Vinícius de Moraes, teorema da impossibilidade e o STF: ainda a Constituição doente

23/02/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 23/02/2016

Olá a todos!!!

“De tudo ao meu amor serei atento; antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto; que mesmo em face do maior encanto, dele se encante mais meu pensamento”. Estas belas estrofes do Soneto da Fidelidade, de autoria de Vinícius de Moraes[1], teriam algo a ver com a interpretação da Constituição? Aparentemente não, mas... olhemos com um pouco mais de atenção.

Imediatamente após o advento da Constituição da República de 1988, o sentimento que sobreveio em relação à Carta foi de amor. Sim, amor. Saíamos, enquanto nação, de turbulentos momentos em que a democracia se mostrava presente apenas enquanto vislumbre de dias melhores, alimentada por esperança e canções. Desse modo, o documento que materializou a Constituição representava, à época, muito mais do que a liberdade e o pluralismo que vinha consignado em seu cerne, mas principalmente a retomada do trilho da democracia por intermédio do influxo constitucionalista já presente em outros países que também viveram rupturas democráticas e, finalmente, no Brasil.

Amor e orgulho foram, de longe, os sentimentos mais retratados pelos textos, jurídicos ou não, que sobrevieram à Carta. Pode-se dizer, assim, que nos apaixonamos pela Constituição. Mas, como o soneto da fidelidade deixa claro, outros maiores “encantos” poderiam advir e, precisamente nestes momentos, o amor seria testado.

Talvez agora, algumas décadas após a promulgação, já tenhamos condições de fazer um inventário do ocorrido: crises econômicas, políticas, impeachment, violência e, principalmente, corrupção aparecem como pauta do dia e assuntos problemáticos a enfrentar a todo instante. A Constituição, já remendada em seara legislativa, passa agora por outro processo de adaptação à realidade: sua emenda judicial, as sentenças manipulativas[2].

Nesta semana que passou tivemos a oportunidade de ver uma dessas sentenças na prática. Trata-se do conhecido caso julgado pelo Supremo Tribunal Federal que, alterando posicionamento anteriormente aplicado, passou a admitir a prisão de Réus condenados em segunda instância, independentemente do trânsito em julgado da sentença condenatória.

Não quero fazer aqui qualquer crítica ou elogio ao julgado; apenas analisá-lo enquanto produto final de um contexto maior, da dialógica alteração da realidade social e os correspondentes efeitos produzidos na esfera judicial. Para tanto, farei uso do teorema da impossibilidade de Kenneth Arrow.

Kenneth Arrow, economista prêmio Nobel de 1972, criou o teorema da impossibilidade, segundo o qual a soma das racionalidades individuais não corresponde exatamente à racionalidade coletiva. A partir de algumas propriedades, como “a preferência não-ditatorial”, o “domínio irrestrito”, “independência de alternativas relevantes” e “a unanimidade”, Arrow observou que o comportamento racional de um indivíduo não encontra necessária correlação com o comportamento social racional. A vontade social pode abranger mais fatores, ser diferente, ou não, conforme as variáveis que se aplicarem[3].

Aqui, evidentemente, não é o espaço adequado para aprofundar a leitura do teorema proposto. Assim é que, resumidamente, podemos dizer que há duas racionalidades a partir desta perspectiva teórica: i) a racionalidade individual; ii) a racionalidade coletiva. Ambas são autônomas, não se confundem, embora a coletiva possa eventualmente incorporar o comportamento individual e outros fatores como parte de sua composição.

Bem, voltando ao STF. O artigo 5º, inciso LVII, da Constituição impõe a necessidade de sentença transitada em julgado para afastar a presunção de inocência. Sob o ponto de vista do comportamento racional individual, a análise do inciso mencionado pode ser levada a cabo por intermédio das técnicas de interpretação, mais ou menos abertas ao contexto social. Entretanto, analisando esta mesma regra enquanto modalidade de exercício da racionalidade coletiva, abre-se a possibilidade de trazer ao debate fatores externos à norma, trabalhando-os em mesma seara e enquanto entes de idêntica hierarquia à norma em si.

