exigida no texto constitucional, mais exatamente no seu art. 5º., inciso XIX, estabelecendo-se que competia à União, privativamente, legislar sobre Direito Penal, Direito Comercial, Direito Civil, Direito Aéreo, Direito Processual, além da matéria relativa aos registros públicos e às juntas comerciais.

A Constituição de 1937 dispunha de maneira idêntica, mais exatamente no seu art. 16, inciso XVI, competindo à União, privativamente, o poder de legislar sobre Direito Civil, Direito Comercial, Direito Aéreo, Direito Operário, Direito Penal e Direito Processual.

Conforme Vicente de Azevedo, “a unificação da legislação processual foi, sem dúvida, medida acertada, pois não se justificava, doutrinariamente, a pluralidade de leis processuais, variando de Estado para Estado.”[11]

Para viabilizar essa unidade processual foi nomeada pelo Ministro da Justiça e Negócios Interiores, Dr. Francisco Campos[12], uma Comissão de juristas para elaboração de um projeto de Código de Processo Penal, destacando-se, dentre os seus integrantes, os juristas Nelson Hungria, Roberto Lyra e Cândido Mendes, dentre outros, cujo trabalho resultou no atual Código de Processo Penal, promulgado no dia 03 de outubro de 1941, por meio do Decreto-Lei nº. 3.689, cuja vigência, coincidindo com a do Código Penal, deu-se no dia 1º. de janeiro de 1942, conforme estabelecia o seu art. 810; também foi promulgada a Lei de Introdução ao Código de Processo Penal, por meio do Decreto-Lei nº. 3.931, em 11 de dezembro de 1941.[13]

O resultado do trabalho dessa Comissão foi, nas exatas palavras de Frederico Marques, “defeituoso e arcaico, não sabendo dotar o país de um estatuto moderno, à altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal, deixando-se sentir os influxos autoritários do Estado Novo”, de maneira que, “a exemplo do que se fizera na Itália fascista, esqueceram os nossos legisladores do papel relevante das formas procedimentais no processo penal e, sob o pretexto de pôr cobro a formalismos prejudiciais, estruturou as nulidades sob princípios não condizentes com as garantias necessárias ao acusado, além de o ter feito com um lamentável confucionismo e absoluta falta de técnica.”[14]

No mesmo sentido escreveu Vicente de Azevedo, lamentando que, “elaborado durante o período ditatorial, não tenha sido solicitada a colaboração dos juristas do país, por meio da publicação larga e antecipada do projeto, prática dos países onde vige o regime democrático, cujas vantagens são manifestas.”[15]

Na verdade, é importante ressaltar, ainda sob o aspecto histórico, que mesmo antes do golpe de 1937, a legislação brasileira já dava sinais claros de recrudescimento, especialmente as leis de natureza criminal;[16] tal fato deu-se muito em razão da frustrada insurreição comunista, iniciada em 23 de novembro de 1935, movimento político que serviu de pretexto para que Getúlio Vargas endurecesse a legislação e asfixiasse as liberdades democráticas, impondo-se ditador e iniciando um período autoritário de oito anos.[17]

Neste período, “a repressão se abateu sobre todos os opositores do regime, independentemente da simpatia ou não (como a maioria) pelos comunistas. Para se ter uma ideia da repressão política à época, entre novembro de 1935 e maio de 1937 foram detidas 7.056 pessoas, número tão elevado que não havia prisões suficientes e navios de guerra foram improvisados como presídios.”[18]

Confirmando esse dado histórico, observa-se que em 11 de setembro de 1936, por meio da Lei nº. 244, foi criado o Tribunal de Segurança Nacional, subordinado à Justiça Militar e com competência para julgar os crimes tipificados na vigente Lei de Segurança Nacional, que até então eram da competência da Justiça Federal. Com a Carta extraparlamentar de 1937, aquela previsão legal passou a constar expressamente no seu art. 122, nº. 17, e o Tribunal de Segurança Nacional só viria a ser extinto em 1945 pela Lei Constitucional nº. 14/45.[19] Era, afinal, a lógica da doutrina de segurança nacional imposta pelo Estado Novo.”[20]

Portanto, fez-se esse aligeirado escorço histórico para tentar contextualizar o surgimento do atual Código de Processo Penal, afinal “todo estudo mais completo do direito brasileiro precisa sair de nossas fronteiras e se projetar no passado em busca de suas raízes mais profundas, utilizando o passado de um modo vivo, dinâmico e útil, e não de um modo estático e tolo, semelhante ao do turista inculto que ´coleciona` visitas a museus e entradas de cinemas estrangeiros; o estudo histórico da realidade jurídica não é só lícito, como também necessário."[21]

