Universidades, discriminação por gênero e assédio sexual: o caso da IF Goiás e a Ouvidoria Acolhidas da Universidade Federal de Uberlândia

07/08/2016

Por Cândice Lisbôa Alves - 07/08/2016

As pessoas que frequentam universidades convivem, ainda que disfarçadamente, com uma realidade perversa e ao mesmo tempo inconfessável: a discriminação por gênero e o assédio sexual. Esses temas parecem antiquados ou moralistas, mas, ao contrário, estão na ordem do dia, em especial após o manifesto das alunas e comunidade do IF Cidade de Goiás que rechaçaram assédio sexual praticado por professor da instituição em relação às alunas, e que podem ser encontrados em qualquer rede social ou mesmo na página do instituto federal no facebook .

O que essa notícia traz de importante? A mesma velha história do começo dos tempos: mulheres têm que “ter cuidado redobrado” por serem mulheres, pois socialmente elas ainda são consideradas vulneráveis e tratadas – em muitos casos – como tal. A vulnerabilidade mencionada não remete a uma suposta fragilidade, mas a ideia social machista e sexista de que as mulheres estão à disposição dos homens para lhes servir, satisfazendo seus desejos de natureza sexual. Como se fosse natural essa submissão e objetificação.

Devido a essa suposta “fraqueza”/vulnerabilidade/padrão sócio-cultural, são interpeladas e referidas por seus atributos físicos ao invés de serem tratadas pelas suas qualidades intelectuais, já que estão inseridas em um ambiente acadêmico. Ser bonita não é, nem nunca será, algo ruim, todavia ser objetificada por meio dos atributos físicos não é o que uma mulher deseja para si em um ambiente acadêmico, sem sombras de dúvidas.

O que pode parecer retrógrado, assim, volta à arena pública e pede uma ação conjunta e de grande escala no sentido de moralização das relações de ensino tendo em vista a necessidade de se garantir que o direito ao ensino superior seja oportunizado e garantido pelo Estado às mulheres que pretendem trilhar esse caminho. E sim, assédio sexual e discriminação por gênero colocam em xeque o direito à educação por parte das mulheres que se sentem constrangidas com esse comportamento. Vale lembrar que os autores dessas ações, por estarem em uma relação hierarquicamente superior, aproveitam-se do local, de forma que a parte mais fraca é a vítima, que além de, em um primeiro momento não acreditar no que está acontecendo (e negar), por outro lado não vê meios de dizer não sem que isso comprometa o seu futuro, no mínimo ameace sua carreira acadêmica.

Não raras vezes, em sala de aula e mesmo fora dela - mas ainda no ambiente acadêmico - ouvem-se burburinhos acerca de comportamentos inadequados por parte dos docentes em sobreposição às discentes, às vezes disfarçados e, por outras, escancarados. A situação é embaraçosa vez que a aluna não tem condições de, em igualdade de condições, dar a resposta adequada ou a que ela quer. Ela teme, inclusive, o não, por não saber as consequências em um futuro próximo (o professor é o detentor do diário, assim tem sobre suas mãos um elemento que intimida e determina consequências na vida das alunas). Exatamente por esse motivo é praticamente impossível a aluna se defender sozinha. Urge como necessária uma intervenção no sentido de criação de ouvidorias que recebam essas denúncias e se coloquem solidárias com as mulheres violentadas. É preciso políticas públicas específicas que proporcionem às mulheres que frequentam o ambiente acadêmico a tranquilidade de poderem gozar do direito à educação de forma plena. No mínimo sem medos de represálias, e com o direito ao não.

Na Universidade onde leciono, a Federal de Uberlândia, os casos de tentativa de estupro, os de assédio por parte de docentes e as discriminações por gênero eram de tamanha proporção que alunas do curso de Direito mobilizaram-se no sentido de criação de um projeto de extensão que atendesse essa demanda específica. Antes fizeram o “barulhaço” e requereram junto ao Reitor a criação de uma Comissão que inserisse na pauta a questão do gênero. Nesse contexto originou-se a Ouvidoria Acolhidas como projeto de extensão do Curso de Direito.

