Sobreendividamento na sociedade moderna

25/08/2016

Por Liliana Santo de Azevedo Rodrigues – 25/08/2016

É demasiado ousado tentar obter respostas relativamente à problemática do sobreendividamento. Na verdade, os estudos são muito recentes, demasiado escassos e por vezes até inconclusivos. Não existem grandes referências estatísticas que nos permitam analisar a evolução e grau dos sobreendividados, consequentemente os estudos também ficam muito aquém das expectativas, existe uma falha referente à harmonização legislativa, onde nem as próprias definições base deste tema estão clarificadas. Posto isto, é difícil falar abertamente de um tema que, apesar de ser relativamente recente é já causador de muita preocupação entre nós.

Quem nunca adquiriu um bem ou serviço de uma forma espontânea, irracional, sem na verdade precisar dele? O problema que identificamos não é tanto esta irracionalidade na compra, mas a irracionalidade na necessidade de contrair um crédito precisamente para dar voz a um bem supérfluo! Importa analisar os impactos que esse contrato pode originar, nomeadamente numa conjuntura de crise econòmica como a que se tem vindo a verificar entre nós.

O endividamento representa o saldo que um agregado familiar tem em dívida. Este saldo devedor pode resultar apenas de um compromisso de crédito ou de vários compromissos assumidos em simultâneo. Neste último caso falamos já do multiendividamento.

O incumprimento, por seu turno, é toda e qualquer situação de não pagamento atempado pelo devedor. Por regra, considera-se incumprimento ao fim de três prestações em atraso, e incumprimento definitivo quando se esgotam as hipóteses de renegociação e se dá início a uma ação judicial. O incumprimento nem sempre significa incapacidade de o devedor proceder ao pagamento. Muitas vezes representa uma decisão oportunista por parte do devedor, baseada num cálculo de custo-benefício do incumprimento.

Diferente é o sobreendividamento, muitas vezes caracterizado como falência ou insolvência dos consumidores, que representa a impossibilidade de estes fazerem face às obrigações por si assumidas. Pode igualmente ser considerado sobreendividamento aquelas situações em que, embora o devedor continue a satisfazer os seus compromissos, o faz com sérias dificuldades.

O devedor muitas vezes não planeja os compromissos que assume com antecedência, contribuindo assim, ativamente, para se colocar em situação de impossibilidade de pagamento. Neste caso falamos de sobreendividamento ativo. Por outro lado, podem ocorrer circunstâncias imprevisíveis na vida do devedor, nomeadamente o desemprego, uma doença ou um divórcio, que o impossibilitem de cumprir. Estamos perante um caso de sobreendividamento passivo.

A confusão entre incumprimento e sobreendividamento é patente. Porém, o incumprimento nem sempre representa uma situação de incapacidade verificada pelo devedor. Por seu turno, o sobreendividamento inclui não só uma apreciação objetiva da incapacidade financeira do devedor, ou seja, um balanço entre as receitas e as despesas (conceito objetivo do sobreendividamento), como também, a sua incapacidade de mobilizar meios de terceiros que possam suprir a sua insuficiência de rendimentos, como por exemplo, as redes informais de solidariedade ou redes sociais, como é o caso da ajuda financeira de familiares e amigos (conceito subjetivo de sobreendividamento). Na prática, é possível encontrar um devedor que esteja objetivamente sobreendividado, porque as suas despesas superam as suas receitas, mas que, ainda assim, continue a cumprir pontualmente os seus compromissos.

Durante muito tempo o risco de sobreendividamento de um consumidor foi entendido como um risco privado, que devia ser prevenido e tratado no âmbito da responsabilidade contratual. Porém, o alargamento do crédito a devedores de vários estratos sociais e econômicos, o progresso nos direitos dos consumidores, a necessidade de controlar as despesas públicas em áreas como a justiça, o emprego, a habitação, o apoio social e a saúde, tem conduzido os governos a chamar a si a regulamentação deste risco.