Neste sentido, observa-se que o atual Código de Processo Penal, nada obstante algumas reformas pontuais já realizadas, deita suas raízes em um período de exceção da história política e jurídica brasileira, em que predominava a ideia de um modelo inquisitivo de processo penal que, como observa Bittar, “passou, ao longo dos tempos, a representar forte instrumento de repreensão social e comportamental, e deixou de ser propriamente um meio para a colheita de provas e julgamento de culpados, para tornar-se fim em si mesmo, uma bem organizada trama para ceifar cabeças.”[22]

Assim, o seu surgimento em pleno Estado Novo traduziu de certa forma a ideologia política de então, afinal, como se sabe, “as leis são e devem ser a expressão mais exata das necessidades atuais do povo, levando-se em consideração o conjunto das contingências históricas nas quais foram promulgadas.”[23]

Se o atual Código de Processo Penal teve a (única) vantagem de proporcionar a homogeneidade do processo penal brasileiro, trouxe consigo o ranço de um regime autoritário e contaminado pelas ideias fascistas, muito ao contrário, aliás, do que escreveu na Exposição de Motivos o Dr. Francisco Campos: “Se o Código não transige com as sistemáticas restrições ao poder público, não o inspira, entretanto, o espírito de um incondicional autoritarismo do Estado ou de uma sistemática prevenção contra os direitos e garantias individuais.” Não era verdade...

Dessa maneira, o atual código continua com alguns dos mais graves vícios próprios da legislação processual penal dos anos quarenta do século passado, olvidando-se, em muitos dos seus dispositivos, o princípio acusatório, não tutelando satisfatoriamente direitos e garantias fundamentais do acusado previstos na Constituição de 1988, assistemático e confuso em alguns dos seus títulos e capítulos, bastando citar, por todos, a disciplina dada à questão das nulidades.         

Razão, portanto, tem Jacinto Nelson de Miranda Coutinho quando diz que “a questão é tentar quase o impossível: compatibilizar a Constituição da República, que impõe um Sistema Acusatório, com o Direito Processual Penal brasileiro atual e sua maior referência legislativa, o CPP de 41, cópia malfeita do Codice Rocco de 30, da Itália, marcado pelo princípio inquisitivo nas duas fases da persecutio criminis, logo, um processo penal regido pelo Sistema Inquisitório. Lá, como é do conhecimento geral, ninguém duvida que o advogado de Mussolini, Vincenzo Manzini, camicia nera desde sempre, foi quem escreveu o projeto do Codice com a cara do regime.”[24]

Eis a razão pela qual é preciso urgência na aprovação de um novo Código de Processo Penal, no qual se estabeleça um processo efetivamente de modelo acusatório, observando-se o seu princípio fundante (acusatório) e os seus outros postulados e regras, como a publicidade, a oralidade, o contraditório, a ampla defesa, a iniciativa instrutória a cargo exclusivamente das partes, a imparcialidade do Juiz e tantos outros.[25]

Neste aspecto, observa-se que “o Direito processual dos países latino-americanos, observado no seu conjunto, ingressou, a partir da década de 80, em um período de reformas totais, que, para o leitor europeu, pode ser comparada com a transformação que sofreu o Direito processual penal da Europa continental durante o século XIX. Não se trata, assim, de modificações parciais em um sistema adquirido e vigente, mas, pelo contrário, de uma modificação do sistema segundo outra concepção de processo penal. Descrito sinteticamente, pode-se dizer que este processo de reformas consiste em derrogar os códigos antigos, tributários dos últimos exemplos da Inquisição – recebida com a conquista e a colonização do continente -, para sancionar, mais ou menos, leis processuais penais conformes o Estado de Direito.”[26]

Com efeito, as reformas processuais penais já feitas em toda a América Latina e mesmo na América Central são frutos, na verdade, das modificações no sistema político destes países que foram, paulatinamente, saindo de períodos autoritários para regimes democráticos, como se a redemocratização impulsionasse o sistema processual do tipo inquisitivo para o sistema processual acusatório.

Assim, a “uniformidade legislativa latino-americana – na verdade compreendendo agora a comunidade cultural de fala luso-espanhola – apoiada em bases comuns e sem prejuízo das características próprias de cada região, é uma velha aspiração de muitos juristas do nosso continente. Além disso, ela foi o sonho de alguns grandes homens, fundadores de nossos países ou de nossas sociedades políticas. Em nossos países, geralmente, a justiça penal tem funcionado como uma ‘caixa-preta’, afastada do controle popular e da transparência democrática. O apego aos rituais antigos; as fórmulas inquisitivas, que na cultura universal já constituem curiosidades históricas; a falta de respeito à dignidade humana; a delegação das funções judiciais; o segredo; a falta de imediação; enfim, um atraso político e cultural já insuportável, tornam imperioso começar um profundo movimento de reforma em todo o continente.”[27]

