Por Redação - 20/12/2016
Valendo-se dos preceitos estabelecidos pelo Princípio da Insignificância, por maioria de votos, a Primeira Turma de Recursos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina reconheceu a atipicidade material da conduta de um rapaz que portava 18,2g de maconha para consumo pessoal.
Para o Juiz Especial Rudson Marcos, Relator da Apelação Criminal n. 0703468-26.2011.8.24.0090, embora o Supremo Tribunal Federal ainda discuta a constitucionalidade do art. 28 da Lei de Drogas, a pequena quantidade de substância entorpecente apreendida exige a aplicação do Princípio da Insignificância, isso porque trata-se de crime com mínima ofensividade na conduta do agente, nenhuma periculosidade social na ação, reduzido grau de reprovabilidade, bem como inexpressiva lesão ao bem jurídico tutelado.
Veja a íntegra da decisão:
Apelação n. 0703468-26.2011.8.24.0090, da Capital - Norte da Ilha
Relator: Rudson Marcos
APELAÇÃO CRIMINAL. DENÚNCIA PELO CRIME PREVISTO NO ART. 28 DA LEI N. 11.343/06. CONDENAÇÃO. ALEGADA PRESCRIÇÃO DA PRETENSÃO PUNITIVA. INOCORRÊNCIA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. REVOGAÇÃO DO BENEFÍCIO. TERMO INICIAL DO PRAZO PRESCRICIONAL. MÉRITO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. MATÉRIA DE ORDEM PÚBLICA. RECONHECIMENTO DE OFÍCIO. ATIPICIDADE MATERIAL RECONHECIDA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA
Vistos, relatados e discutidos nestes autos de Apelação n. 0703468-26.2011.8.24.0090, da comarca da Capital - Norte da Ilha Juizado Especial de Santo Antônio de Lisboa, em que é/são Apelante M. S. da S., e Apelado Ministério Público do Estado de Santa Catarina:
I. RelatórioTrata-se de Apelação Criminal interposta por M. S. da S., contra sentença que houve por bem receber a denúncia proposta pelo Ministério Público de Santa Catarina e condenar o réu, pela prática do crime de porte de drogas para consumo pessoal, nas sanções do art. 28, inciso II, c/c §3º da Lei n.º 11.343/2006, aplicando-lhe a pena de prestação de serviços à comunidade, por 30 (trinta) dias, à razão de 4 (quatro) horas semanais.
Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação (fls. 136/145).
Em sede de contrarrazões, o Ministério Público manifestou-se pelo desprovimento do apelo (fls. 150/162). De igual maneira, em segundo grau, o Ministério Público manifestou-se pelo parcial conhecimento e não provimento (fls. 165/169).
É o relatório. Fundamento e decido.
II. Voto
Conheço do recurso, uma vez que presentes os pressupostos legais de admissibilidade.
Da Prescrição
O apelante pugnou pela extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva do Estado, pois os fatos ocorreram em 13.11.2011 (fl. 03) e a sentença condenatória foi proferida em 17.08.2015, sendo-lhe imputado pena de 30 dias de serviço comunitário. Logo, segundo seus argumentos, teria transcorrido lapso temporal superior a um ano entre os marcos interruptivos.
No presente caso, em que pese os argumentos lançados no pleito de fls. 170/171, incorre o apelante em dois equívocos, primeiramente, o art. 30 da Lei n.º 11.343/06 estabelece em 2 (dois) anos o prazo prescricional referente à infração prevista no art. 28 do mesmo diploma legal. Logo, inaplicável o prazo prescricional estabelecido pelo Código Penal.
Em segundo lugar, não se verifica o transcurso do prazo prescricional no presente caso.
Isso porque, em análise aos autos, verifica-se que os fatos se deram em 13.11.2011 (fl. 03), por seu turno, a denúncia foi recebida em 11.03.2013 (fl. 51), ocasião em que foi homologada pelo juízo a proposta de suspensão condicional do processo, nos termos do art. 89 da Lei n. 9.099/95, suspendendo-se, consequentemente, o curso da prescrição (art. 89, §6º, da lei citada).
Entretanto, por deixar o acusado de cumprir com as obrigações impostas, foi revogado o sursis processual e a suspensão do prazo prescricional em 30.6.2014 (fl. 72),
Sendo assim, iniciando o prazo prescricional em 30.06.2014 e, tendo sido proferida a sentença condenatória em 17.08.2015 (fls. 119/121), não resta consumado o interstício temporal legalmente aplicável à hipótese dos autos.
