Um novo jeito de dizer as coisas que já dizemos por aí...

23/06/2016

Por Cesar Augusto Cavazzola Junior - 23/06/2016

Ronaldo José da Cunha Lima contou numa entrevista ao Programa Memória Viva[1], da TV Universitária da UFRN, em 24 de fevereiro de 1989, que certa vez foi procurado por um amigo que criava porcos em casa, cuja pocilga incomodava muito a vizinhança. O Secretário de Saúde, pois, decidiu prender os porcos. Seu trabalho, portanto, seria soltá-los. Requereu Habeas Porcos.

Em seguida, fora procurado por um amigo preso e autuado em flagrante, isso porque fazia serenata. Pagou fiança, mas o delegado decidiu reter o violão. Procurado, requereu Habeas Pinho:

Habeas Pinho

Senhor Juiz. Roberto Pessoa de Sousa

O instrumento do "crime" que se arrola Nesse processo de contravenção Não é faca, revolver ou pistola, Simplesmente, Doutor, é um violão.

Um violão, doutor, que em verdade Não feriu nem matou um cidadão Feriu, sim, mas a sensibilidade De quem o ouviu vibrar na solidão.

O violão é sempre uma ternura, Instrumento de amor e de saudade O crime a ele nunca se mistura Entre ambos inexiste afinidade.

O violão é próprio dos cantores Dos menestréis de alma enternecida Que cantam mágoas que povoam a vida E sufocam as suas próprias dores.

O violão é música e é canção É sentimento, é vida, é alegria É pureza e é néctar que extasia É adorno espiritual do coração.

Seu viver, como o nosso, é transitório. Mas seu destino, não, se perpetua. Ele nasceu para cantar na rua E não para ser arquivo de Cartório.

Ele, Doutor, que suave lenitivo Para a alma da noite em solidão, Não se adapta, jamais, em um arquivo Sem gemer sua prima e seu bordão

Mande entregá-lo, pelo amor da noite Que se sente vazia em suas horas, Para que volte a sentir o terno acoite De suas cordas finas e sonoras.

Liberte o violão, Doutor Juiz, Em nome da Justiça e do Direito. É crime, porventura, o infeliz Cantar as mágoas que lhe enchem o peito?

Será crime, afinal, será pecado, Será delito de tão vis horrores, Perambular na rua um desgraçado Derramando nas praças suas dores?

Mande, pois, libertá-lo da agonia (a consciência assim nos insinua) Não sufoque o cantar que vem da rua, Que vem da noite para saudar o dia.

É o apelo que aqui lhe dirigimos, Na certeza do seu acolhimento Juntada desta aos autos nós pedimos E pedimos, enfim, deferimento.

O juiz, Roberto Pessoa de Sousa, decidiu acompanhar a linguagem do poeta, quando escreveu:

Recebo a petição escrita em verso E, despachando-a sem autuação, Verbero o ato vil, rude e perverso, Que prende, no Cartório, um violão.

Emudecer a prima e o bordão, Nos confins de um arquivo, em sombra imerso, É desumana e vil destruição De tudo que há de belo no universo.

Que seja Sol, ainda que a desoras, E volte à rua, em vida transviada, Num esbanjar de lágrimas sonoras.

Se grato for, acaso ao que lhe fiz, Noite de luz, plena madrugada, Venha tocar à porta do Juiz.

Ronaldo José da Cunha Lima foi advogado, promotor e político e, além de poeta e professor, membro da Academia Paraibana de Letras. Foi vereador, deputado, prefeito, governador e senador da República. Ao longo de toda a sua trajetória, marcou a vida com poesia e muitos escritos sobre temas diversos.

Outro que ficou conhecido por um relatório peculiar foi Graciliano Ramos, um dos maiores nomes da literatura nacional. Quando prefeito do município de Palmeira dos Índios, Alagoas, prestou contas ao Governador Álvaro Paes nos seguintes termos.

Falando sobre as receitas do município:

No orçamento do ano passado houve supressão de várias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68:850$000, atingiu 96:924$985.

E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoa que não precisavam deles e pus termo à extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores.

Sobre a construção de novo cemitério:

Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo. São os munícipes que não reclamavam.

Quanto à arrecadação de multas:

E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infrações que produziram soma considerável para um orçamento exíguo referem-se a prejuízos individuais e foram denunciadas pelas pessoas ofendidas, de ordinário gente miúda, habituada a sofrer a opressão dos que vão trepando.

Esforcei-me por não cometer injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma política. Com inabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietário que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pasto a lavoura, devia enforcar-me.

Publicado no Diário Oficial, o conteúdo dos relatórios alastrou-se pela imprensa do país, chamando a atenção do editor e poeta Augusto Frederico Schmidt, para que o tal prefeito poderia ter um romance manuscrito na gaveta, como de fato havia.

Está na hora de se falar abertamente sobre a formação literária do nosso país, e sobretudo em como isso poderá dar um novo fôlego às gerações futuras de novos juristas. Pouco a pouco o autor tentará a proeza, isso se Deus e o espaço no qual escreve assim permitirem...


Notas e Referências:

[1] O trecho pode ser acompanhado em: https://www.youtube.com/watch?v=Wb0v99OANjc.


Cesar Augusto Cavazzola Junior. Cesar Augusto Cavazzola Junior é Advogado (OABRS 83.859). MBA em Business Law (FGV) e Pós-MBA em Negociação (FGV). Mestre em Direito (Unisinos). Professor de redação do Teorema. Autor dos livros “Manual de Direito Desportivo” (EDIPRO) e “Bacamarte” (Giostri, com previsão de lançamento no segundo semestre de 2016). Há outros livros e traduções acabadas na gaveta, esperando um pouco mais de tempo e maturidade...


Imagem Ilustrativa do Post: tiles // Foto de: janet galore // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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