É inquestionável a estreita ligação entre o sistema processual penal de um país e o seu regime político; neste sentido, um país democrático, evidentemente, deve possuir, até porque a sua Constituição assim o obrigaria, um Código de Processo Penal que adote um processo de modelo acusatório, eminentemente garantidor.[28] Ao contrário, no autoritarismo[29], o processo penal, a serviço do poder, olvida os direitos e garantias individuais, privilegiando um processo de modelo inquisitivo, caracterizado, como escreveu Ferrajoli, por “uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e em sua capacidade de alcançar a verdade, confiando às presumidas virtudes do poder que julga, não somente a verdade como também a tutela do inocente.”[30]

É evidente que o ideal será uma reforma total, completa, que propicie uma harmonia (possível) no sistema processual penal; mas, como se sabe, prefere-se, até agora, reformas pontuais, tópicas, insuficientes para adequar o processo penal brasileiro aos postulados constitucionais e ao sistema acusatório que se impõe na maioria dos sistemas processuais, e na prática demonstrou ser muito mais eficaz, tanto do ponto de vista da investigação, como para preservar as garantias processuais.[31] Neste sistema, ademais, veda-se que o Magistrado realize as funções da parte acusadora[32], que aqui surge com autonomia e sem qualquer relacionamento com a autoridade encarregada do julgamento[33].

Aqui, como alhures, sempre é importante a lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: "Não é despiciendo, ademais, retomar, ainda que brevemente, o argumento referente à qualidade das reformas globais ou parciais, mesmo porque traz à baila a questão principiológica. Com efeito, em favor da parcialidade fala uma desconfiança – não de todo improcedente – na direção do Parlamento, principalmente em se tratando do nosso. De qualquer sorte, as reformas parciais não têm sentido quando em jogo está uma alteração que diga respeito à estrutura como um todo, justo porque se haveria de ter um patamar epistêmico do qual não se poderia ter muita dúvida. Isso, todavia, não é o que se passa com o sistema processual penal onde, antes de tudo, não se consegue sequer delimitar corretamente o conceito de sistema que, a toda evidência, deveria, no nosso campo, partir da noção kantiana, ou seja, fundada na noção de princípio unificador, por sinal protocelular. Ademais, a Constituição da República de 88 traçou, como se sabe, uma base capaz de, sem muito boa vontade, enterrar grande parte do atual CPP, marcado pela concepção fascista do processo penal e ancorado na tradição inquisitória, inclusive da fase processual da persecução, só não percebida por todos em razão da pouca perquirição que se faz das suas matrizes ideológicas e teóricas, a começar pelo velho código de processo penal italiano e seu inescrupuloso difusor e defensor, camìcia nera de todos os instantes, Vincenzo Manzini. Que ele foi um vigoroso articulador teórico do processo penal italiano não se pode negar; mas que era um terrível fascista – e expressa isso em sua obra – também não. Pior, porém, é o que se passa com a doutrina nacional, alienada em relação a problema do gênero, como sucedeu, por infelicidade – não se pode crer em outro fundamento – com José Frederico Marques, o primeiro grande escritor, no Brasil, de um direito processual penal que queria superar a base praxista da ritualística de antes da polêmica Windscheid versus Muther e, por isso, ajudou a formar toda uma geração de processualistas que, não se dando conta das raízes espúrias do ramo, não poucas vezes pregam uma democracia processual com um discurso fundamentalmente antidemocrático. Assim, não é fácil evoluir; não é fácil avançar na direção da concreção da democracia processual; não é possível proceder ao necessário corte epistemológico; e as mudanças – qualquer uma – tendem a manter, como sugeriu Lampedusa, tudo como sempre esteve."[34]

Nesse sentido, aponta-se, por exemplo, as alterações introduzidas no Código de Processo Penal pelas Leis nºs. 10.792/03, 11.719/08, 12.403/11 e 13.964/19; tais ajustes, longe de representarem uma verdadeira ruptura com o sistema inquisitório, ao contrário e de certa maneira, fortalece-o, pois a convivência dentro de um mesmo código de dispositivos tão díspares é inteiramente impossível, exigindo-se do intérprete um esforço hercúleo, cujos resultados nem sempre são satisfatórios.

A situação ainda é mais alarmante - e mesmo desalentadora! - quando se percebe um certo mau grado de grande parte dos que atuam no sistema de justiça criminal em aceitar uma conformidade do nosso processo penal com o princípio acusatório (fundamento dos fundamentos, para lembrar mais uma vez de Jacinto Coutinho), cujas bases estão estabelecidas na própria Constituição Federal.

Assim, lembra-se as reações que houve quando foram acrescentados no Código de Processo Penal os arts. 3º.-A (“o processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”) e 3º.-B. (criando o Juiz das Garantias[35]), muitas delas, inclusive, oriundas do Poder Judiciário e do Ministério Público, teimando-se em conservar o processo penal brasileiro como aquele concebido nos anos 40 do século passado, de tendência rigorosamente fascista, autoritária e inquisitorial, como se demonstrou no início. Vê-se, portanto, como é difícil reformar e “refundar” (Fauzi) o processo penal brasileiro, salvando-o, de uma vez por todas, da idade das trevas.