Aliás, sobre o assunto, cito precedente do eg. TJSC:"APELAÇÃO CRIMINAL. ESTELIONATO (ART. 171, CAPUT, DO CP). ÉDITO CONDENATÓRIO. INCONFORMISMO DA DEFESA. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. DESCUMPRIMENTO INJUSTIFICADO DE MEDIDA IMPOSTA DURANTE O PERÍODO DE PROVA. REVOGAÇÃO DO SURSIS PROCESSUAL APÓS ESCOADO O PRAZO. VIABILIDADE. PRECEDENTES. DECISÃO, CONTUDO, MERAMENTE DECLARATÓRIA. RETOMADA DA CONTAGEM PRESCRICIONAL A PARTIR DA REVOGAÇÃO AUTOMÁTICA. PRESCRIÇÃO RETROATIVA DA PRETENSÃO PUNITIVA ESTATAL IDENTIFICADA. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE QUE SE IMPÕE. RECURSO PROVIDO". (TJSC, Apelação Criminal n. 2015.008587-7, de Ituporanga, rel. Des. Rodrigo Collaço, j. 09-07-2015).
Inviável, pois, o almejado reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva estatal.
Mérito
Trata-se de ação penal pública incondicionada deflagrada pelo representante do Ministério Público, imputando ao denunciado, ora apelante, a prática do delito previsto no artigo 28, da Lei nº 11.343/06, que dispõe:
"Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas; II - prestação de serviços à comunidade;III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo". [...]
Segundo consta da peça acusatória (fls. 29/30):
"No dia 13 de novembro de 2011, por volta das 15h45min, o denunciado Thiago trafegava com a motocicleta Honda Twister, placas ILH-9414, juntamente com um amigo, pela rua Isid Dutra, em frente ao n. 1507,, no bairro Barra do Sambaqui, quando ao avistar uma guarnição da Polícia Militar que fazia patrulhamento no local, tentou se evadir do local. Os policiais militares, então, abordaram os indivíduos, sendo encontrado com o denunciado dois pedaços prensados de maconha, pesando aproximadamente 18,2 gramas, droga sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar (fls. 03/04 e 15/16 e 22/25)".
Nesse passo, tem-se que a sentença recorrida considerou a conduta do réu formalmente típica, antijurídica e culpável.
Todavia, em sede recursal sustenta a defesa a atipicidade material, amparada no princípio da insignificância.
Contudo, embora haja inovação do pedido defensivo, em sede recursal, todavia, por se tratar de matéria de ordem pública, há de ser conhecida.
Neste sentido:
"[...] se a conduta imputada ao acusado não for típica, o pedido condenatório formulado na exordial acusatória será julgado improcedente, ainda que o réu nada alegue a respeito em sua defesa. Além disso, trata-se de matéria de ordem pública, que pode ser conhecida a qualquer tempo". (2010.0744827-3, rel. des. Moacyr de Moraes Lima Filho, 3ª Câm. Crim., 15/02/11)
A propósito, o ensinamento de Eugênio Pacelli de Oliveira:
"Com efeito, a providência final que, em regra, espera-se no processo penal condenatório (excluída, por ora, a hipótese de transação penal realizada nos Juizados Especiais Criminais) é a absolvição ou a condenação do réu nas sanções em que se achar ele incurso, isto é, nas penas cominadas no tipo penal correspondente à conduta reconhecidamente praticada. "Afirma-se, com isso, que o pedido seria sempre genérico, no sentido de com ele se viabilizar a correta aplicação da lei penal, independentemente da alegação do direito cabível trazida aos autos pelas partes. O Juiz Criminal estaria vinculado apenas à imputação dos fatos, atribuindo-lhes, uma vez reconhecidos, a consequência jurídica que lhe parecer adequada, tanto no que respeita à classificação (juízo de tipicidade) quanto à pena e à quantidade de pena a ser imposta. "Se no processo civil o autor delimita tanto a matéria a ser conhecida quanto a providência que lhe parece necessária a satisfazer seus interesses, no processo penal cumpre ao autor delimitar unicamente a causa petendi, ou seja, o fato delituoso merecedor de reprimenda penal. O juízo de adequação típica, o enquadramento jurídico do fato, bem como a dosimetria da pena a ser aplicada, encontram-se, todos, na própria lei, cabendo ao juiz a tarefa de revelar seu conteúdo" (Curso de processo penal. 11. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009).
