#45 - INSTITUIÇÃO DE PODER E INSTITUIÇÃO DE GARANTIA

20/01/2020

Coluna Garantismo Processual / Coordenadores Eduardo José da Fonseca Costa e Antonio Carvalho

 

 

 

I

Em artigo anterior, ensaiei algumas distinções entre os garantismos jurídicos ferrajoliano (no qual prevalece a noção de garantia como proteção contra frustração) e não-ferrajoliano (no qual prevalece a noção de garantia como proteção contra arbítrio) (Garantia: dois sentidos, duas teorias. <https://emporiododireito.com.br/leitura/44-garantia-dois-sentidos-duas-teorias>). O objetivo do texto não foi invalidar qualquer das duas correntes de pensamento, senão descrevê-las, compará-las e criticar aqueles que as confundem, que as hierarquizam ou que derivam uma da outra. Às tantas, escrevi que, «para o garantismo não-ferrajoliano, a ideia do Poder Judiciário e do Ministério Público como ‘instituições de garantia’ não faz o menor sentido», visto que se trata «de instituições de poder, que - como tal - devem ser controladas pelos cidadãos mediante as garantias correlatas que se lhes outorgam» [d. n.]. No entanto, por intermédio do meu grande amigo DANILO NASCIMENTO CRUZ, o Analista Judicial da Defensoria Pública do Amazonas DYEGO PHABLO SANTOS PORTO me remeteu as seguintes indagações: «[...] por que uma instituição de poder não é também de garantia? Aliás, teria como separar as duas coisas? De que forma uma garantia seria exercida sem a mediação de instituições do Estado, logo, pelo poder? A defensoria pública, por exemplo, é uma instituição estatal - logo, de poder - que se coloca como contrapoder. Também ela é passível de cometer abusos de poder, e nem por isso deixa de atuar de forma contrajurisdicional em prol da tutela de liberdades públicas. Um poder que é contrapoder». Essas judiciosas provocações me permitem, ao menos, duas atitudes. Em primeiro lugar, posso corrigir um equívoco meu por falta de refinamento conceitual. Em segundo lugar, posso aproveitar o ensejo para aperfeiçoar analiticamente o garantismo jurídico não-ferrajoliano, tal como o tenho abraçado e concebido; afinal de contas, trata-se de uma episteme ainda in statu nascendi, que necessita de diálogos, críticas e reflexões. Assim, agradecendo imensamente a DYEGO, passo a lhe responder às excelentes perguntas e a agregar às minhas respostas algumas considerações complementares.

 

II

Não raro, a garantia pode ser exercida pelo cidadão perante o próprio Poder supostamente arbitrário. Noutras palavras, pode haver garantia procedimental intra-potestativa [ex.: recurso administrativo ou judicial; mandado de segurança, habeas corpus ou reclamação constitucional contra ato judiciário; reclamação ao Conselho Nacional de Justiça; reclamação ao Conselho Nacional do Ministério Público; reclamação às ouvidorias de justiça]. Dentro da estrutura mesma do Poder - Executivo, Legislativo ou Judiciário - é possível haver órgãos aos quais se possa direcionar a garantia e, com isso, se evitarem, se mitigarem ou se eliminarem ab intra os efeitos nocivos do arbítrio estatal. Ou seja, é possível que o Poder se divida intestinamente em instâncias (in-stâncias) garantidoras: 1) o micro-órgão, contra o qual se exerce a garantia [= instância inferior ou de piso - ex.: Auditoria Militar, Delegacia da Receita Federal de Julgamento]; 2) o meso-órgão, ao qual se dirige a garantia [= instância superior ou intermediária - ex.: Superior Tribunal Militar, Conselho Administrativo de Recursos Fiscais]; 3) o macro-órgão, ao qual se dirige a sobregarantia contra eventual arbítrio do meso-órgão [= instância suprema ou de cúpula - ex.: Supremo Tribunal Federal, Câmara Superior de Recursos Fiscais]. Nada impede que em situações específicas se prevejam: garantias ob-poníveis ou intra-poníveis ao próprio órgão [ex.: pedido de reconsideração; embargos declarativos, modificativos ou ofensivos]; garantias inter-poníveis per saltum do micro-órgão ao macro-órgão [ex.: recurso ordinário do juízo federal ao STF no julgamento de crime político]. Na relação entre (1) e (2), o órgão (1) opera como instituição de poder; o órgão (2), como instituição de garantia. Já na relação entre (2) e (3), o órgão (2) opera como instituição de poder; o órgão (3), como instituição de garantia. Isso mostra que a natureza do órgão interno é referencial e, por conseguinte, relativa: o órgão a quo, contra o qual o cidadão se volta, é sempre instituição de poder; o órgão ad quem, para o qual o cidadão se volta, é sempre instituição de garantia; o órgão inferior é apenas instituição de poder; o órgão intermediário pode ser instituição tanto de poder quanto de garantia; o órgão supremo só é instituição de garantia (salvo se tiver competência originária para determinadas causas e, portanto, só for instituição de poder, sem instituição de garantia sobrejacente).