A propósito, Falcone explica que “o modelo acusatório pretendeu devolver ao investigado/acusado a qualidade de sujeito de direitos, o que o procedimento inquisitivo negava, transformando-o em um mero objeto de um procedimento inquisitivo, presidido por um juiz instrutor e de acusação.”[36]

Observa-se que no sistema acusatório estão perfeitamente definidas as funções de acusar, de defender e a de julgar, sendo vedado ao Juiz proceder como órgão persecutório e de gestor da prova. É conhecido o princípio do ne procedat judex ex officio, verdadeiro dogma do sistema acusatório. Nele, segundo Juan-Luís Gómez Colomer, “há necessidade de uma acusação, formulada e mantida por pessoa distinta daquela que vai julgar, para que se possa abrir e celebrar o processo e, consequentemente, se possa condenar.”[37]

Nada obstante, vê-se sempre alguém defendendo o protagonismo do Juiz no processo penal, muitas vezes a partir da ideia de que se deve buscar uma verdade real, legitimadora de toda e qualquer possibilidade de atuação jurisdicional, ainda que meramente persecutória.

Neste aspecto, faz-se referência a Muñoz Conde, especialmente quando afirma que “o processo penal em um Estado de Direito não somente deve procurar o equilíbrio entre a busca da verdade e a dignidade dos acusados, mas também deve entender a verdade mesma, não como uma verdade absoluta, mas como o dever de apoiar uma condenação somente quando, indubitável e intersubjetivamente, possa se dar como provado o fato. Tudo o mais é puro fascismo e representa a volta aos tempos da Inquisição, dos quais se supõe termos felizmente saído.”[38]

Mais grave ainda, é quando se busca a verdade material ou substancial, certamente aquela “carente de limites e de fins legais, alcançável a partir de qualquer meio e perseguida fora de regras e controles, degenerando-se em um juízo de valor amplamente arbitrário do fato, resultando inevitavelmente numa concepção autoritária e irracionalista do processo penal”.

Para o jurista italiano, contrariamente, a verdade formal ou processual é alcançada “mediante o respeito a regras precisas, relativas somente aos fatos e circunstâncias penalmente relevantes. Esta verdade não pretende ser a verdade; não pode ser obtida mediante indagações inquisitivas alheias ao objeto processual, estando condicionada em si mesma pelo respeito aos procedimentos e às garantias da defesa. É, em suma, uma verdade mais controlada quanto ao método de aquisição, nada obstante mais reduzida quanto ao conteúdo informativo de qualquer hipotética ´verdade substancial´”.[39]

Afinal, conforme ensina Jacinto Coutinho, “o discurso sobre a Verdade/verdade é eficaz e seduz as pessoas que buscam nele o arrimo necessário para sua segurança.”[40]

Ora, como sempre entendeu Maier, “o Direito Processual Penal do Estado de Direito significa agregar às condições materiais do castigo ou da pena, condições formais para os órgãos do Estado que a decidem ou que administram o poder penal do Estado.” Segundo ele, sinteticamente, seis seriam tais condições formais a que se referia: a) o princípio nemo tenetur; b) o princípio da inocência; c) o princípio da formalização do procedimento; d) as máximas relativas ao juiz natural e à imparcialidade; e) o princípio ne bis in idem; f) a garantia do recurso para o condenado.

Destarte, estas condições, dentre outras, “exigem uma concepção do procedimento penal anterior à aplicação da pena, que legitime a decisão estatal, concedendo-se ao imputado uma oportunidade para tentar evitá-la, mediante refutação da imputação contra ele dirigida, dos elementos de prova e dos fundamentos que pretendem confirmar aquela decisão.”[41]

No Brasil, ao contrário, e como já notado, ainda se quer mudar o processo penal a partir de leis aditivas ao código e à legislação esparsa, esquecendo-se, no mínimo, de três aspectos:

1) Estas mudanças havidas pontualmente, sem que haja uma reforma de todo o Código de Processo Penal são absolutamente incapazes de alterar, efetivamente, o sistema processual penal de um país. Não basta, por exemplo, dizer-se acusatória a estrutura do processo penal, mantendo-se em seguida uma incrível série de dispositivos que traduzem, de uma maneira absurda, um processo penal de estrutura inquisitiva. Neste aspecto, não se pode querer reformas, mas a reforma.

2) Antes de se mudar a lei, é preciso que os sujeitos do processo – e, mesmo, os de antes do processo e, até, os de depois – reformulem-se! Isso é muito, mas muito mais importante, que apenas a alteração da lei (ainda mais quando a modificação é meramente pontual). É preciso que a reforma da Justiça penal seja precedida de uma verdadeira mudança de paradigmas, não somente legais, mas, verdadeiramente, no modo de pensar e, especialmente, de praticar e de atuar (Binder). E prática exige treino, e treino pressupõe vontade de se aperfeiçoar.

