Voltaire e sua imbatível arma intelectual, o sarcasmo

20/09/2016

Por Luiz Ferri de Barros - 20/09/2016

Aos 23 anos o escritor foi parar na Bastilha, ao comentar que o Regente da França – que vendera metade dos cavalos dos estábulos reais para equilibrar o orçamento – poderia ter feito muito maior economia se despedisse metade dos asnos que atulhavam a corte real. 

Cândido ou O Otimismo, de 1759, é a mais famosa sátira da história da filosofia. O livro já foi designado por diversas formas, como romance picaresco, conto filosófico ou fábula, por exemplo. Trata-se do mais famoso livro de Voltaire, em que o ícone do Iluminismo francês satiriza o filósofo alemão Leibniz de forma impiedosa.

Cândido – em francês Candide –, conforme o nome sugere, era um rapazote ingênuo e simples, agregado no castelo do barão de Thunder-ten-tronckh, na Westfália – leia-se Alemanha. Suspeitava-se fosse filho da irmã desse barão e de um vizinho fidalgo, o que não vem ao caso, sendo mais importante, para efeitos de sua biografia, antes assinalar sua inquebrantável devoção à filosofia de Pangloss, preceptor do filho do barão.

Segundo a doutrina de Pangloss, “tudo tendo um fim, tudo concorre necessariamente para o melhor fim”, de sorte que “aqueles que afirmaram que tudo vai bem disseram uma tolice: deveriam ter dito que tudo vai da melhor maneira possível”.

O livro é uma sátira à noção de causalidade expressa pelo princípio da “razão suficiente” e à “teodiceia” de Leibniz (1646-1716), filósofo, lógico e matemático alemão, segundo a qual tudo vai sempre “da melhor forma possível no melhor dos mundos possíveis”, sendo que o melhor dos mundos possíveis é este mundo em que vivemos.

Tais formulações da metafísica leibniziana tornaram-se correntes no Século 18 e originaram-se a partir da forma pela qual o filósofo justificou a presença do mal no mundo, a despeito da infinita bondade de um Deus criador todo-poderoso e onipresente, na obra Ensaio de Teodiceia, sobre a bondade de Deus, a liberdade do homem e a origem do mal, de 1710. Em síntese, a tese é de que sendo Deus infinitamente bom somente poderia ter criado o melhor dos mundos possíveis.

Voltaire (1694-1778) publicou Cândido em 1759, aos 65 anos, mas como relata Will Durant, nos dias despreocupados da juventude, quando se divertia nos salões de Paris, o escritor já se revoltara contra o otimismo antinatural a que Leibniz dera voga.

Por essa época, a um ardente moço que o atacara, defendendo as ideias de Leibniz, Voltaire escreveu: “Tive, senhor, a satisfação de saber que escreveu um livrinho contra mim. Fez-me com isso grande honra... Se explicar, em prosa ou verso ou de outra maneira, por que tantos homens se cortam mutuamente os pescoços no melhor de todos os mundos possíveis, ficar-lhe-ei extremamente grato. Aguardo seus argumentos, seus versos e seus insultos; e afianço-lhe, com a máxima sinceridade, que nenhum de nós dois sabe coisa alguma sobre essa matéria”.

Voltaire viveu 83 anos. De suas obras, que enchem 97 volumes, hoje nos sobram as páginas de Cândido, salvo para leitores e estudiosos especializados. Sobre ele Vitor Hugo escreveu: “Dizer Voltaire é caracterizar todo o Século 18”. Para Will Durant, “jamais outro escritor exerceu tanta influência enquanto vivo; Voltaire e Rousseau foram as duas vozes de um vasto processo de transição econômica e política da aristocracia feudal para a soberania da classe média”. Como é sabido, os dois, embora adversários em relação a muitas questões, têm ambos lugar destacado entre os pensadores que levaram à Revolução Francesa.

O sarcasmo de Voltaire já foi considerado “a mais terrível de todas as armas intelectuais jamais brandidas por algum homem”. Esse sarcasmo impiedoso está presente em Cândido e já era marca registrada do jovem escritor que, aos 23 anos de idade, é preso na Bastilha por conta de sua ironia. A razão? Consta que ao chegar a Paris logo ficaram famosas suas tiradas espirituosas. Nesta época o regente que governava a França, por conta da morte de Luís XIV e por ser Luís XV muito jovem para assumir o trono, por medida de economia vendeu metade dos cavalos dos estábulos reais. Voltaire, que então ainda usava seu nome de batismo, François, comentou que a economia seria muito maior se o regente despedisse metade dos asnos que atulhavam a corte real.

Foi nesta ocasião, durante sua primeira estada na Bastilha, que ele, que se chamava François Marie Arouet, adotou o pseudônimo de Voltaire. Aos 32 anos foi novamente preso. Esses períodos de prisão levaram-no depois a morar por quase toda a vida no exílio, na Inglaterra e depois na Suíça. Seus livros foram proibidos pela Igreja e pelo Estado, mas ele era um trabalhador incansável e seguiu estudando e escrevendo sem parar, metendo-se em polêmicas nas quais esgrimia com sua fina ironia e desbragado deboche, até que, afinal, a sua genialidade impôs-se e ele passou a ser cortejado também por reis, papas e imperadores, que se juntaram ao séquito de populares que o adoravam.

