Verdade e processo: notas sobre possibilidades

16/01/2017

 Por Paulo Incott – 16/01/2017

A questão da busca pela verdade é um dos temas que recebe destaque na filosofia e na hermenêutica.

O fato é que precisamos nos livrar e livrar outros da perspectiva incabível de que a verdade está num local esperando para ser capturada e explicada por um “iniciado” no método ou na forma de descoberta da mesma.

A questão da verdade será sempre, no mínimo, uma questão de poder e de possibilidade de escolha. Uma questão comunicativa por excelência. Vejamos um exemplo.

Se alguém diz que a folha de um arbusto é verde esta pessoa está com ‘a’ verdade? A resposta superficial poder ser afirmativa e até considerar impensável afirmação em contrário.

Porém, sabemos que a folha não ‘é’ verde. O observador a enxerga de tal forma porque nossos olhos “interpretam” o reflexo (as ondas) da luz na superfície da folha como algo que ficou convencionado ser chamado pela cor verde. O cão, de outra forma, se pudesse falar, não diria que a folha é verde. Assim, percebemos uma primeira problematização: a verdade depende da percepção do sujeito em relação ao objeto. Mudando o sujeito, pode-se mudar a percepção do objeto. Quem estará com a verdade?

Pode-se oferecer uma possível solução dizendo que a verdade será a mesma para todos os sujeitos que guardam a mesma capacidade de percepção. No caso, todos os seres humanos. Mas haverá contra-argumentos. Um ser humano portador de daltonismo não perceberá a folha como verde. Se desconhecer seu diagnóstico, poderá não se deixar convencer nem mesmo pelo testemunho de muitos outros observadores, uma vez que confia em sua percepção.

Mais uma vez se oferecerá uma alternativa - se dirá que para todos os seres com a mesma capacidade de percepção, sem que padeçam de uma disfunção da capacidade perceptiva (aqui visão) a verdade sobre a folha será a mesma.

Mas dificultemos um pouco as coisas: digamos que a folha foi banhada por uma lata de tinta vermelha. Poderemos continuar dizendo que esta folha é verde? Alguns argumentarão que sim, que a folha continua sendo verde, que sua “real” coloração foi modificada por uma ação posterior ao seu “nascimento” e que, em essência, ela continua sendo verde. Porém, voltaremos para o problema inicial em que percebemos que, “em essência”, a folha não ‘é’ verde - ela apenas é percebida assim em nossa capacidade visual de interpretação dos feixes de luz. Se alguém agora disser que a folha ‘é’ vermelha ele estará com a verdade ou não?

O exemplo acima pode ser considerado bastante infantil. Mas ele serve para perceber que, se em questões simples como aquelas em que podemos tirar conclusões apenas utilizando nossos sentidos básicos, sem a necessidade do aporte de nenhuma outra ferramenta de compreensão, a questão da verdade pode gerar tamanha dificuldade, que dirá de questões muito mais complexas como a reconstrução dos fatos no processo penal? A avaliação do dolo? O limite da legítima defesa? A escusabilidade do erro de proibição?

Diante desta complexidade fica nítido quão ingênuo ou tolo é acreditar em algo como a verdade real ou a possibilidade de pedir a uma testemunha de um evento traumático como um acidente ou uma tentativa de homicídio: “conte-nos EXATAMENTE o que você viu”.

Anda assim, é experiência cotidiana dos que labutam na defesa, no júri em especial, perceber esta tentativa de extração ou descoberta magnífica da verdade.

Flavio Antônio da Cruz, Aury Lopes Jr, Alexandre Morais Da Rosa, Lenio Streck, Salah Khaled, Jacinto Coutinho e outros tem escrito sobre a verdade, com enfoque no processo. É preciso ler. A defesa precisa assumir seu papel típico de levantamento destas questões, com o intuito de construção de um processo penal que possa pender cada vez mais para os ditames de um sistema menos "inquisitorial"(para não cair na problemática de definição de um sistema acusatório) e voltado a espelhar em definitivo a Constituição Federal.

Sei que é difícil falar dessas coisas no final de um ano como esse. Mas não podemos desistir.


Notas e Referências:

KHALED JR, Salah H. A Busca da verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013

STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. 5ª ed. Saraiva: São Paulo, 2014


paulo-incott. . Paulo Incott é Advogado. Pós-graduando em Direito Penal e Processual Penal. Pós-graduando em Criminologia. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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