Sociedade de Normalização em Foucault e a “guerra às drogas”: do poder disciplinar ao encarceramento em massa

26/06/2017

Por Paulo Incott – 26/06/2017

Foucault não se considerava um filósofo. Tampouco entendia que seu trabalho deveria ser considerado a obra de um sociólogo ou antropólogo. Preferia ser visto como um historiador. Desejava, através de seus estudos, chegar não a conclusões dogmáticas acerca dos assuntos que decidiu abordar, como a loucura, a sexualidade e a delinquência, mas produzir ferramentas que permitissem o desenvolvimento de estudos posteriores em cada um destes temas.

Dentre os muitos conceitos forjados em sua pesquisa, dois interessam em especial a este texto: o de Poder Disciplinar e o de Normalização.

Para compreensão do que vem a ser o poder disciplinar no pensamento foucaultiano, precisamos antes entender uma preocupação primordial de Foucault quanto a forma como o poder é exercido. Colhemos de suas lições (2011, p. 185):

O indivíduo é sem dúvida uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama “disciplina”. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele exclui, reprime, recalca, censura, abstrai, mascara, esconde. Na verdade, o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. 

Na percepção de Foucault, a disciplina se inscreve na genealogia do poder em posição privilegiada, porque permite a clara compreensão de que este se exerce nas relações de modo difuso, em “rede”, não estando limitado a uma manifestação vertical, oriunda do que Althusser denominava como “aparelho de estado”.

Foucault está preocupado em demonstrar como o poder se torna, do final do séc. XVIII em diante, uma realidade complexa nas relações humanas. Um mecanismo de fabricação de individualidades e processos de veridificação. Conforme ele mesmo se expressa (2016, p. 137):

Onde há poder ele se exerce. Ninguém é, propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um lado e outros do outro; não se sabe ao certo quem o detém; mas se sabe quem não o possui.

Cumpre, portanto, descobrir não o quem do poder, mas o como. Neste contexto se insere a descrição das disciplinas, vistas pelo autor como uma “técnica”, uma “tecnologia” de poder, típica da modernidade. Dito de modo claro (2011, p. 133):

A “disciplina” não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho; ela é um tipo de poder, uma modalidade para exercê-lo, que comporta todo um conjunto de instrumentos, de técnicas, de procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos; ela é uma “física” ou uma “anatomia” do poder, uma tecnologia.

De que modo o poder disciplinar se diferencia do poder soberano? Para Foucault a principal diferença se dá no modo como ambos tratam os corpos. O poder soberano, incidindo sobre os súditos, visava apropriar-se dos corpos sem, no entanto, exercer sobre estes um domínio analítico e detalhado. Bastava que fossem submissos, que fizessem o que lhes era ordenado. O poder disciplinar quer muito mais. Quer treinar os corpos, torna-los dóceis, aumentar sua utilidade. Realiza isso através de exercícios reiterados, exames constantes, enfim, de adestramento. “Uma nova “mecânica” de poder”, define o pensador francês.  

As disciplinas se organizam sob princípios específicos. Identificando-os, Foucault fala dos quadriculamentos a que são submetidos os indivíduos nas instituições de “fabricação de caráter” (E. Goffman diria instituições totais) – escolas, hospitais, fábricas, conventos e prisões. Também cita a minuciosa taxionomia a que os saberes e os indivíduos são submetidos nesses espaços.

Categorização incessante, completada pelo “olhar classificador” ininterrupto de um professor, um médico, um mestre-de-obras, um agente penitenciário. A partir desta classificação, o exame. “O exame supõe um mecanismo que liga um certo tipo de formação de saber a uma certa forma de exercício de poder” (2011, p. 179).

Ainda: “O corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos de poder, oferece-se a novas formas de saber”. (2011, p. 149)

Orientado por esta percepção da interdependência entre saber e poder, Foucault dedicará muito tempo de suas pesquisas ao surgimento da psiquiatria, da medicina moderna, da criminologia, das ciências humanas em geral, tentando demonstrar de que forma todos estes saberes são produzidos em resultado e em apoio de relações de poder específicas, tendo como efeito a fabricação de novas subjetividades. O poder cria sabres próprios, que terminam servindo como seu próprio subterfúgio, reforço e mecanismo de expansão. Uma “rede”, tanto mais forte e complexa quanto mais desenvolvida e relacionada sua base: saber-poder.

Qual o grande “alvo” desta tecnologia específica de poder? Qual a descrição do cenário ideal de seu exercício? Foucault resume (2011, p. 162):

O sonho de uma sociedade perfeita é facilmente atribuído pelos historiadores aos filósofos e juristas do século XVIII; mas há também o sonho militar da sociedade; sua referência era não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente subordinadas de uma máquina, não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes, não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos indefinidamente progressivos, não à vontade geral, mas à docilidade automática.

Dentro desta perspectiva, o objetivo geral da técnica de poder disciplinar é a “normalização”. Em todos os aspectos sobre o qual se debruçou em seus estudos, Foucault procurou analisar o que era feito com aqueles considerados “desviantes”. Embora raramente usasse esse termo, bastante próprio da sociologia, o autor deu significativa importância para a ânsia moderna de padronização dos indivíduos. Essa padronização ficou referenciada em sua obra com a noção de “normalização”. Tratando da escola, Foucault afirma que seus diversos sistemas de disciplina objetivam que todos (2011, p. 175):

...se submetam ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina. Para que, todos, se pareçam.

E, falando da sanção criminal (2011, p. 176):

O funcionamento jurídico-antropológico que toda a história da penalidade moderna revela não se origina na superposição à justiça criminal das ciências humanas, e nas exigências próprias a essa nova racionalidade ou ao humanismo que ela traria consigo; ele tem seu ponto de formação nessa técnica disciplinar que fez funcionar  esses novos mecanismos de sanção normalizadora (...) A penalidade perpétua que travessa todos os pontos e controla todos os instantes das instituições disciplinares compara, diferencia, hierarquiza, homogeiniza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza.