Apesar de Uberlândia ser a segunda maior cidade do Estado de Minas Gerais, a sociedade ainda é marcadamente patriarcal, o que reforça características machistas, da mesma forma como ocorreu no Estado de Goiás, refletindo, como pano de fundo, a questão do assédio sexual praticado por professor, inclusive com a publicação nas redes sociais da hashtag professorsecreto (#professorsecreto#).

Essa necessidade de repensar o local do feminino, ou, de ampliar a segurança pela ocupação do espaço feminino nas universidades, sem o risco de estupros, assédio ou discriminação por gênero, é uma demanda que cresce em diversos espaços do país. Pode-se verificar experiência semelhante já implantada na Universidade Federal de Juiz de Fora, bem como na UNB. Afora os atos institucionais, nas redes sociais crescem as plataformas feministas de apoio recíproco, junto com a construção do conceito de sororidade. Essas ações também podem ser percebidas no ambiente internacional, como bem retratado no documentário “The hunting ground”.  Ou seja, tanto no Brasil quanto no mundo, a segurança feminina está na pauta e precisa estar, em um sentido de empoderamento que lhes permita segurança e oportunidades.

Voltando ao cenário de Uberlândia, embora muito se ouça acerca de interpelações indevidas no ambiente acadêmico, não há nem ao menos um procedimento administrativo na Universidade que apure a prática do assédio contra alunas. Diante dessa contradição, o projeto Acolhidas pretende ser um instrumento apto a empoderar as mulheres vítimas de violência no sentido de estar ao lado delas para fazer as denúncias bem como dar os encaminhamentos devidos relativos ao caso, seja do ponto de vista jurídico ou administrativo, além de promover encaminhamentos de outras ordens (como psicológicos).

Antes de mais nada, o projeto Acolhidas nasce com a missão de quebrar o silêncio atinente ao assunto. Nasce para dizer, assim como alertou Bourdieu, a violência simbólica que o público feminino padece. Falar é a primeira forma de reagir. O mais triste da história é que apesar de a mulher ser a vítima, ela é cotidianamente considerada culpada, e carrega encrustada na própria subjetividade o estigma da (sua) culpa. O silêncio é uma forma de tomar para si a responsabilidade da situação, e, em muitos casos, acreditar nessa faceta nefasta que tenta ser difundida. Não se pode perder de vista que muitas vítimas chegam a abandonar sonhos e projetos de vida – como estar na universidade – em função da violência de gênero. Não há como conviver pacificamente com a situação, e por isso nos esforçaremos nessa demanda.


. Cândice Lisbôa Alves é Bacharel em Direito pela UFV(2004). Mestre pela UFV (2006). Doutora em Direito Público pela Puc Minas(2013). Professora Adjunta I da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia (2016). Professora de Organização do Estado e dos Poderes e Jurisdição Constitucional na graduação. Professora de Jurisdição Constitucional no Mestrado em Direito da Universidade Federal de Uberlândia. Advogada. Coordenadora do grupo de estudos Hoplita, que analisa as atividades contramajoritárias do direito em prol dos direitos fundamentais. Uma das professoras coordenadoras do projeto Ouvidoria Acolhidas (ouvidoria especializada para atender casos de discriminação de gênero e assedio sexual na Universidade Federal de Uberlândia). Coordenadora do projeto Constituição na Escola (projeto de extensão e pesquisa que busca ensinar à crianças e adolescentes o conteúdo da Constituição, elegendo pontos relevantes para o incentivo à cidadania).


Imagem Ilustrativa do Post: Marcha das Vadias 2013 // Foto de: Maria Objetiva // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mariaobjetiva/8835094981/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura