Supremo vs. Parlamento: o aborto e os direitos fundamentais das mulheres

06/12/2016

Por Soraia da Rosa Mendes – 06/12/2016

Em uma semana movimentada envolvendo as votações do projeto de emenda constitucional 55 pelo Senado Federal, das (des)medidas contra a corrupção pela Câmara dos Deputados (temperadas pela inclusão de uma proposta de lei de abuso de autoridade que merece, sem dúvida, um artigo à parte), e da sessão plenária no Supremo Tribunal Federal acerca do recebimento de denúncia contra o Senador Renan Calheiros (artigo à parte número 2), eis que da 1a. Turma desta mesma Corte é proferida uma decisão há muito tempo esperada sobre a não recepção do crime de aborto pelo ordenamento constitucional brasileiro.

Em síntese a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal afastou a prisão preventiva de dois réus, denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, pela suposta prática do crime de aborto com o consentimento da gestante (artigo 126 do Código Penal), nos autos do HC 124306. De acordo com o Relator, o Ministro Luís Roberto Barroso, em posição que alcançou a maioria, além de não estarem presentes no caso os requisitos que autorizavam a prisão cautelar, a criminalização do aborto é incompatível com diversos direitos fundamentais, entre eles os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade.

Como disse o Ministro Barroso, em seu voto: “A criminalização viola, em primeiro lugar, a autonomia da mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida pelo princípio da dignidade humana (CF/1988, art. 1o, III). A autonomia expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a propósito do rumo de sua vida. Todo indivíduo – homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o Estado e a sociedade não têm o direito de interferir.”

Sem dúvida, liberdade é uma palavra com uma certa conotação emotiva, pois geralmente quem designa algo como “livre” não somente descreve, mas expressa uma valoração positiva, e cria em seus ouvintes um estímulo para compartilhar esta valorização. Contudo, embora “liberdade” possua um caráter polissêmico,  é possível, por outro lado, dizer que uma pessoa só é livre na medida em que não lhe estejam vedadas possibilidades de escolha[1].

Liberdade, assim compreendida, adquire um relevo ainda maior na perspectiva feminina, pois configura direito de autodeterminação e auto-realização[2] que consubstanciam o direito de decidir dado a cada uma, sem imposições morais ou religiosas distanciadas da realidade vivida particularmente. A autodeterminação, especificamente quanto ao direito de decidir sobre ser ou não mãe, é um direito fundamental e exclusivo[3] das mulheres, que se configura em um primeiro momento como uma liberdade negativa, ou seja, uma alternativa de ação. E, indo além da liberdade negativa é de ver-se que, diferente de outras proibições penais, a criminalização do aborto equivale a uma obrigação que é de tornar-se mãe, suportar a gravidez, dar à luz, criar um filho. E que isso contrasta com todos os princípios liberais do direito penal.

Para o Ferrajoli, de fato, “não somente se trata de uma liberdade fundamental negativa (de não tornar-se mãe e, portanto, de abortar), mas uma imunidade contra construções e servidões pessoais que é complementar de uma liberdade positiva: o direito-poder de gerar, de trazer pessoas ao mundo, que é um poder por assim dizer constituinte, de tipo pré ou meta-jurídico, posto que é o reflexo de uma capacidade natural inerente de maneira exclusiva à diferença feminina. Não se trata só de um direito de liberdade, como também de um direito-pretensão ao que devem corresponder obrigações públicas, concretamente exigíveis, de assistência e de cuidado, tanto no momento da maternidade como do aborto.”[4]

Como já pude demonstrar em Criminologia Feminista: novos paradigmas (Saraiva, 2014), a liberdade é elemento fundamental de limitação da atuação penal em relação às mulheres, posto que se define no contexto de vidas concretas, e na exata medida destas mesmas vidas em suas alternativas de escolha. Sendo este o contexto em que se deve colocar a discussão, no campo do direito penal, sobre a (des)criminalização do aborto.

Vale lembrar que, de algum tempo, o Supremo vem tangenciando a discussão sobre o direito a autodeterminação feminino.

Note-se que no julgamento da ADPF n. 54 (caso da anencefalia), alguns Ministros/as, a começar pelo Relator, Min. Marco Aurélio, afirmaram que não estavam decidindo de forma genérica sobre a descriminalização do aborto. Nas palavras dos/as julgadores/as tratava-se ali somente da anencefalia. É verdade. São muitas e diversas as situações que levam uma mulher a interromper a gravidez.

Contudo, o Relator também disse, em seu voto, que o assunto envolvia a dignidade humana, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. Ou seja, falou de todos os direitos fundamentais das mulheres, cujo respeito é necessário para que se conforme  o princípio da dignidade da pessoa humana.

Observemos bem que o Ministro poderia ter dito que a discussão envolvia somente o direito à saúde. Em princípio bastaria. Mas, foi além. Falou em liberdade, em autodeterminação, em direitos reprodutivos, em direitos fundamentais das mulheres. Assim como também está no voto que as garantias do Estado secular e da liberdade religiosa impedem que o Estado endosse concepções morais religiosas, vindo a coagir, ainda que indiretamente, os cidadãos a observá-las. E que a conciliação entre a liberdade religiosa e o Estado laico significa que as religiões não guiarão o tratamento estatal dispensado a outros direitos fundamentais, tais como o direito à autodeterminação, o direito à saúde física e mental, o direito à privacidade, o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de orientação sexual e o direito à liberdade no campo da reprodução.