3) É necessário que, ao lado das eventuais (e até justificáveis) comemorações pelos avanços acaso conseguidos (ainda que a partir de reformas pontuais), saiba-se que as inúmeras outras alterações havidas na legislação criminal brasileira (oriundas, por exemplo, do chamado Pacote Anticrime) foram, sobretudo, uma vitória de Pirro, pois são, na verdade e no conjunto, um tremendo retrocesso, e de uma desesperança quase aviltante. Assim, e no geral, priorizou-se o aumento (inútil) de penas, a criação de novos tipos penais, a impossibilidade (inconstitucional) de concessão da liberdade provisória, a possibilidade (inconstitucional) de cumprimento imediato de sentença penal condenatória proferida no Júri, o agravamento (inconstitucional) das condições de cumprimento do Regime Disciplinar Diferenciado, ao lado da flexibilização dos requisitos para nele ser inserido, o recrudescimento das exigências relacionadas ao direito penitenciário, inclusive, a possiblidade (inconstitucional) do monitoramento da correspondência escrita do preso, o endurecimento do sistema de progressão do regime prisional, a não observância (inconstitucional) do nemo tenetur se detegere, a legitimação do flagrante preparado (inadmitido pela Súmula 145 da Suprema Corte), o incentivo (aético) ao dedurismo, com a previsão do “informante do bem” (expressão que traz consigo uma contradição em si mesma), além de tantas outras.

O Processo Penal é, antes de tudo, conforme Binder, “um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado, procurando-se evitar que o uso deste poder converta-se em um fato arbitrário. Seu objetivo é, essencialmente, proteger a liberdade e a dignidade da pessoa”[42]

Neste sentido, não há dúvidas que todo o conjunto de garantias penais reconhecidas, defendidas e buscadas pelos penalistas seria “incompleto se não fosse acompanhado pelo conjunto correlativo ou, melhor dito, subsidiário das garantias processuais, expressadas pelos princípios que respondem a nossas duas últimas perguntas, ´quando´ e ´como julgar`: a presunção de inocência até prova em contrário, a separação entre acusação e juiz, a carga da prova e o direito do acusado à defesa.”[43]                       

Vê-se, portanto, que no Brasil ainda não se fez uma verdadeira e consistente reforma processual penal, ao contrário dos países da América Central e da América do Sul; e, segundo Maier, “não parece que as reformas implementadas, em particular o processo público e oral como base inevitável da sentença penal, possam retroceder ao estado legislativo anterior a elas, sendo improvável (ainda que não impossível) um regresso a práticas autoritárias na arena política, nada obstante as dificuldades, sobretudo as de natureza econômico-sociais, que atravessam os países da região.”[44]

Enfim, ainda estamos longe, muito longe, de um processo penal de feição acusatória, sendo de se louvar aqueles que, entre nós, lutam diariamente, seja no foro ou na academia, para a consecução de uma mudança estrutural e estruturante do modelo de processo penal.

Ademais, não se pode esquecer uma questão crucial para qualquer que seja a discussão sobre problemas brasileiros, inclusive jurídicos e, mais particularmente, que envolvam o poder punitivo e as respectivas agências estatais de poder: a nossa estúpida desigualdade, fruto de uma origem escravocrata e patrimonialista.

Neste sentido, importante notar, com Tercio Sampaio, que “a Constituição Federal tem na igualdade um de seus núcleos basilares. Porém, é particularmente significativa a questão da desigualdade econômica. É esse ´jogo` entre a igualdade de direito e a desigualdade de fato, pela percepção das diferenças, uma das questões cruciais de nossa era. Entender como se configura o perfil da igualdade/desigualdade econômica parece uma tarefa simples, mas é merecedora de uma reflexão. Ora, isso parece conduzir à percepção de que o ´preço` da desigualdade persiste como um desafio para o mundo que estaria surgindo hoje dessas transformações: entre a proclamação formal dos direitos e o real estatuto político dos indivíduos e dos grupos, como lidar com as diferenças? De certo modo, nem igual nem desigual, mas diferente, a diferença estende-se em um vasto espaço ocupado por formas antigas e novas de violência, desde o uso ostensivo da vis (força física: polícia, forças armadas) até as sutilezas do acesso social funcionalmente assegurado, mas estruturalmente escamoteado (problema do estabelecimento de cotas). E o futuro, o que nos reserva o futuro?”[45]

Definitivamente, "não sabemos para onde estamos indo. Só sabemos que a história nos trouxe até este ponto e por quê. Contudo, uma coisa é clara. Se a humanidade quer ter um futuro reconhecível, não pode ser pelo prolongamento do passado ou do presente. Se tentarmos construir o terceiro milênio nessa base, vamos fracassar. E o preço do fracasso, ou seja, a alternativa para uma mudança da sociedade, é a escuridão."[46]