 

III

Em contrapartida, a garantia procedimental pode ser exercida pelo cidadão contra determinado Poder perante outro Poder. Em outros termos: pode haver garantia procedimental extra-potestativa [ex.: mandado de segurança, habeas corpus ou reclamação constitucional contra ato do Poder Executivo; controle abstrato de constitucionalidade das leis e dos atos normativos; processo congressual de impeachment contra Presidente da República]. Portanto, não raro, os efeitos nocivos do arbítrio cometido por um Poder são evitados, mitigados ou eliminadas ab extra por um Contra-Poder. Em um sistema de judicial review [CF/1988, art. 5º, XXXV], de ordinário, as garantias procedimentais extrapotestativas são contralegislativas e contra-executivas e se exercem perante o Poder Judiciário. Ou seja, em regra, não existe garantia procedimental extrapotestativa contrajudiciária (a exceção são os processos congressuais de impeachment contra Ministros do Supremo Tribunal Federal e contra membros do Conselho Nacional de Justiça). Enfim, em geral, o Poder Judiciário controla externamente os arbítrios legislativo e executivo; contudo, os Poderes Legislativo e Executivo não controlam externamente o arbítrio judiciário. Logo, o «último bastião do cidadão», a «fortaleza inexpugnável das liberdades», é o Poder Judiciário. Para isso, é imprescindível que o Poder Judiciário se «garanta de si próprio», se «proteja de si mesmo», aja com autocontenção [ing.: self-restraint; al.: Selbstbeherrschung], evadindo-se à usurpação das atribuições dos Poderes Executivo e Legislativo. Não sem razão dizia RUI BARBOSA que «a pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário», pois «contra ela não há a quem recorrer». Daí por que a autocontenção é «a» palavra de ordem, «a» ideia-chave, «o» hino, «o» lema que define a atuação judiciária. Se assim é, então o Poder Judiciário é «a» estância (ex-stância) garantidora. Dessa maneira, há a) o Poder (Legislativo ou Executivo), contra o qual se exerce a garantia procedimental, e b) o Contrapoder (Judiciário), ao qual se dirige a garantia procedimental. Na relação entre (a) e (b), o poder opera como instituição de poder; o contrapoder, como instituição de garantia.

 

IV

Não obstante, em relação às instituições de garantia contrajurisdicionais (processo, contraditório, ampla defesa, duplo grau de jurisdição, advocacia, motivação, juiz natural, imparcialidade, presunção de inocência, proporcionalidade, duração razoável do processo etc.), o poder jurisdicional é sempre uma instituição de poder. Afinal, delas defluem posições jurídicas ativas cujo exercício pelo cidadão tende a evitar, mitigar ou eliminar os efeitos nocivos do arbítrio jurisdicional. É importante sublinhar, porém, que a palavra instituição assume aí sentidos distintos. De acordo com MAURICE HAURIOU, existem dois tipos básicos ou fundamentais de instituição: i) as «instituições-pessoas» [institutions-personnes] ou «corpos constituídos» [corps constitués], que geralmente se personificam e são geradas por um «princípio de ação» [principe d’action]; ii) as «instituições-coisas» [institutions-choses], que não se personificam e são apenas um «princípio de limitação» [principe de limitation] (sobre a distinção, v., p. ex.: WEINBERGER. Ota. Institucional. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. Org. André-Jean Arnad et al. Trad. Patrice Charles, F. X. Willaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 412). Assim, quando se diz que processo, contraditório, ampla defesa, duplo grau de jurisdição, advocacia, motivação, juiz natural, imparcialidade, presunção de inocência, proporcionalidade e duração razoável do processo são exemplos de instituições de garantia, usa-se aí a palavra instituição como sinônimo de «instituição-coisa» (sobre a institucionalidade garantística do processo em especial, v. nosso O processo como instituição de garantia. <https://www.conjur.com.br/2016-nov-16/eduardo-jose-costa-processo-instituicao-garantia >). Por sua vez, quando se diz que em relação a elas o poder jurisdicional é uma instituição de poder, usa-se aí a palavra instituição como sinônimo de «instituição-pessoa». Da mesma forma, quando se diz que o contrapoder é instituição de garantia, também se usa aí a palavra instituição como sinônimo de «instituição-pessoa». Pois dessa forma se estrutura o ambiente republicano: instituições-coisas e instituições-pessoas controlando instituições-pessoas, sem que nenhuma fique sem controle.