O projeto de normalização dos indivíduos, tornado factível através do poder disciplinar, passa por toda uma série de estratégias, algumas das quais consideradas acima. Um elemento chave nessa forma de dominação é o controle do tempo. O tempo é aquilo que é apropriado para produção ou para punição. E é o poder disciplinar que vai estabelecer estas conexões, que vai fazer com que a vida (tempo) se torne cativa do sistema político-econômico, sem alternativas. A vida não será mais apropriada pelo poder soberano com o fim de ser suplicada, num ritual de poder que visa reafirmar a autoridade daquele que executa o condenado, mas será “sequestrada” em toda as suas minúcias, atrelada ao aparelho de produção de modo a formar um amálgama quase perfeito, cimentado por meio da disciplina constante.

A retirada paulatina da pena de morte e a consolidação da forma-prisão vai ser possível a partir desta lógica, pautada adicionalmente num discurso moralizante de normalização (2015, p. 85):

Assim também se explica a impressão de antiguidade da prisão, da qual nos desfazemos com tanta dificuldade: se ela aparece tão profundamente radicada em nossa cultura, é precisamente por ter nascido sobrecarregada de uma moral cristã que lhe confere uma profundeza histórica que ela não tem... desse modo ela se reativa indefinidamente. 

Ponto importante para a análise que será proposta ao fim deste texto é o fato, constatado por Foucault, de que, diferente do poder soberano, o poder disciplinar não teve sua fonte primordial no direito, mas no discurso científico, numa espécie de saber “clínico”. Somente num segundo momento histórico é que o direito revestiu de legitimidade esta tecnologia de poder, voltada à “normalização”. Conforme o autor (2010, p. 34):

Que, atualmente, o poder se exerça ao mesmo tempo através desse direito e dessas técnicas, que essas técnicas da disciplina, que esses discursos nascidos da disciplina invadam o direito, que os procedimentos de normalização colonizem cada vez mais os procedimentos da lei, é isso, acho eu, que pode explicar o funcionamento global daquilo que eu chamaria de “sociedade de normalização”. 

Seria possível continuar dialogando sobre as disciplinas, suas estratégias e seus efeitos de normalização por longas páginas, apenas com base nas lições foucaultianas. Porém, acredita-se que o quadro retratado seja suficiente para fornecer ferramentas úteis para reflexão acerca do modelo atual de “guerra às drogas”, conforme vem sendo efetivada em nosso país, numa adaptação subserviente do modelo norte-americano.

Muito já se escreveu sobre a criminalização do comércio e consumo de substâncias psicotrópicas. É fácil elaborar uma longa listagem de excelentes obras tratando da Lei 11.343/2006, da política de drogas nacional, do discurso Nixon-Reagan e os interesses financeiros e políticos envolvidos em suas investidas, das falácias dogmático-medicinais acerca do vício (eloquentemente denunciadas por Carl Hart), enfim, de toda uma série de assuntos que circundam a “guerra às drogas”.

Quem sabe o diagnóstico mais simples seja o de que, se há uma guerra, ela não se dá contra substâncias. Ela se volta contra pessoas, conforme bem afirma Ilona Szabó. Pessoas específicas. Com cor de pelo e status social específico. Se há uma guerra, ela é sangrenta, violenta e com um grau de insanidade capaz de deixar os maiores conflitos da história da humanidade encabulados. Uma guerra que faz vítimas de todos os lados, com combatentes que não sabem exatamente contra o que estão lutando, ou melhor, que lutam com afinco justamente por estarem enganados a respeito daquilo contra o qual estão lutando.

A reflexão que gostaria de sugerir, encaminhando para conclusão deste texto, difere um pouco da que comumente é oferecida neste tema. A proposta é a seguinte: precisamos entender o que permite a continuidade do cenário absurdo com que nos confrontamos. Diante da avassaladora comprovação de que a abordagem pautada na política em vigor nos últimos 30 ou 40 anos, asseverada na última década, faliu por completo, é preciso nos perguntarmos: qual a racionalização que está por trás da manutenção deste modelo? Dando um passo atrás em relação ao que já sabemos sobre os interesses políticos e financeiros que estiverem enraizados na inauguração deste movimento de “guerra às drogas”: quais os discursos que permitem que eles ainda se apresentem tão arraigados no senso comum e na prática político-jurídico-penal?

Assim como Weber pode enxergar (se corretamente ou não é debate para outro momento) no “espírito” do protestantismo a condição de possibilidade para o desenvolvimento do capitalismo, poderíamos identificar elementos específicos[1] que sustentam o discurso de “guerra às drogas”? Penso justamente que a resposta pode estar na percepção foucaultiana de “sociedade de normalização”. De exercício do poder disciplinar.

Estabelecer estas conexões, para além de obviedades acríticas e acomodações não refletidas, parece ser um trabalho ainda a ser realizado. Parece ter chegado a hora.


Notas e Referências:

[1] Evito aqui utilizar o termo “ideologia” devido a carga histórica que o termo carrega e que poderia distorcer, de alguma forma, o que se pretende apontar

FOUCAULT. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

__________________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 39ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

__________________. A Sociedade punitiva: curso no Collège de France (1973-1973). São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2015.

__________________. Microfísica do Poder. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.


paulo-incott. Paulo Incott é Mestrando em Direito pela UNITER. Pós-graduando em Direito Penal e Processual penal pela AbdConst. Diretor Executivo do Sala de Aula Criminal. Membro do IBCCRIM. Membro da ABRACRIM. Advogado. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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