Tentar apagar a tocha olímpica não é crime – Por Ricardo Antonio Andreucci

30/06/2016

Assunto de grande destaque nos noticiários nacionais e nas redes sociais foi a recente tentativa de um rapaz de 27 anos de apagar a tocha olímpica, na cidade de Maracaju, no estado do Mato Grosso do Sul.

Segundo narrado pelos noticiários e de acordo com as imagens gravadas, o rapaz jogou um balde de água em direção à pessoa que conduzia a tocha olímpica, em solenidade cercada de oneroso aparato de segurança, não atingindo, entretanto, seu intento, por estar longe do local, ao que foi prontamente detido pelas forças policiais que faziam a segura do evento.

O acontecimento repercutiu nas redes sociais, tendo o rapaz recebido apoio de milhares de pessoas que, inclusive, solidariamente, se dispunham a participar de uma “vaquinha” para o pagamento da fiança, que foi arbitrada pela autoridade policial em R$ 1 mil reais.

Esse fato, independentemente das razões que levaram o rapaz a tentar apagar a tocha, nos chama à reflexão acerca da indignação de grande parte da população brasileira com os vultosos gastos públicos que cercam a passagem desse símbolo das olimpíadas por todo o território nacional, justamente num momento tão delicado da realidade econômica que o nosso sofrido país atravessa.

Segundo dados oficiais, largamente divulgados pelos meios de comunicação, somente durante as 12 horas de permanência da tocha olímpica no Distrito Federal, percorrendo algumas regiões circunvizinhas e passando o revezamento por cerca de 15 monumentos, com encerramento festivo na Esplanada dos Ministérios, foram gastos R$ 4,3 milhões de reais, sendo R$ 3,8 milhões desembolsados pelo Governo do Distrito Federal. Estima-se o gasto total de mais de R$ 25 milhões com toda a parafernália montada em torno desse famoso símbolo dos Jogos Olímpicos. Enquanto isso, a triste realidade do Distrito Federal é a completa falência do sistema de saúde pública, além do não pagamento sistemático dos salários dos servidores e da carência de recursos para educação e segurança.

Cada prefeitura municipal gasta, em média, R$ 180 mil reais para receber a tocha olímpica e patrocinar todos os custos que cercam o desnecessário espetáculo, que serve apenas, invariavelmente, para satisfazer as vaidades e os anseios políticos dos governantes locais.

A par disso, a grande maioria dos municípios brasileiros amarga severas consequências em razão da crise econômica, que se refletem na precariedade da saúde pública, na inadimplência generalizada, na falta de investimentos na educação e no calote nos salários do funcionalismo público.

Chega até mesmo a ser cômico, se não fosse trágico, que algumas emissoras de televisão, que faturam milhões com todo o aparato publicitário que envolve os jogos olímpicos no Brasil, dediquem grande parte de seus noticiários apenas para transmitir detalhes do enfadonho trajeto feito pela tocha olímpica pelas cidades do país.

E boa parte da população local a tudo assiste sem esboçar qualquer reação, comparecendo aos custosos eventos, que mobilizam considerável parcela do efetivo policial e, via de regra, literalmente impedem a livre circulação da banda produtiva da população, num verdadeiro espetáculo de “pão e circo” (“panem et circences”), que nos remete ao modo como o Império Romano lidava com a situação de exclusão e de desigualdades sociais para controlar as massas.

Seja como for, creio que, independentemente das razões que levaram o jovem de Maracaju a arremessar um balde de água em direção à tocha, o fato representa a indignação de grande parte da população brasileira com esse estado de coisas, reagindo de maneira até mesmo jocosa, demonstrando o desprezo com esse espetáculo circense que tantos gastos traz aos alquebrados cofres municipais, em detrimento da população local que sucumbe ante a falta de saúde, de educação e, principalmente, de segurança pública.

Sim, porque a segurança pública local, em regra representada por reforçado aparato da Polícia Militar e das Guardas Municipais, segue o espetáculo da tocha atentamente e com grande mobilização de homens, armamentos e viaturas, tanto que o jovem citado foi pronta e eficientemente preso em flagrante delito e conduzido ao distrito policial, onde, com celeridade e diligência ímpar, foi lavrado o respectivo auto de prisão em flagrante delito.

A acusação: tentativa de dano qualificado ao patrimônio público.

Ora, como é de conhecimento de todos aqueles que se dedicam minimamente aos estudos de Direito Penal, o crime de dano, previsto no art. 163 do Código Penal, requer, para sua configuração, o dolo específico de destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia, ou seja, o denominado “animus nocendi”. Essa, aliás, é a posição pacífica nos Tribunais Superiores.

Nesse sentido, restou claramente demonstrado que a conduta do jovem não se revestiu de dolo específico (“animus nocendi”), mas, antes, de irreverência, de jocosidade (“animus jocandi”), de indignação e até de um modo peculiar de inconformismo, num simbólico protesto, ao seu alcance, contra o descaso da coisa pública em detrimento das necessidades básicas da sociedade. Ademais, a tocha estava tão bem protegida pela polícia, que o jovem nem conseguiu dela se aproximar, jogando a água de local em que certamente não conseguiria atingi-la.

Evidentemente que não se trata aqui, é bom que se diga, de fazer apologia a criminoso ou incitação ao crime. Havemos de convir, entretanto, que, ainda que reprovável a atuação do jovem, restou evidentemente desproporcional e descabida a reação das forças policiais, que, em outras situações muito mais graves e danosas ao patrimônio público, como depredações, saques, invasões de prédios públicos e protestos violentos, em regra se quedaram inertes, deixando a população com a amarga sensação da impunidade e do medo.


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Imagem Ilustrativa do Post: Revezamento da tocha olímpica na Catedral Metropolitana // Foto de: Agência Brasília // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciabrasilia/26793208185

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