 

V

Também a instituição-pessoa do Ministério Público flutua dualmente entre a potestatividade e a garantisticidade (assim como do mesmo modo flutuam, v. g., a OAB e a Defensoria Pública). Ou seja, a depender do referencial, o MP é uma instituição de poder ou uma instituição de garantia. Nem a teoria potestativa nem a teoria garantística - se tomadas em estado de pureza bruta - explicam por completo o comportamento do MP. Quando a função ministerial é exercida para combater o arbítrio estatal mediante o manejo de garantias contrajurislativas [ex.: ação de controle abstrato de inconstitucionalidade] ou contra-administrativas [ex.: ação civil pública], o Ministério Público se comporta como uma instituição de garantia. Em contrapartida, quando a função ministerial é exercida com arbítrio e contra ele se arma o cidadão de garantias contraministeriais [ex.: habeas corpus, mandado de segurança, reclamação às ouvidorias do Ministérios Público, reclamação ao Conselho Nacional do Ministério Público, reclamações e denúncias à Corregedoria Nacional do Ministério Público, processo de impeachment contra o Procurador-Geral da República], o Ministério Público se comporta como uma instituição de poder. Em geral, o MP assume características mais potestativas quando desempenha função penal [ex.: investigador criminal; órgão acusador], posto que o requerimento ministerial de absolvição do acusado seja uma expressão de imparcialidade e, portanto, um «momento de garanticidade». Por sua vez, o MP assume características mais garantísticas quando desempenha função civil [ex.: promotor de cidadania; custos legis], conquanto a presidência ministerial do inquérito civil seja uma expressão de inquisitividade e, portanto, um «momento de potestatividade». Aliás, essa ambivalência funcional poder-garantia é «a» marca do Ministério Público, cuja decoerência institucional faz dele uma «figura proteiforme» (AROCA, Juan Montero. Proceso (civil y penal) y garantía. Valência: Tirant lo Blanch, 2006, p. 642) e, em consequência, de difícil enquadramento dogmático-analítico. Na verdade, a atribuição primordial do MP é zelar pelo direito objetivo do Estado; para tanto, é estratégico que aja ora como instituição de poder, ora como instituição de garantia (para um aprofundamento do tema, v. nosso O fundamento do Ministério Público. <https://emporiododireito.com.br/leitura/4-o-fundamento-do-ministerio-publico>).

 

VI

Por fim, cabe um último esclarecimento. Como visto, instituições-pessoas têm natureza relativa, porquanto a potestatividade ou a garanticidade dependem do referencial. Já as instituições-coisas têm natureza absoluta. Uma instituição-coisa que seja instituição de garantia, por exemplo, tem garanticidade em si e por si, independentemente de qualquer relação. Jamais flutua de acordo com o referencial. Tome-se o exemplo do processo [CF/1988, art. 5º, LIV]. Integrando o rol dos direitos individuais, o processo tem a função constitucional de proteger os cidadãos do arbítrio jurisdicional, garantindo-lhes a autonomia para o debate [liberdade positiva/freedom] e a não-inferência do Estado-juiz no exercício dessa autonomia [liberdade negativa/liberty]. Logo, é uma instituição de garantia contrajurisdicional per se. Seria um contrassenso se o processo fosse uma garantia de liberdade para os cidadãos e, ao mesmo tempo, um instrumento de poder para o Estado. Se «também» fosse instrumento da jurisdição, o processo já não seria mais garantia do jurisdicionado, mas apenas instrumento da jurisdição, uma vez que já teria sido capturado pelo poder que a garantia visa refrear. Outro exemplo de instituição de garantia in essentia sua é o contraditório [CF/1988, art. 5º, LV]. A liberdade das partes tem como corolário a inespessabilidade judicial do objeto do processo: o juiz nunca aporta fatos, fundamentos jurídicos, argumentos, pedidos e provas, senão as partes; antes de decidir, caber-lhe-á apenas dar vista à parte quando a outra introduzir qualquer desses elementos [A → e; B → ~e; J → e v ~e]. Nesse sentido, o contraditório é prévio, é sinônimo de debate e visa proteger a parte em detrimento da qual se inseriu o elemento. Todavia, quando o juiz captura o contraditório, desnaturando-o em instituição de poder, abrem-se as portas à espessabilidade oficiosa do objeto do processo: o juiz usurpa liberdade e aporta ex officio fatos, fundamentos jurídicos, argumentos, pedidos e provas, ouvindo depois a parte prejudicada, que pode tentar demovê-lo [J → e’; A → e; B → ~e; J e’ v ~e] (embora, na prática, o juiz seja pouco demovível, porque tende a confirmar sua pré-convicção sobre a injetabilidade do elemento novo e a supervalorizá-lo). Nesse sentido, o contraditório é postergado, é sinônimo de cooperação e visa legitimar «democraticamente» o ato judicial que introduziu o elemento (contra essa instrumentalização do contraditório, v. ANCHIETA, Natascha e RAATZ, Igor. Contraditório «sem sentido forte»... <https://emporiododireito.com.br/leitura/31-contraditorio-em-sentido-forte-uma-forma-de-compensacao-das-posturas-judiciais-instrumentalistas>).

 

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