Logo, esta Turma vem entendendo, em casos como o dos autos, pelo conhecimento da tese sustentada pelo apelante, referente à aplicabilidade do princípio da insignificância, mesmo em caso de inovação recursal, em razão do acima explicitado.
Pois bem, quanto ao mérito, apesar da divergência constante nos Tribunais Superiores e, inclusive, neste Colegiado, no tocante à aplicabilidade do princípio da insignificância, filia-se este Relator à corrente que reconhece a atipicidade material da conduta, ressalva circunstâncias especiais.
A respeito da tipicidade, Rogério Greco faz a importante distinção entre a tipicidade formal, e a tipicidade conglobante. Sobre essas espécies de tipicidade, o Autor faz os seguintes comentários:
"Tipicidade formal é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal. [...]. Para que se possa concluir pela tipicidade conglobante, é preciso verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico. (Greco, Rogério. Curso de direito penal. 17 ed. - Rio de Janeiro: Impetus, 2015, fl. 113)
Tal observação é importante na medida em que, a ausência de tipicidade material conduz a um indiferente penal, pois, o ato praticado pelo agente não fere de maneira relevante o ordenamento jurídico penal. Segundo a doutrina, essa situação faz surgir o princípio da insignificância.
Sobre o tema, Damásio de Jesus ensina que:"Ligados aos chamados "crimes de bagatela" (ou "delitos de lesão mínima"), recomenda que o direito penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves [...]. (Jesus, Damásio de. Direito penal, volume 1: parte geral. 36 ed. - São Paulo: Saraiva, 2015, fl. 52).
É de suma importância a verificação do caso concreto, pois, segundo os princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima, ao direito penal incumbe o resguardo apenas dos bens mais caros à sociedade e, dentre esses bens, apenas sancionar lesões sérias, com verdadeiro potencial lesivo.
Nessa esteira, sem entrar na esfera da discussão da adequação social, entendo que o feito realmente merece a incidência do princípio da insignificância.
Aliás, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, iniciou o julgamento do Recurso Extraordinário n.º 635.659, em que se discute a inconstitucionalidade do art. 28 da Lei 11.343/06. Na oportunidade, proferiram votos favoráveis à declaração de inconstitucionalidade o relator, Min. Gilmar Mendes, e os ministros Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Ocorre, entretanto, que o julgamento foi interrompido em face do pedido de vista do Min. Teori Zavaski, pendente, até a presente data, a retomada do julgamento.
Nesse cenário, calha trazer à colação excerto dos votos já proferidos pelos ministros Gilmar Mendes e Luiz Roberto Barroso.Segundo o relator Min. Gilmar Mendes, "a criminalização do porte de drogas para uso pessoal afigura-se excessivamente agressiva à privacidade e à intimida". Adverte o Ministro que:
[...] "o dependente de drogas e, eventualmente, até mesmo o usuário não dependente estão em situação de fragilidade, e devem ser destinatários de políticas de atenção à saúde e de reinserção social, como prevê nossa legislação – arts. 18 e seguintes da Lei 11.343/06. Dar tratamento criminal a esse tipo de conduta, além de andar na contramão dos próprios objetivos das políticas públicas sobre o tema, rotula perigosamente o usuário, dificultando sua inserção social".
E conclui:"Assim, tenho que a criminalização da posse de drogas para uso pessoal é inconstitucional, por atingir, em grau máximo e desnecessariamente, o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, em suas várias manifestações, de forma, portanto, claramente desproporcional".
Contudo, apesar da manifestação do relator pela inconstitucionalidade, este adverte em seu voto que "a aplicação, no que couber, das medidas previstas no art. 28 da Lei de Drogas, sem qualquer efeito de natureza penal, mostra-se solução apropriada, em caráter transitório, ao cumprimento dos objetivos da política nacional de drogas, até que sobrevenha legislação específica. Afastada a natureza criminal das referidas medidas, com o consequente deslocamento de sua aplicação da esfera criminal para o âmbito civil, não é difícil antever uma maior efetividade no alcance dessas medidas, além de se propiciarem, sem as amarras da lei penal, novas abordagens ao problema do uso de drogas por meio de práticas mais consentâneas com as complexidades que o tema envolve".
