TRATAMENTO AMBULATORIAL E CRIME APENADO COM RECLUSÃO

23/04/2020

A possibilidade de aplicação de medida de segurança de tratamento ambulatorial ao invés de internação ao réu inimputável que praticou crime apenado com reclusão vem sendo admitida no Superior Tribunal de Justiça que, em diversos precedentes, vem abrandando o mandamento insculpido no art. 97 do Código Penal em face dos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Como é cediço, a medida de segurança é uma espécie de sanção penal imposta pelo Estado aos inimputáveis por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado (art. 26, “caput”, do CP) visando a prevenção do delito, com a finalidade de evitar que o criminoso que apresente periculosidade volte a delinquir. Ao semi-imputável também é possível a aplicação de medida de segurança, nos termos do disposto no art. 98 do Código Penal (sistema vicariante).

Nesse sentido, enquanto o fundamento da aplicação da pena reside na culpabilidade (juízo de reprovação social), o fundamento da medida de segurança reside na periculosidade.

Logo, são três os pressupostos de aplicação das medidas de segurança: a) prática de fato descrito como crime; b) periculosidade do sujeito; c) ausência de imputabilidade plena.

Periculosidade é a potencialidade de praticar ações lesivas. A periculosidade pode ser real (quando precisa ser comprovada) ou presumida (quando não precisa ser comprovada). No caso dos inimputáveis, a periculosidade é presumida, pois a lei determina a aplicação da medida de segurança, pressupondo que sejam eles dotados de potencialidade criminosa. No caso dos semi-imputáveis, a periculosidade é real, pois deve ser verificada pelo juiz à luz do caso concreto, ensejando a escolha entre a aplicação de pena reduzida ou a imposição de medida de segurança.

Há duas espécies de medida de segurança: a) medida de segurança detentiva, que consiste na internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (art. 96, I, do CP); b) medida de segurança restritiva, que consiste na sujeição a tratamento ambulatorial (art. 96, II, do CP).

Para a aplicação da medida de segurança, por óbvio deverá o réu ser submetido a processo regular, sendo-lhe observadas todas as garantias constitucionais. No final do processo, em fase de sentença, o juiz deverá, comprovada a inimputabilidade, absolver o réu (sentença absolutória imprópria), impondo-lhe medida de segurança.

Essa medida de segurança pode consistir em internação, quando ao crime forem previstas penas de reclusão ou de detenção; e tratamento ambulatorial, quando ao crime for prevista pena de detenção.

Assim, vale ressaltar que, tanto nos crimes apenados com reclusão como nos crimes apenados com detenção, a espécie de medida de segurança adequada será a de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, eis que o Código Penal adota a periculosidade presumida.

A lei faculta ao juiz, entretanto, no art. 97, “caput”, segunda parte, do Código Penal que submeta o agente a tratamento ambulatorial, no caso de ser o fato por ele praticado previsto como crime apenado com detenção, sempre em atenção à gravidade do delito, às circunstâncias do fato e à intensidade da periculosidade apresentada. Pela lei, portanto, o tratamento ambulatorial somente pode ser aplicado em caso de prática de crime apenado com detenção.

Foi justamente nesse aspecto que o Superior Tribunal de Justiça inovou, possibilitando ao juiz a aplicação de tratamento ambulatorial ao inimputável, ainda que o crime por ele praticado seja apenado com reclusão.

Já havia certa divergência de entendimentos no Superior Tribunal de Justiça, na medida em que a Quinta Turma não admitia a aplicação de tratamento ambulatorial ao inimputável que praticasse crime apenado com reclusão, enquanto que a Sexta Turma já vinha entendendo ser possível essa modulação.

Mais recentemente, inclusive, a questão foi novamente trazida à baila no julgamento de Embargos de Divergência interpostos pelo Ministério Público contra julgamento da Sexta Turma. Nos embargos, o Ministério Público trouxe em seu favor a orientação da Quinta Turma, sustentando a necessidade de cumprimento estrito do disposto no art. 97 do Código Penal.

A Terceira Seção, então, em decisão unânime, entendeu ser possível ao juiz determinar o tratamento ambulatorial ao invés da internação ao inimputável que praticou crime apenado com reclusão. Na oportunidade, o ilustre Ministro Relator entendeu que, em razão dos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, o artigo 97 do Código Penal não deve ser submetido a uma interpretação literal. Dessa forma, nos casos de delitos apenados com reclusão praticados por inimputáveis, o magistrado, ao invés de determinar obrigatoriamente a internação do agente para tratamento psiquiátrico, tem a faculdade de optar pelo tratamento ambulatorial, se considerá-lo mais adequado.

Foi o que ficou decidido no AgRg no REsp 1804414/MS, em que o réu inimputável praticou diversos crimes de estupro de vulnerável em continuidade delitiva, em rituais de magia em que o mesmo acariciava e beijava  os  corpos  das  vítimas  e,  ainda,  determinava que todos tocassem  em  seu órgão genital.

Nesse caso gravíssimo, de crime hediondo apenado com reclusão, a Sexta Turma entendeu que, em observância aos princípios da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, mais adequado à pronta recuperação do réu seria o tratamento ambulatorial, em virtude da possibilidade de mitigação do critério previsto no art. 97 do Código Penal.

Com o devido respeito às decisões nesse sentido do egrégio Superior Tribunal de Justiça, não nos parece cabível e nem admissível ou aconselhável que, num estado democrático de direito, em que a independência dos poderes deve ter assento de honra, possa o Poder Judiciário atropelar a lei e praticamente negar-lhe cumprimento, como no caso do art. 97 do Código Penal, invocando princípios como o da adequação, da razoabilidade e da proporcionalidade, os quais, sem qualquer supedâneo constitucional, ainda que implícito, servem a todos os propósitos, ao alvedrio de quem os interpreta. Afinal, o que é razoável ao criminoso inimputável que praticou crime hediondo pode não ser (e não o é) razoável à sociedade, à parcela honesta da população, cada dia mais vitimizada, amedrontada e desprotegida.

Nem se argumente que a letargia ou omissão do Poder Legislativo em modernizar a lei penal teria o condão de conferir essa verdadeira “carta branca” ao Judiciário para operar a modulação de dispositivos vetustos e ultrapassados. O assim pensar só nos traz preocupante desassossego e total ausência de segurança jurídica, fazendo com que não haja qualquer previsibilidade nas decisões judiciais no que tange à aplicação da legislação em vigor.

 

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