Violência contra a mulher e princípio da insignificância – Por Ricardo Antonio Andreucci

21/09/2017

Violência contra a mulher é tema recorrente nos noticiários policiais, indicando que, cada vez mais, o assunto deve ser debatido e discutido pela sociedade moderna, buscando-se a conscientização da população masculina, senão pela educação, pela punição exemplar no âmbito da justiça criminal.

Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, por meio de suas seções de direito penal, aprovou a Súmula 589, dispondo que “é inaplicável o princípio da insignificância nos crimes ou contravenções penais praticados contra a mulher no âmbito das relações domésticas.”

Outra súmula foi aprovada na ocasião, a Súmula 588, também dispondo sobre a violência contra a mulher, do seguinte teor: “A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.”

Com relação ao “princípio da insignificância”, também chamado de “princípio da bagatela”, é sabido que o mesmo deita suas raízes no Direito Romano, onde se aplicava a máxima civilista “de minimis non curat praetor”, sustentando a desnecessidade de se tutelar lesões insignificantes aos bens jurídicos (integridade corporal, patrimônio, honra, administração pública, meio ambiente etc.).

Assim, restaria ao Direito Penal a tutela de lesões de maior monta, deixando ao desabrigo os titulares de bens jurídicos alvos de lesões consideradas insignificantes.

Esse princípio é bastante debatido na atualidade, principalmente ante a ausência de definição do que seria irrelevante penalmente (bagatela), ficando essa valoração, muitas vezes, ao puro arbítrio do julgador.

Entretanto, o princípio da insignificância vem tendo larga aplicação nas Cortes Superiores (STJ e STF), sendo tomado como instrumento de interpretação restritiva do Direito Penal, que não deve ser considerado apenas em seu aspecto formal (tipicidade formal — subsunção da conduta à norma penal), mas também e fundamentalmente em seu aspecto material (tipicidade material — adequação da conduta à lesividade causada ao bem jurídico protegido).

Acolhido o princípio da insignificância, estaria excluída a própria tipicidade, desde que satisfeitos quatro requisitos: a) mínima ofensividade da conduta do agente; b) ausência de total periculosidade social da ação; c) ínfimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica ocasionada.

Ocorre que a aplicação do princípio da insignificância nos casos de violência contra a mulher, no âmbito das relações domésticas, é realmente absurda, ainda mais à vista da relevância do tema na atualidade, em que o respeito à integridade corporal da mulher se revela como uma das faces mais características da dignidade humana.

Mas nem sempre foi assim. Diversos julgados das cortes estaduais e federais, antigos é verdade, entendiam que a violência contra a mulher no âmbito das relações domésticas não se revestia do significado necessário caracterizador de interesse criminal, eis que o ambiente doméstico sempre foi tido como quadra inexpugnável ao terceiro que dele não fizesse parte, sendo conhecido de todos o lastimável dito popular “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

Mais recentemente, ao criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, a Lei n. 11.340/2006, denominada popularmente “Lei Maria da Penha”, veio com a missão de proporcionar instrumentos adequados para enfrentar um problema que aflige grande parte das mulheres no Brasil e no mundo, que é a violência de gênero, uma das formas mais preocupantes de violência, já que, na maioria das vezes, ocorre no seio familiar, local onde deveriam imperar o respeito e o afeto mútuos.

A “Lei Maria da Penha” deu concretude ao texto constitucional (art. 226, §8º, CF) e aos tratados e convenções internacionais de erradicação de todas as formas de violência contra a mulher, com a finalidade de mitigar, tanto quanto possível, esse tipo de violência doméstica e familiar (não só a violência física, mas também a psicológica, a sexual, a patrimonial, a social e a moral).

Preceituando que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, a Lei n. 11.340/2006 estabeleceu, no art. 5º, que configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. No parágrafo único, inclusive, ficou estabelecido que as relações pessoais enunciadas no art. 5º independem de orientação sexual, prevendo a lei, portanto, expressamente, sua incidência também à família homoafetiva.

O legislador, portanto, fixou o âmbito espacial para a tutela da violência doméstica e familiar contra a mulher, o qual compreende as relações de casamento, união estável, família monoparental, família homoafetiva, família adotiva, vínculos de parentesco em sentido amplo, introduzindo, ainda, a ideia de família de fato, compreendendo essa as pessoas que não têm vínculo jurídico familiar, considerando-se, entretanto, aparentados (amigos próximos, agregados etc.).

Não obstante essa proteção trazida à mulher pela Lei Maria da Penha, no âmbito da chamada tutela dos vulneráveis, denotando a verdadeira essência do princípio da igualdade, diversos julgados insistiam em aplicar o princípio da insignificância aos casos de violência doméstica, chegando ao Superior Tribunal de Justiça inúmeros recursos, cujas decisões culminaram com a edição da recente Súmula 589.

Portanto, nos casos de violência contra a mulher no âmbito das relações domésticas descabe a aplicação do princípio da insignificância, descabendo também, por força da outra súmula no mesmo azo aprovada, a substituição da pena privativa de liberdade por penas restritivas de direitos, dando mostras o Superior Tribunal de Justiça de que, quando a educação não se faz suficiente para balizar o respeito à integridade da mulher, a sanção penal deve ser aplicada com o devido rigor.


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