Por Lucas Hinckel Teider – 09/01/2017
O país assiste em impotência e insegurança o início de uma “onda” de rebeliões no sistema penitenciário. Iniciou-se, em termos recentes (isto porque não se trata de um fenômeno novo), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, localizado na capital do Estado de Amazonas, Manaus, já sendo considerado o maior incidente do gênero desde o infame episódio do Carandiru[1] (em São Paulo, 1992). Ao total, 56 detentos mortos. Muitos, decapitados, mutilados.
A bomba-relógio explodiu[2], ou parece estar em seus “tique-taques” finais. Na madrugada do dia 6 de janeiro de 2017, 33 outros presos foram assassinados na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, próxima à capital do Estado de Roraima, Boa Vista[3].
Mas não bastava o terror infligido “somente” pelos odiosos atos de execução. Diversos apenados foram decapitados, mutilados, e ainda, vários tiveram seus corações retirados e colocados ao lado de seu corpo, para posteriores registros fotográficos dos algozes com o objetivo de “enviar a mensagem”.
Pari passu, outro horror surge além dos muros prisionais: o discurso de ódio de determinados indivíduos comemorando os nefastos acontecimentos. Sobretudo nas redes sociais e nos inúmeros comentários logo abaixo às notícias em qualquer canal de comunicação, os incidentes são celebrados como a efetivação de algum sentido perturbado de “justiça”.
Curioso é observar que, muitos destes indivíduos que se regozijam com as tragédias (não apenas recentes, mas de toda sorte deste feitio), legitimam seu discurso enunciando-se defensores da “lei e da ordem”, vetusto movimento que teve seu ápice ideológico na década de 1970, em destaque nos Estados Unidos, com o ideário de que a punição e o aumento da repressão fundam-se como soluções idôneas para o controle da criminalidade.
Mas, ora, cabe ponderar a seguinte reflexão: se determinado sujeito é, como muitos se autoproclamam, “defensores da lei e da ordem”, certamente este não poderia encampar, por exemplo, o lema “bandido bom é bandido morto”, eis que a primeira premissa anula esta segunda.
Por quê? Vejamos. Seguramente, uma rebelião (para ater-se ao momento atual) se desvincula da pretensa ordem rigidamente estabelecida. Não obstante, um dos sinônimos mais adequados do substantivo é, justamente, “desordem” (e em análise mais estendida, seria adequado também confirmar a criminalidade como uma desordem social, maiormente quanto às suas causas).
Então, festejar um movimento de rebelião, por exemplo, é postura contrária à edificação da ordem. Conclui-se que não é ordem que se defende.
Seriam então estes indivíduos religiosos da cultura da lei? Parece-nos que não, igualmente, pois quem recita ódio como mantra (com o pavoroso exemplo de “bandido bom é bandido morto”) não pode ser considerado fiel devoto dos primados legais, uma vez que inúmeras práticas com as quais muitos sadicamente deleitam-se são expressamente vedadas e condenadas pela lei, ou ainda, por dispositivos hierarquicamente superiores.
A curto objetivo de exemplo poder-se-ia citar as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos, adotadas pelo 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinqüentes, realizado em Genebra, em 1955; o Pacto de San José da Costa Rica, aprovado em 1969 pela Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos (e ratificado pelo Brasil); a própria Constituição Federal de 1988, sobretudo em seu artigo 5º, incisos III (ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante) e XLIX (é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral); e ainda, a Lei de Execuções Penais, de 1984, que não apenas regulamenta o procedimento da Execução Penal, mas reproduz as garantias fundamentais daqueles que se encontram privados de sua liberdade, deixando evidente que seu único direito restringido é a liberdade, jamais qualquer outro.
Se de fato houvesse instaurada uma “cultura de legalidade”, jamais presenciaríamos exaustivas e cotidianas violações a toda sorte de direitos (sobretudo garantias individuais fundamentais), muito menos festejaríamos tais episódios.
O discurso (e a cultura) de ódio, além de irracional e contraproducente, é incoerente.
A cultura de ódio funda-se como autofágica, em um perpétuo e viciado movimento sem objetivo a não ser o próprio ódio que alimenta, produz e destila. E se a cultura de ódio pode ser considerada autofágica, seus adeptos são nada menos que antropofágicos, uma vez que o discurso de ódio dirigido ao oprimido pode voltar-se (e certamente irá, pela estrutura do caos instaurado) contra o outrora opressor.
Não se importam com a lei, muito menos com a ordem, ou com o humano, com o indivíduo outro. O futuro é sombrio, mas talvez não imprevisível. Prenunciava Bretch: “Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.”.
Notas e Referências:
[1] FOLHA DE SÃO PAULO: Maior matança em presídios desde o Carandiru deixa 56 vítimas no AM. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1846359-maior-matanca-em-presidios-desde-o-carandiru-deixa-56-vitimas-no-am.shtml>, acesso em 06/01/2017, às 12h00.
[2] EL PAÍS – BRASIL: A bomba-relógio da população carcerária no Brasil. Disponível em: <http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/05/politica/1483624203_712909.html>, acesso em 06/01/2017, às 12h00.
[3] FOLHA DE SÃO PAULO: Retaliação mata 33 presos em RR; essa é a 2ª maior matança após o Carandiru. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/01/1847511-33-presos-sao-mortos-em-penitenciaria-de-roraima-diz-secretaria.shtml>, acesso em 06/01/2017, às 12h00. *De acordo com a Folha de São Paulo, até a última edição da reportagem, realizada às 11h29 do dia 06/01/2017, este número pode crescer, uma vez que a contagem dos corpos ainda não restava concluída.
Para reflexão mais aprofundada sobre os Tratados de Direitos Humanos atinentes à questão prisional: RANGEL, Anna Judith. Violações aos direitos humanos dos encarcerados no Brasil: perspectiva humanitária e tratados internacionais. In: JusBrasil. Disponível em: <http://ninhajud.jusbrasil.com.br/artigos/123151293/violacoes-aos-direitos-humanos-dos-encarcerados-no-brasil-perspectiva-humanitaria-e-tratados-internacionais>, acesso em 06/01/2017, às 12h00.
. Lucas Hinckel Teider é acadêmico de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Diretor do Centro Acadêmico Sobral Pinto – CASP PUC-PR (2014). Pesquisador de Direito Constitucional da PUC-PR (2014-2016). Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7211922273373427. .
Imagem Ilustrativa do Post: Ministro da Justiça José Eduardo Cardozo visita novas instalações da Penitenciária Lemos de Brito // Foto de: Fotos GOVBA // Sem alterações
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