Já o ministro Roberto Barroso, em seu voto, enuncia as razões pragmáticas que justificam a descriminalização, segundo o ilustre ministro a descriminalização do consumo é uma alternativa melhor, pois "os males causados pela política atual de drogas têm superado largamente os seus benefícios. A forte repressão penal e a criminalização do consumo têm produzido consequências mais negativas sobre a sociedade e, particularmente, sobre as comunidades mais pobres do que aquelas produzidas pelas drogas sobre os seus usuários".
Do ponto de vista jurídico, Barroso elenca três fundamentos que justificam e legitimam a descriminalização à luz da Constituição Federal de 1988, que, para tanto, peço vênia para transcrever o seguinte excerto do voto:
"A intimidade e a vida privada , que compõem o conteúdo do direito de privacidade, são direitos fundamentais protegidos pelo art. 5º, X da Constituição. O direito de privacidade identifica um espaço na vida das pessoas que deve ser imune a interferências externas, seja de outros indivíduos, seja do Estado. O que uma pessoa faz na sua intimidade, da sua religião aos seus hábitos pessoais, como regra devem ficar na sua esfera de decisão e discricionariedade. Sobretudo, quando não afetar a esfera jurídica de um terceiro".
[...]"A liberdade é um valor essencial nas sociedades democráticas. Não sendo, todavia, absoluta, ela pode ser restringida pela lei. Porém, a liberdade possui um núcleo essencial e intangível, que é a autonomia individual. Emanação da dignidade humana, a autonomia assegura ao indivíduo a sua autodeterminação, o direito de fazer as suas escolhas existenciais de acordo com as suas próprias concepções do bem e do bom. Cada um é feliz à sua maneira. A autonomia é a parte da liberdade que não pode ser suprimida pelo Estado ou pela sociedade".
[...]"O princípio da razoabilidade ou da proporcionalidade, na sua dimensão instrumental, funciona como um limites às restrições dos direitos fundamentais. Para que a restrição a um direito seja legítima, ela precisa ser proporcional. Em matéria penal, tal ideia se expressa em alguns conceitos específicos, que incluem a lesividade da conduta incriminada, a vedação do excesso e a proibição da proteção deficiente.
O denominado princípio da lesividade exige que a conduta tipificada como crime constitua ofensa a bem jurídico alheio. De modo que se a conduta em questão não extrapola o âmbito individual, o Estado não pode atuar pela criminalização. O principal bem jurídico lesado pelo consumo de maconha é a própria saúde individual do usuário, e não um bem jurídico alheio. Aplicando a mesma lógica, o Estado não pune a tentativa de suicídio ou a autolesão. Há quem invoque a saúde pública como bem jurídico violado. Em primeiro lugar, tratar-se-ia de uma lesão vaga, remota, provavelmente em menor escala do que, por exemplo, o álcool ou o tabaco. Em segundo lugar porque, como se procurou demonstrar, a criminalização termina por afastar o usuário do sistema de saúde, pelo risco e pelo estigma. De modo que pessoas que poderiam obter tratamento e se curar, acabam não tendo acesso a ele. O efeito, portanto, é inverso. Portanto, não havendo lesão a bem jurídico alheio, a criminalização do consumo de maconha não se afigura legítima".
Portanto, considerando a pequena quantidade de substância entorpecente apreendida em poder do apelante (18,2g – fl. 21/25), deve-se aplicar o princípio da insignificância, isto porque o crime em questão possuí mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade, bem como inexpressiva lesão ao bem jurídico tutelado.
Ante o exposto, voto pelo conhecimento do recurso e aplicação, de ofício, do princípio da insignificância, porque presentes seus requisitos, e, por consequência, a absolvição do réu/apelante, com fulcro no artigo 386, inciso VI, do Código de Processo Penal.
III - ACÓRDÃO
Acórdão, em Primeira Turma de Recursos, por maioria, conhecer do recurso para dar-lhe provimento, reformando a sentença de primeiro grau para absolver o réu M. S. da S., com fulcro no artigo 386, VI, do Código de Processo Penal.
Sem custas.
Comunique-se o conteúdo do presente acórdão (art. 201, §2º, do CPP).
Participaram do julgamento os meritíssimos juízes Rudson Marcos, Marcelo Carlin e Antonio Augusto Baggio e Ubaldo, tendo este ficado vencido, quanto à tese da atipicidade delitiva
Florianópolis, 29 de setembro de 2016.
Rudson Marcos
Relator
Fonte: Tribunal de Justiça de Santa Catarina
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