A despeito de suas constantes atribulações, Voltaire ganhou muito dinheiro com seus escritos, entre os quais peças teatrais de grande sucesso, e soube administrar seus rendimentos, construindo fortuna. A riqueza contribuiu para garantir total independência a seu espírito crítico e rebelde.

Voltando ao livro Cândido ou O Otimismo: trata-se de um romance de aventuras em que a ação se desenvolve em ritmo vertiginoso. A trama inicia-se com a expulsão de Cândido do castelo do barão e objetiva desmascarar Pangloss como farsante e ridicularizar sua visão cor de rosa do mundo. Isto é feito com humor, ironia e deboche. A cada novo acontecimento aprofundam-se as desventuras, as misérias e os tormentos do ingênuo protagonista, de sua amada Cunegundes e de Pangloss –, não obstante o que, Cândido e seu mentor não abdicam do insano otimismo que praticam, seguindo a professar, qual fosse um mantra, que todas as desgraças que os acometem são por uma boa finalidade e que o seu mundo miserável, infeliz e injusto continua sendo o melhor dos mundos possíveis.

Prova da universal difusão da obra de Voltaire e sua popularidade é um filme rodado em 1954 no Brasil, a comédia da Vera Cruz, “Candinho”, em que Mazzaroppi repetia, a propósito de qualquer coisa, que “tudo é pra miorá a vida da gente”, doutrina que aprendera com o professor Pancrácio na fazenda onde morava e de onde fora expulso.

Leibniz já havia morrido há mais de quatro décadas quando Voltaire escreveu Cândido. Os motivos que o levaram a escrever a pequena obra-prima envolvem notadamente o clero francês e seu dileto adversário Jean Jacques Rousseau.

Em 1755, no dia de Todos os Santos, um terremoto de grandes proporções atingiu Lisboa, matando 30 mil pessoas. Uma das razões de tão grande número de mortes foi exatamente o fato de as igrejas estarem repletas de gente devido ao dia santo.

Mais uma vez valho-me de Will Durant para relatar o que se seguiu: o clero francês pôs-se a pregar explicando a catástrofe como punição dos céus aos pecados do povo lisboeta. Impressionado com a tragédia e irritado com os religiosos, Voltaire escreve um longo poema, denominado: Poema sobre o Desastre de Lisboa ou Exame deste Axioma: Tudo Está Bem. Nele, refutando a conciliação da existência do mal com a figura de um Deus onipresente e infinitamente bom, realçou o antigo dilema: ou Deus podia evitar o mal e não o quis, ou quis evitá-lo e não o pode.

Poucos meses depois rebentou a guerra dos Sete Anos. Voltaire julgava uma loucura que a Europa se dilacerasse por conta de uma disputa entre a Inglaterra e a França para determinar a quem pertenceriam “umas poucas geiras de neve” no Canadá.

No auge da guerra, vem a público uma carta de Rousseau em resposta ao poema de Voltaire sobre Lisboa. Ele dizia que era a si mesmo que o homem deveria culpar pelo desastre, argumentando que se vivêssemos nos campos e não nas cidades, não teria sido tão grande o número de mortos; se vivêssemos ao ar livre e não em casas, as casas não desabariam sobre nós.

Voltaire ficou enraivecido, não só pela crítica a seu poema, porém tanto mais pelo fato de Rousseau utilizar-se dele para propagandear o selvagismo, ridicularizado por ele, Voltaire, desde a publicação do Discurso sobre a Origem da Desigualdade. Na ocasião, tendo Rousseau lhe enviado o livro, recebeu a seguinte resposta, com o inconfundível sarcasmo: “Recebi, senhor, seu novo livro contra a espécie humana e sou-lhe grato pela remessa... Jamais alguém se esforçou tão inteligentemente para transformar-nos em animais; a leitura de seu livro dá-nos vontade de andar de quatro. Como, porém, já faz 60 anos que perdi esse costume, sinto que infelizmente não me é mais possível retornar a ele”.

Assim insuflado pelo terremoto de Lisboa, a guerra dos Sete Anos, o clero francês e a carta de Rousseau, Voltaire em três dias escreveu Cândido ou O Otimismo, sua obra-prima, em que, escolhendo a doutrina de Leibniz e o próprio filósofo como alvos, não deixa pedra sobre pedra no castelo do otimismo, de cambulhão aproveitando para desancar o Igreja, o clero, a Inquisição, a nobreza, os exércitos, as guerras, a escravidão e outras mazelas humanas, para não dizer que sendo o próprio Cândido, ao longo de todo o livro, a vítima preferencial de seu sarcasmo, não poupa da sátira o homem do povo crédulo e parvo, disposto a acreditar em quaisquer impostores de boa lábia.


Originalmente publicado na Revista da OAB/CAASP. Ano 4. Nº18. São Paulo, agosto de 2015. 


Luiz Ferri de Barros é Mestre e Doutor em Filosofia da Educação pela USP, Administrador de Empresas pela FGV, escritor e jornalista.

Publica coluna semanal no Empório do Direito às terças-feiras.

E-mail para contato: barros@velhosguerreiros.com.br..


Imagem Ilustrativa do Post: Voltaire // Foto de: Kai 'Oswald' Seidler // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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