A decisão proferida no dia 29 de novembro último reforça este entendimento. Trata-se da prevalência de direitos fundamentais das mulheres.

Embora a alguns parlamentares possa causar espécie, é preciso que se diga em alto e bom som que, sim, as mulheres têm direitos fundamentais. E um deles é o de livremente decidir sobre seu próprio corpo. Trata-se de um direito fundamental e exclusivo das mulheres. Um direito que expressa aquilo que Stuart Mill chamava de a soberania” de cada um para decidir sobre a própria mente e o próprio corpo.

Não é juridicamente admissível, portanto, que em um Estado laico uma lei tenha como conteúdo uma concepção moral e religiosa. Muito menos é aceitável que alguém seja obrigado a obedecer uma lei que parta daí. Sendo, no mínimo, injusto que setores conservadores do parlamento brasileiro arvorem-se no direito de impor obrigações a todas as brasileiras desconsiderando o altíssimo número de morte em razão de abortos ilegais, inseguros; desconsiderando que estas mortes majoritariamente tem cor e classe social.

Como já tive oportunidade de escrever também[5], defendo a tese  de que, nos marcos de um Estado (Laico) Democrático de Direito, em que está garantida a liberdade, como direito à autodeterminação, a criminalização do aborto tal, como hoje prevista no Código de 1940, sequer foi recepcionada pela Constituição de 1988. E, ao que parece, finalmente, é chegada a hora de encarar este debate por meio de arguição de descumprimento de preceito fundamental ou, em momento posterior, se insistirem os parlamentares em legislar ao arrepio dos direitos fundamentais, por ação direta de inconstitucionalidade.

Descriminalizar o aborto não significa desrespeitar as posições morais, éticas ou religiosas de quem quer que seja. A liberdade religiosa também é fundamental. Contudo, se a Constituição não diz quando começa a vida (e nem poderia dizer) é porque delimitar o início da vida desde a concepção, como querem alguns, é uma construção moral/religiosa que viola os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia feminina.

Diferente de qualquer outra proibição penal, como já disse Ferrajoli, a que se refere ao aborto equivale a uma obrigação. A obrigação de tornar-se mãe, de dar à luz, de criar um filho. E isso contraria a Carta Fundamental, equivalendo a uma lesão do segundo imperativo kantiano, segundo o qual nenhuma pessoa pode ser tratada como meio ou instrumento (neste caso, de procriação) para fins não próprios.

Ao contrário do que vociferam alguns e algumas parlamentares, pouco familiarizados/as com a Constituição que juraram respeitar, a decisão do Supremo não se trata de uma “invasão” à atividade típica do Poder Legislativo. Trata-se, sim, do cumprimento de seu papel de guardião de nossa Carta Fundamental.

Saibam os senhores e as senhoras parlamentares que também o parlamento está sujeito aos limites impostos pelo Texto Constitucional, e qualquer decisão heterônoma, justificada a partir de interesses estranhos aos da mulher configura uma injustiça na medida em que limita a  liberdade e atinge a dignidade humana por restrições que retiram dos/as “oprimidos/as” e “submetidos/as” a possibilidade de exercer sua autonomia privada e pública.[6] Os direitos fundamentais que garantem às mulheres um delineamento autônomo para suas próprias vidas, não podem ser formulados de modo adequado à revelia das próprias envolvidas.

Os senhores e as senhoras parlamentares, supostamente defensores da vida, deveriam estar mais atentos/as à necessária compatibilidade entre a legislação penal e a Constituição, de modo que “suas leis” não tornem-se mais do que um repositório de condutas morais e religiosas responsáveis pela morte de milhares de mulheres negras e pobres que, sem alternativa, submetem-se a abortos clandestinos.

A legislação penal tem por fim tutelar subsidiária e fragmentariamente bens jurídicos definidos nos marcos de um Estado laico. Um Estado que precisa observar os direitos fundamentais, em particular, na seara criminal, para justamente poder afirmar-se como democrático.


Notas e Referências:

[1] ALEXY, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

[2] PITCH, Tamar. Un Derecho para Dos: la construcción jurídica de género, sexo y sexualidad. Madrid: Trotta, 2003.

[3] Segundo Ferrajoli o direito à autodeterminação em relação à maternidade constitui o único direito fundamental exclusivo das mulheres. Para o autor (2010, p.86), (…) el derecho a la maternidad voluntaria como autodeterminación de la mujer sobre el propio cuerpo le pertenece de manera exclusiva porque en materia de gestación los varones no son iguales a las mujeres, y es sólo desvalorizando a éstas como personas y reduciéndolas a instrumentos de procreación como los varones han podido expropiarlas de esa su personal potencia sometiéndola al control penal. No puede, por tanto, configurarse un «derecho a la paternidad voluntaria» análogo y simétrico al «derecho a la maternidad voluntaria», por la simple razón de que la gestación y el parto no pertenecen a la identidad masculina sino sólo a la femenina. Allí donde la decisión de traer o no al mundo a través de un cuerpo femenino estuviera subordinada también al acuerdo con los potenciales padres, la decisión de éstos sería sobre el cuerpo de otra persona y equivaldría, pues, al ejercicio de un poder del hombre sobre la mujer que violaría al mismo tiempo la libertad de las mujeres y el igual valor de las personas.

[4] FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 2010.

[5] MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia Feminista: novos paradigmas. São Paulo: Saraiva, 2014.

[6] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.


Soraia da Rosa Mendes. . Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, e doutora em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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