Esta característica ficou clara em parte da fundamentação do voto condutor elaborado pelo Min. Teori Zavascki: “2.O tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (a) o alcance do princípio da presunção da inocência aliado à (b) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal[4] (grifos meus).

Note que o amor inicialmente sentido pela Constituição foi, em parte, substituído por uma espécie de empirismo. Com o auxílio da técnica da sentença manipulativa, permite-se legitimamente dizer o que a Constituição nega e afirmar o que ela refuta: tudo em prol da necessidade de salvaguardar a sociedade da própria sociedade. A conduta está correta? Novamente, a resposta com Arrow.

Pode ser que, sob o ponto de vista individual, possamos compreender que existe a necessidade de alterar qualquer texto normativo para garantir mais paz, estabilidade e segurança. Pode até mesmo ser que esta seja a vontade racional objetivada por toda a população brasileira, compondo, assim, a racionalidade individual maximizada. Nem por isso, no entanto, esta racionalidade individual coincidirá com a racionalidade coletiva que, como produto do Poder Constituinte Originário, gestou e cuidou do nascimento da Constituição, relegando-nos a tarefa de zelar por ela para que, em contraponto, pudéssemos cuidar de nós mesmos.

Com isso não quero dizer que a decisão esteja errada, ou certa. O que gostaria de pontuar se situa para além do caráter episódico da alteração de um posicionamento então sedimentado perante o Supremo Tribunal Federal: é a virada realista psicológica motivada por fatores externos ao texto normativo propriamente dito, de sorte a manipulá-lo como que a uma massa de pão antes de ser levada ao forno. Se, de um lado, temos a ainda não ultrapassada fase de alteração irrestrita e constante da Constituição por intermédio de Emendas Constitucionais, agora também o texto inerente aos direitos fundamentais passa a ser moldado para atender à necessidade social. Nesse contexto, não sei exatamente se o amor outrora sentido pela Constituição já não caiu em uma mesmice de uma relação em que o amor, a cumplicidade e o carinho de um com o outro figuram apenas na memória longínqua, acessível por intermédio de fotos, como aquelas em que Constituintes bradavam, com o texto em punho, estar diante do instrumento mais democrático que o país vivera; ou se, por outro lado, e o que é pior, passamos a ter uma relação de infidelidade, desconfiança e interesses, em que importa o aqui e agora e a solução de momento; ou seja, mais do curativo, menos do preventivo.

Esta é uma questão de fundo epistemológico e tem mais a ver com o estabelecimento da verdade que pretendemos viver, do que com a alteração de um posicionamento. Preferimos o realismo psicológico lastreado na identificação de racionalidades coletivas não necessariamente coincidentes com as individuais, ou a estabilização de visões baseadas no indivíduo, tendo a pessoa humana como fundo?

Não sei. Ao menos Vinícius de Moraes parece ter descoberto. De suas palavras, colho a realidade que vivemos atualmente em relação à Constituição: “E assim, quando mais tarde me procure; quem sabe a morte, angústia de quem vive; quem sabe a solidão, fim de quem ama, eu possa me dizer do amor (que tive): que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure.”.

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] Íntegra disponível, entre muitíssimos lugares, em http://www.releituras.com/viniciusm_fidelidade.asp. Acesso em 21 fevereiro de 2016.

[2] Acerca da sentença manipulativa, entre várias fontes doutrinárias: ABELLÁN, Marina Gascón; FIGUEROA, Alfonso J. García. La argumentación en el Derecho. Algunas cuestiones fundamentales. Lima: Palestra Editores, 2015, p. 282-288.

[3] Entre várias leituras sobre o tema: MASKIN, Eric; SEN, Amartya. The Arrow Impossibility Theorem. New York: Columbia University Press, 2014.

[4] Íntegra do voto disponível em http://s.conjur.com.br/dl/stf-decide-reu-preso-depois-decisao.pdf. Acesso em 21 fevereiro de 2016.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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