Assim, e para concluir, “o grande desafio que a sociedade civil encontra à sua frente nestes primeiros anos do século XXI é o de repudiar com força todas as formas de controle penal baseadas nesta ´vocação totalitária do Estado`.” Para isso, é preciso traçar um novo percurso, “longo e não menos fácil, na tentativa de desmantelar discursos e práticas comuns no cotidiano das relações entre os súditos que ainda tentam se tornar cidadãos e o Soberano Estado, que sempre teima, com as suas tendências totalitárias, em exercer, mesmo que esteja limitado, o seu poder absoluto sobre todos.”[47]

 

Notas e Referências

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[1] Texto originalmente publicado na obra coletiva “Código de Processo Penal – Estudos comemorativos aos 80 anos de vigência”, publicada pela Editora Revista dos Tribunais (2021), e coordenada pelo Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Rogério Schietti Cruz e pelos Professores Guilherme Madeira e Gustavo Badaró.

[2] WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 23.

[3] ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et alii. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 474.

[4] AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Curso de Direito Judiciário Penal - 1º. Volume, São Paulo: Saraiva, 1958, p. 41. O velho jurista brasileiro, certamente, nunca imaginaria que em pleno século XXI esta imitação continuaria tão amiúde em nossa legislação penal e processual penal. Sobre essa influência norte-americana na Constituição de 1891, escreveu Aurelino Leal: “a influência americana é a que se percebe, até porque aos Estados Unidos coube exercer sobre toda a América Latina uma ação profunda e decisiva. No entanto, a cópia não foi servil. Com o contraste exercido pelo Congresso Constituinte sobre o projeto, foi este convertido em lei fundamental do país com modificações importantes. Pode mesmo dizer-se que em certos pontos nos curvamos à evolução e adotamos soluções que estão sendo pleiteadas em caminho de sucesso nos Estados Unidos.” (LEAL, Aurelino. História Constitucional do Brasil. Brasília: Senado Federal, 2002, p. 226).

[5] AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Obra citada, p. 41.

[6] ABREU E SILVA, Florêncio de. Novos Commentarios ao Código de Processo Penal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editores Barcellos, Bertaso & Cia., 1922. Segundo ele, não se tratava de um livro de erudição, pois sem aprofundamento em doutrinas ou em divagações teoréticas, procurando dar ao “trabalho um cunho mais prático do que teórico, facilitando aos iniciados nos árduos misteres da vida do foro a aplicação da lei aos casos concretos, segundo a doutrina corrente e a orientação da jurisprudência dos nossos tribunais.” (p. 3).

[7] AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Obra citada, p. 42.

[8] ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. O Processo Criminal Brasileiro, Volume I. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1959, p. 220.

[9] MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual PenalVolume I. Campinas: Bookseller, 1998, pp. 104 e 105.

[10] ALMEIDA JUNIOR, João Mendes de. Direito Judiciário Brasileiro. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1960, p. 439.

[11] AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Obra citada, p. 42.

[12] Conhecido como Chico Ciência, Francisco Campos era um velho defensor do autoritarismo e que odiava as formas democráticas de governo; com a ascensão do fascismo e do nazismo, associou seu ultraconservadorismo à última moda europeia. (VILLA, Marco Antonio. A história das Constituições brasileiras – 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011, p. 65). Aliás, “os professores de direito desempenharam um papel importante no declínio do direito durante o terceiro Reich, pois conseguiram dar uma roupagem filosófica aos atos arbitrários e aos crimes dos nazistas, que sem esse disfarce seriam reconhecidos como atuações claramente ilegítimas. Praticamente não houve arbitrariedade alguma perpetrada pelos nazistas que não houvesse sido reconhecida durante o regime como ´supremamente justo` e que não houvesse sido defendido depois da guerra pelos mesmos acadêmicos, valendo-se dos mesmos duvidosos argumentos quanto à sua ´justificação` ou a sua ´conveniência` desde um ponto de vista jurídico." (MÜLLER, Ingo. Los juristas del horror. Bogotá: Inversiones Rosa Mística, 2009, p. 101).

[13] Sobre estes dois juristas brasileiros, veja-se o texto de Carlos Henrique Aguiar Serra: O pensamento jurídico-penal de Roberto Lyra e Nélson Hungria nos anos 1937-1964: estilos e visões teóricas diferentes (KOERNER, Andrei – Organizador. História da Justiça Penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCrim, 2006, pp. 153-175). Segundo o autor, o pensamento jurídico-penal de Nélson Hungria configurava-se “como liberal conservador, capaz de num dado momento histórico ser completamente hermético e autoritário e noutro momento adotar um enfoque mais humanista e amplo.” Já em relação a Roberto Lyra, “o pensamento jurídico-penal, embora também com seus limites históricos, caminha para outra direção, adotando outro enfoque acerca do Direito Penal, menos hermético e dogmático, aproximando-se principalmente da Sociologia e da Criminologia.”