Felizmente, os consumidores que respeitam os seus compromissos e pagam regularmente as suas prestações representam a larga maioria. Por muito grave que possa ser, o problema do sobreendividamento diz respeito apenas a uma minoria daqueles que têm dívidas de crédito. No entanto, não podemos por isso descurar estes casos. Muitas vezes representam situações dramáticas em termos individuais, que representam um grave problema social, e merecem a atenção das autoridades públicas. Por esta razão, é urgente definir estratégias que visem prevenir e tratar esta questão.

Vários países têm vindo a definir medidas para prevenir e para tratar o problema. O objetivo destas medidas é controlar os riscos envolvidos no endividamento e no recurso ao crédito, minimizando os efeitos negativos, econômicos e sociais derivados.

No âmbito das medidas preventivas salientamos, por exemplo, os serviços de aconselhamento de consumidores, os programas de literacia financeira e os bancos de dados e cadastros dos consumidores. Já nas medidas para tratamento podemos incluir uma solução judicial, que se concretiza na falência ou no plano judicial de pagamentos, ou uma solução extrajudicial, recorrendo à mediação, por exemplo através de um plano voluntário de pagamentos.

Em termos genéricos, esta intervenção parte de duas ideias principais. Por um lado, o sobreendividamento pode originar consequências dramáticas na qualidade de vida e no bem-estar das famílias. Por esta razão, deve ser gerido mais como um problema social do que econômico ou judicial. Neste ponto incidem, com especial importância, as soluções extrajudiciais, como por exemplo a mediação independente, que deverão ser sempre preferíveis às soluções judiciais. A intervenção dos tribunais deverá funcionar como último recurso, ou seja, no caso da ineficácia da solução extrajudicial. Por outro lado, a solução a encontrar deve ter em consideração uma tentativa de equilíbrio entre os interesses do devedor, dos credores e da sociedade. Este equilíbrio resulta do fato de todos poderem usufruir das vantagens do tratamento do sobreendividamento.

Na perspetiva dos devedores, a principal vantagem é a resolução de um problema perturbador ao nível econômico, social e psicológico, que normalmente é difícil de ser solucionado sem ajuda externa.

Para os credores, o tratamento coletivo da situação do devedor e uma distribuição mais justa dos pagamentos possíveis, permite a recuperação de algum crédito incobrável através de um plano e evita os credores oportunistas que chegam primeiro. Por outro lado, o tratamento destas situações pode levar a uma maior cautela na concessão de crédito e consequentemente, originar menos casos de incumprimento.

Para a sociedade em geral, a consequência mais vantajosa será uma poupança em setores como a despesa pública, a segurança social, a habitação ou a justiça.

Não podemos esquecer, no entanto, alguns efeitos negativos que poderão resultar dos próprios sistemas de tratamento do sobreendividamento, nomeadamente, negligência na contratação do crédito por parte do mutuário, o incentivo ao incumprimento, a permeabilidade ao devedor oportunista, um aumento da despesa pública com determinadas instituições envolvidas no processo, uma sobrecarga do próprio sistema judicial derivado de um novo e complexo tipo de processos e uma certa ineficácia dos sistemas de recuperação. Por todas estas razões, a introdução de novos mecanismos de prevenção e tratamento do sobreendividamento deve ser sempre feita com uma enorme cautela.


Liliana Santo de Azevedo RodriguesLiliana Santo de Azevedo Rodrigues é Advogada, inscrita na Ordem dos Advogados de Portugal e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Norte (OAB – RN). Possui graduação e mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade Portucalense Infante D. Henrique (2010), títulos revalidados, no Brasil, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, cursa o Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais na Universidade de Coimbra. Investigadora da Instituto Jurídico da Portucalense. Professora de Graduação em Direito na Faculdade Natalense de Ensino e Cultura (FANEC)/Universidade Paulista (UNIP), na Faculdade Maurício de Nassau e na Faculdade Estácio de Natal. Professora convidada de Pós-Graduação do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UniRN).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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