Teoria impura do direito e Brasil: ponderar o direito estrangeiro?

02/02/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 02/02/2016

Olá a todos!!!

O que aconteceria se nós, brasileiros, ou, no mínimo, latino-amercianos, resolvêssemos criar e adotar uma postura teórica própria para resolver conflitos? Poderíamos, neste cenário imaginário, esquecer da tópica, ponderação, razoabilidade, jurisprudência dos conceitos, interesses e valores, brocardos latinos, teorias norte-americanas, criações inerentes à família do common law e toda a sorte de institutos ou teorizações que encontram em seus ambientes de origem um pleno sentido, mas que, em nosso direito, ou não são bem compreendidas, ou mal aplicadas, ou simplesmente utilizadas como fantoches para, em realidade, escamotear algum argumento de autoridade escondido à sorrelfa e aplicado de soslaio sem que se possa perceber de imediato o alcance da intenção.

Teríamos, nesse quadro, que começar do zero, mas decerto alcançaríamos algo do que já existe, ainda que por via transversa. Seria difícil cogitar da aplicação de textos legais sem aquele necessário grano salis (pronto, uma expressão em latim já foi utilizada!). Aristóteles, há muito, salientou que as leis, por mais perfeitas que sejam, demandam alguma correção de rota por intermédio de decisões que apreciem as necessidades subjetivas, ou particularidades de cada caso concreto. Assim é que dificilmente poderíamos escapar da necessidade de princípios como o da razoabilidade, ou algo assemelhado, da proporcionalidade, da utilização de alguns conceitos jurídicos indeterminados, ou institutos afins para aplicação do direito de maneira consentânea à justiça. Aliás, para a própria concepção de justiça certamente encontraríamos algumas características das escolas já existentes e que trabalham o tema. Fossemos trabalhar com parâmetros de eficiência, ou lógicos, encontraríamos o mesmo caminho.

A diferença, contudo, seria a seguinte: estaríamos, nesse exercício imaginário, empreendendo a nossa abordagem particular sobre o tema. Não que nos aprisionássemos, por iniciativa própria, em um certo particularismo apto a ignorar o que existe de produtivo e bem sucedido no mundo organizado e no Estado de direito em particular, mas o diferencial, neste caso, seria que as teorias desenvolvidas, os institutos aplicados e os resultados almejados viriam de dentro para fora, da nossa realidade para os contextos do mundo, da nossa formação, com nossas características, deficiências e virtudes, para os casos julgados, para o ambiente externo, para a formação teórica.

A vantagem deste (infelizmente...) onírico quadro é que com este tipo de atuar, teríamos o funcionamento de instituições com base em nossa realidade teórica, circunscrita às nossas necessidades e visões, o que, em tese, poderia garantir não apenas uma maior proximidade entre o real e o teórico, mas também um grau maior de aceitabilidade na aplicação de leis e textos normativos de diversas espécies.

Atualmente, o que vemos é exatamente o oposto. Importamos institutos, utilizamos princípios sem qualquer preocupação com a metodologia com a qual foram desenvolvidos e burilados (muitas ainda em desenvolvimento, aliás) e, sem qualquer medo de errar, até mesmo utilizamos precedentes de outros países, em sua língua originária, como algo capaz de conferir força decisória em nosso ambiente nacional. A propósito, há até mesmo quem, na mais alta Corte pátria, praticamente se situe no quadrante teórico do direito alemão do que no brasileiro para resolver conflitos que aqui se encontram.

Este tipo de comportamento divorcia o direito da realidade, tornando-o inacessível a quem deveria ser mais tocado, o cidadão. Sentenças incompreensíveis, com citações fora de contexto, institutos alienígenas (quase isso mesmo) e até mesmo menções a precedentes e textos normativos que não foram criados para resolver qualquer problema no nosso país são diuturnamente utilizados sem que quem assim procede ao menos se dê ao trabalho de empreender um juízo de adequação daquele substrato teórico estrangeiro ao nosso ambiente nacional.

Quero deixar algo claro: não que este tipo de aporte internacional não possa vir a ser utilizado a título de argumentação decisória. Sustentar isso seria incabível, além de pouco realista, mas o que parece estar faltando é a sua adequação à nossa realidade, ao nosso cenário e dificuldades que vivemos no nosso dia-a-dia, que em nada se assemelha quer à sociedade alemã, inglesa, francesa, ou de qualquer outro lugar do globo. Falta a adequação e, claro, também o juízo de pertinência quanto à utilização deste tipo de estrutura teórica, muitas vezes, aliás, completamente desnecessária em vista do que já possuímos como construção nossa, nacional.

Esta crítica não é apenas minha. No ambiente acadêmico vem sendo desenvolvida e há até mesmo uma interessantíssima publicação, entre outras, especialmente dedicada a esta problemática. Refiro-me à obra “Teoría impura del derecho. La transformación de la cultura jurídica latinoamericana”, em que o Autor, Diego Eduardo Lopes Medina, aborda justamente esta aplicação indevida de institutos estrangeiros em cenário em que não se adequam à realidade vivenciada pela sociedade local[1].

Uma contraposição a esta postura poderia ser desenvolvida no sentido de que a teoria geral do direito é, pretensamente, geral; e, por isso, independe de particularismos ou questões afetas apenas a uma sociedade, desconsiderando realidades globais. Ademais a isso, pensar de maneira diferente equivaleria a deixar de considerar diversos séculos de esforços no sentido do desenvolvimento de teorias e institutos que propiciam, no mundo inteiro, a resolução de testilhas nos mais diversos locais; e, ainda, seria dar evidente preponderância ao particularismo frente ao universalismo.

As críticas não seriam de todo impertinentes. Ao contrário, concordo em grande parte, mas acentuo que, em realidade, a postulação que apresento diz respeito mais a utilização de princípios e técnicas de maneira afeta à nossa realidade do que, em verdade, a algum sectarismo teórico que se pretenda exclusivo.

Observe o seguinte: o novo CPC dispõe no §1º do novo artigo 489 que “No caso de colisão entre normas, o juiz deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão”. De fora parte muitas das críticas que podem ser direcionadas ao parágrafo em questão, o que se percebe, logo de saída, é que o dispositivo procura ajustar exatamente o que vem sendo feito de errôneo no que toca à ponderação de princípios: com base ou no desconhecimento da técnica, ou em seu procedimento, a ponderação vem sendo utilizada como uma espécie de coringa, capaz de derrotar regras, ou fazer prevalecer o pensamento individual e subjetivo travestido de racionalidade.

De novo: não que a utilização da ponderação, por exemplo, não possa ser legitimamente feita, mas haverá de ser contextualizada e bem delimitada, a fim de que não se torne uma das situações em que só há aparência de racionalidade, mas, em realidade, prevalece o íntimo do prolator. Nessa linha, o que o dispositivo pretende é corrigir algo errado já de início. Talvez não precisemos utilizar fórmulas estrangeiras descontextualizadas se eventualmente possuímos alternativas nacionais que podem ser mais facilmente compreendidas.

Não é esse, contudo, o pensamento vigente. Afinal: para que facilitar se podemos dificultar, não é mesmo?!

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] MEDINA, Diego Eduardo Lopes. Teoría impura del derecho. La transformación de la cultura jurídica latinoamericana. Bogotá: Editora Legis, 2013.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


Imagem Ilustrativa do Post: Book Mountain // Foto de: Shane Gorski // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/shanegorski/2716679958

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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