[14] MARQUES, José Frederico. Obra citada, p. 108.

[15] AZEVEDO, Vicente de Paulo Vicente de. Obra citada, p. 43.

[16] Nada obstante, é também importante ressalvar que “a literatura brasileira, em geral, promove uma simplificação grosseira em sua análise do período que vai de 1930 a 1945, detendo-se na casca aparente das formas políticas, especialmente no caráter ditatorial do Estado Novo. Não surpreende que seja assim, porquanto mesmo entre historiadores e cientistas políticos a complexidade daqueles acontecimentos desafia ainda hoje interpretações simplistas, que não logram compreendê-los por completo e vêm sendo questionadas.” (ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo et alii. Direito Penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, pp. 461 e 462).

[17] PAULA, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro – Das origens lusas à Escola Crítica do Processo. Barueri: Manole, 2002, p. 324.

[18] VILLA, Marco Antonio. A história das Constituições brasileiras – 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011, pp. 62-64.

[19] Segundo José Frederico Marques, tratava-se “do que havia de mais iníquo e inquisitorial, policialesco e reacionário, em matéria de procedimento penal. O inquérito policial, além de possuir o caráter de formação de culpa, era tido, até prova em contrário, como verdadeiro – o que significa que as garantias de uma instrução contraditória e jurisdicional ficaram abolidas. E o réu, após essa formação da culpa em segredo e arbitrária, da polícia-política, via-se de mãos amarradas, frente aos juízes especiais do Tribunal (todos da confiança do Executivo), pois não podia arrolar mais que duas testemunhas de defesa, devendo proferir alegações orais num exíguo espaço de tempo.” (MARQUES, José Frederico. Obra citada, p. 109). Durante os nove anos de sua existência, o Tribunal de Segurança Nacional condenou mais de quatro mil pessoas, entre elas o escritor Monteiro Lobato (VILLA, Marco Antonio. A história das Constituições brasileiras – 200 anos de luta contra o arbítrio. São Paulo: Leya, 2011, p. 74). No livro Memórias do Cárcere, Graciliano Ramos, uma das vítimas do regime, escreveu: “o interrogatório, as testemunhas, as formalidades comuns em processos, não apareciam. Nem uma palavra de acusação. Permaneceríamos talvez assim. Com certeza havia motivo para nos segregarem, mas aquele silêncio nos espantava. Por que não figuramos em autos, não arranjavam depoimentos, embora falsos, num simulacro de justiça? Farsas, evidentemente, mas nelas ainda nos deixariam a possibilidade vaga de mexer-nos, enlear o promotor? Um tribunal safado sempre vale qualquer coisa, um juiz canalha hesita ao lançar uma sentença pulha: teme a opinião pública, em última análise o júri razoável. É esse medo que às vezes anula as perseguições. Não davam mostra de querer submeter-nos a julgamento. E era possível que já nos tivessem julgado e cumpríssemos pena, sem saber. Suprimia-nos assim todos os direitos, os últimos vestígios deles. Desconhecíamos até o foro que nos sentenciava.” (RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere, Volume I. São Paulo: Livraria Martins Editora, 6ª. edição, p. 56).

[20] DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus Inimigos – A repressão política na história do Direito Penal. Rio de Janeiro: REVAN, 2006, p. 272.

[21] PINHO, Ruy Rebello. História do Direito Penal Brasileiro – Período Colonial. São Paulo: José Bushatsky, 1973, pp. 11-12.

[22] BITTAR, Eduardo C. B. História do Direito Brasileiro: Leituras da Ordem Jurídica Nacional. São Paulo: Atlas, 2003, p. 121.

[23] FIORE, Pascuale. De la irretroactividad e interpretación de las leyes. Madri: Reus, 1927, p. 579.

[24] COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 175, p. 11.

[25] Afinal, como diz Juan Montero Aroca, em razão de que a Jurisdição julga assuntos de interesses outras pesssoas, a primeira exigência a respeito do juiz é a de que este não pode ser, ao mesmo tempo, parte no conflito que se submete a sua decisão. (AROCA, Juan Montero. Sobre la imparcialidad del juez y la incompatibilidad de funciones procesales. Valencia: Tirant lo Blanch, 1999, p. 186). Observa-se, para que não se confunda imparcialidade com neutralidade, “ainda que os princípios os vinculem, a neutralidade política do intérprete só existe nos livros. Na práxis do direito ela se dissolve, sempre. Lembre-se que todas as decisões jurídicas, porque jurídicas, são políticas.” (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 51). O Juiz no processo penal não pode ser como Jacques Fournier, o velho inquisidor, o bispo da Diocese de Pamiers, “um dos grandes inquisidores de todos os tempos, um homem temido, sobretudo por causa de suas investidas obsessivas, maníacas e eficazes, contra todo o gênero de suspeitos.” (LADURIE, E. Le Roy. Montaillon, Cátaros e Católicos numa aldeia Occitana, 1294 à 1324. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 10). Esta obra-prima relata a vida em uma pequena aldeia medieval de camponeses e de pastores, chamada Montaillou, situada em um território hoje pertencente à França, e que foi objeto de um processo inquisitivo “extraordinariamente minucioso e exaustivo”, tornando-se, exatamente por isso, “a aldeia europeia e mesmo mundial mais conhecida de toda a Idade Média!”

