Toda sociedade tem o processo penal que merece, mas por que isso pode não ser tão ruim? – Por André Sampaio

05/02/2017

Uma frase já conhecida de James Goldschmidt afirma ser o processo penal uma espécie de “termômetro democrático”;[1] sob esta perspectiva, pode-se “medir” a aderência de determinado Estado à democracia observando o modo como ele implementa sua política-processual penal. É claro que não se trata de premissa absoluta e nem tampouco de indicativo exclusivo, aliás, toda política pública aplicada sempre é indicativo de maior ou menor afetação desse jaez.

Mas um dado modelo processual penal pode ser assim definido porque o Estado em que se encontra possui valores democráticos ou o inverso? Na senda do pensamento complexo de Edgar Morin[2] afirmaríamos: tanto um quanto o outro, reflexivamente, em uma espécie de circuito retroalimentador. Ousemos nesse momento ampliar a hipótese goldschmidtiana para a seguinte: o processo penal funciona como uma espécie de “termômetro social”, logo quanto mais livre e igualitária forem os valores fundantes de uma sociedade o mesmo será percebido na aplicação de seu modelo persecutório penal.

Cientes da insuficiência deste espaço para comprovar uma hipótese tão ambiciosa, não nos privaremos de rabiscar algumas questões, mais a título provocativo do que elucidativo. Com efeito, iniciemos nossa (breve) análise perquirindo: que sociedade que temos? Se nos valermos como marco teórico de grandes nomes da sociologia brasileira, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Roberto DaMatta, podemos distinguir alguns aspectos principais: uma sociedade patriarcal, chefiada pelo “homem cordial” – movido por uma afetividade candente, com profunda dificuldade de distinguir o público do privado – , marcada por uma horizontalidade no trato social relativizada por mecanismos de verticalização por conduto de atos simbólicos, como o famigerado “você sabe com quem está falando?”.

Ademais, ao lado dos fatores sociais elencados, não podemos deixar de situar nossa problemática temporalmente. Alcançamos uma era – seja ela pós-moderna, modernidade tardia, líquida ou congêneres – na qual valores individualistas se sobrepuseram a sociais. Era da velocidade de Virilio, da liquidez de Bauman e do espetáculo de Debort. Nessa senda, acaba não sendo tão surpreendente nos depararmos com manifestações que celebram o gozo pela dor alheia, seja o sofrimento de alguém por ser esposa de quem entendemos como criminoso, a careca de um milionário entregue ao “sistema”, o indivíduo pego furtando, espancado e amarrado a um poste ou posto sobre um formigueiro.

É também sintomática a figura caricaturada – propositalmente ou não – do vencedor das eleições norte-americanas. Um suposto “self-made man” que não tem o pudor de “dizer verdades”. E aqui talvez se encontre o cerne da questão: o pudor. Não seria possível dizer que sempre houve pessoas que pensam exatamente da mesma maneira e apenas perderam o pudor de se exporem tanto? Ou de fato possuímos uma virada axiológica que fez penetrar em nossa cultura novos valores?

Eco afirmara certa feita que as redes sociais deram voz a um bando de imbecis. Arriscaríamos afirmar que tais vozes, antes isoladas, eram facilmente neutralizadas através de mecanismos sociais de valorização de laços comunitários, atualmente, com a maior propalação da comunicação, elas se encontraram e ganharam corpo, apoiando-se reflexivamente formaram páginas de Facebook e grupos de whatsapp e hoje elegem chefes de Estado.

Assim, talvez nada mais esteja ocorrendo do que a fragmentação da estética da cordialidade; o ôntico cede espaço à irrupção do ontológico, se preferirem. Ou seja, valores sempre presentes de modo enfraquecido se fortaleceram com a proximidade dos novos media. Culpa destes? Obviamente que não, tratam-se simplesmente de ferramentas conduzidas pelo indivíduo, este sim o portador da intencionalidade.

O que isso tem a ver com o processo penal? Durante muitos anos se proclamou uma quase plena diferenciação entre normas jurídicas e normais morais, porém com o “fracasso do projeto moderno”, como alguns apontam, ficou mais evidente a função escamoteadora que o direito possui para institucionalizar e legitimar julgamentos muitas vezes proeminentemente morais, o que fica ainda mais claro em campos nos quais os afetos mais quentes se afloram, como o criminal (afinal a que serve a personalidade e conduta social do condenado como circunstâncias judiciais de aplicação de pena, por exemplo?).

Dessarte, essas flutuações de valores sociais que nos chocam são também eventualmente encontradas na ponta das canetas institucionais, seja condenando ou prendendo provisoriamente, em nome da “paz social” (ou de Deus, diria Nietzsche). É claro que tanto “juridiquês” e tanta liturgia dificultam a observação dos julgamentos morais que parasitam a ordem jurídica para fazer valer decisões eivadas de “pós-verdades”.

Esse cenário nos provoca um dilema: o que fazer? Podemos nos voltar ao passado nostálgico e tentar “reescamotear” a presença desses traços culturais com o verniz da cordialidade e continuar vivendo na nossa já tradicional hipocrisia, ou, “a la Zizek”, simplesmente aguardar que a coisa ganhe corpo por si só, permitir o irromper da crise reiteradamente contida para, diante da introdução dessa nova dose de caos, esperar a ordem que inexoravelmente dele emergirá. Aposta arriscada, visto que sempre se pode ficar pior do que está (sim, Tiririca estava errado), mas que poderá de forma mais contundente destituir os dois chanceleres que insistem nos governar: a razão cínica[3] e a razão ardilosa[4] - elementos dotados de tamanha potência que buscaremos nos ocupar deles melhor em uma próxima coluna.


Notas e Referências:

[1] GOLDSCHMIDT, James. Problemas Juridicos y Políticos del Proceso Penal - Conferencias dadas en la Universidad de Madrid en los meses de diciembre de 1934 y de enero, febrero y marzo de 1935. Barcelona, Bosch, 1935, p.67

[2] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Trad. Eliane Lisboa. 4. Ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.

[3] SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica. São Paulo: Boitempo, 2008.

[4] SOUZA, Ricardo Timm. O nervo exposto: por uma crítica da ideia de razão desde a racionalidade ética. GAUER, Ruth Maria Chittó (org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos, II. 2. Ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, 2011.


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