[26] MAIER, Julio B. J.. e STRUENSEE, Eberhard, Las reformas procesales penales en América Latina, Buenos Aires: Ad-Hoc, 2000, p. 17.

[27] Exposição de Motivos do Projeto de Código Processual Penal-Tipo para Ibero-América. Revista de Processo, nº. 61. p. 111.

[28] Não se deve esquecer que “Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais.” (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1992, p. 1).

[29] Aqui, por óbvio, utiliza-se o substantivo autoritarismo (respaldando-se na lição de Bobbio, Matteucci e Pasquino) em dois dos seus possíveis contextos: como uma disposição psicológica a respeito do poder e como uma manifestação de uma ideologia política. No sentido psicológico, e num certo aspecto, pode ser identificada uma personalidade autoritária quando há uma “disposição em tratar com arrogância e desprezo os inferiores hierárquicos e em geral todos aqueles que não têm poder e autoridade.” Numa terceira acepção, segundo os autores, autoritarismo serviria para designar a própria estrutura do sistema político. (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola e PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política, Volume 1. Brasília: Editora UnB, 1997, p. 94).

[30] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, p. 604.

[31] BINDER, Alberto M. Iniciación al proceso penal acusatório. Buenos Aires: Campomanes Libros, 2000, p. 43.

[32] SENDRA, Gimeno. Derecho Procesal. Valencia: Tirant lo Blanch, 1987, p. 64.

[33] BARREIROS. José António Barreiros. Processo Penal-1. Coimbra: Almedina, 1981, p. 13.

[34] COUTINHO. Jacinto Nelson de Miranda. Efetividade do Processo Penal e Golpe de Cena: um problema às reformas processuais. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/efetividade-do-processo-penal-e-golpe-de-cena-um-problema-as-reformas-processuais-por-jacinto-nelson-de-miranda-coutinho/. Acesso em 23 de abril de 2015.

[35] Comentando o Código de Processo Penal da Província de Buenos Aires e, mais particularmente, o Juiz de Garantias, Bertolino, fazendo como se fora um jogo de palavras – como ele próprio admite -, afirma que com o Juiz de Garantias “a lei processual penal de Buenos Aires pretendeu, antes de qualquer outra coisa, estabelecer a ´garantia de um juiz`” É ainda dele a observação de “que a própria denominação legal vincula-o, sem prejuízo de outras considerações, com a realidade das garantias processuais”, tratando-se da concretização da “dimensão constitucional da jurisdição.” (BERTOLINO, Pedro J. El juez de garantías en el Código Procesal Penal de la Provincia de Buenos Aires.  Buenos Aires: Ediciones Depalma, 2000, pp. 56 e 122).

[36] FALCONE, Roberto A. El principio acusatorio – El procedimiento oral en la Provincia de Buenos Aires y en la Nación. Buenos Aires: AD-HOC, 2005, p. 19.

[37] COLOMER Juan-Luís Gómez. Introducción al Derecho Penal y al Derecho Penal Procesal. Barcelona: Editorial Ariel, 1989, p. 230.

[38] CONDE, Muñoz. Búsqueda de la verdad en el Proceso Penal. Buenos Aires: Depalma: 2000, p. 107.

[39] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Madrid: Editorial Trotta, 1998, pp. 44-45.

[40] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal. Acesso em 26 de junho de 2020.

[41] MAIER, Julio. Antología – El processo penal contemporâneo. Lima: Palestra Editores, 2008, pp. 901 e 902.

[42] BINDER, Alberto. Introdução ao Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 25.

[43] FERRAJOLI, Luigi. Obra citada, 537. 

[44] MAIER, Julio e STRUENSEE, Eberhard. Las Reformas Procesales Penales em América Latina. Buenos Aires: AD-HOC, 2000, p. 29.

[45] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 279, n. 1, pp. 31-49, janeiro/abril 2020.

[46] HOBSBAWM Eric. Era dos Extremos - O breve século XX - 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 562.

[47] DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus Inimigos – A repressão política na história do Direito Penal. Rio de Janeiro: REVAN, 2006, p. 362.

 


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