Sobre chacinas e massacres (ou miscelâneas autoritárias de mais um passeio em torno do sol) – Por André Sampaio

08/01/2017

Réveillon é a palavra francesa para designar a virada para o novo ano. Trata-se de derivação do verbo francês réveiller, cujo significado é "despertar"; cientificamente falando é apenas o fim de mais um movimento translacional e o início de um outro, não exatamente do mesmo ponto do anterior, muito menos do marco zero do movimento.

Entretanto, desde uma perspectiva simbólica o ano novo traz imanente a potência do “despertar” muito além da mera irrupção de uma nova volta elíptica. Há, então, a oportunidade de se avaliar o que passou, comemorar sucessos e rever fracassos, bem como planejar um novo ciclo.

No que tange à questão criminal, porém, a virada de ano nos trouxe, como em uma ressaca marítima nefasta, situações emblemáticas do momento pelo qual passamos e que, infelizmente, não apresenta sinal de esgotamento. Os eventos ora destacados se sucederam durante o período que compreende o Natal até o Dia de Reis. Em que pese o caráter grotesco de cada um, buscamos nos ater aos aspectos mais afetos ao tema desta coluna.

1) O espancamento de Luís em Pedro II e o âncora ignorante.

Embebidos menos do espírito natalino do que de álcool, dois travestis eram espancados quando o vendedor ambulante Luís Carlos Ruas tentou defendê-los e acabou morto. Diante da impossibilidade de saber os reais motivos dos agentes do fato, para alguns ainda é cedo para falar de homofobia, visto que a versão que sustentam é a de que teriam sido assaltados e tentavam recuperar o celular.

Ao largo de tudo isso, em uma manifestação absolutamente casual, mas emblemática das pulsões autoritárias que sazonalmente imprimem sua marca com mais contundência, o âncora Rodrigo Bocardi, da Rede Globo, na senda do “jornalismo opinativo contemporânea”, infere que se o advogado de um dos acusados foragido sabia onde ele estava e não queria dizer também deveria ser preso (!).

Perguntamo-nos, ele não sabe o que faz ou sabe muito bem e mesmo assim o faz? Um jornalista da empresa de comunicação mais poderosa do país não foi devidamente assessorado para saber dos direitos e deveres do defensor ou mesmo sabendo ele arremata com sua opinião, escudo contemporâneo de falácias dos mais variados jaezes, de que o advogado deveria ser obrigado a manter sua fidelidade ao “sistema”, mesmo traindo seu cliente?

Pois nunca é demais lembrar que desde o fim da Santa Inquisição, quando a defesa era peça acessória que “atrapalhava” a busca da verdade, o advogado precisa ser leal ao seu cliente, como o psicólogo ao paciente, o padre ao que confessa e o jornalista à sua fonte sigilosa de informações.

2) A chacina de Campinas e os “Trolls” da internet.

Na noite de Réveillon, um sujeito assassina 12 pessoas, entre elas seu próprio filho. Diante das informações veiculadas pela grande mídia qualquer análise da motivação, causas, personalidade ou até mesmo sanidade do assassino teria valor meramente opinativo; trata-se daqueles crimes que chocam tão profundamente que logo queremos rotular de “doente” o agressor, o que revela a dificuldade de “normalizarmos” o que fez, ou, melhor dizendo, nossa incapacidade de enquadrar seu comportamento em um léxico de racionalidade faz com que o excluamos da ordem do “normal”, ou, ainda melhor, operamos uma verdadeira “foraclusão” lacaniana.

Nesse fato destacamos o (cada vez menos) surpreendente apoio de inúmeras pessoas nas redes virtuais às motivações políticas de extrema direita exaradas em uma última carta do assassino. Seriam meros “trolls” da internet? Somos obrigados a concordar com Zizek, para quem dever-se-ia inverter a perspectiva de que as pessoas possuem uma persona verdadeira na realidade e outra, falsa, na internet, por meio da qual possa extravasar algumas emoções; para o filósofo esloveno nada nos impede de crer que as pessoas reais são as da internet, apenas possuindo uma persona falsa para sua vida fora do virtual!

3) O massacre do Compaj “Umanizzado”.

Cinquenta e seis pessoas foram mortas em uma rebelião no Complexo Prisional Anísio Jobim, administrado pela empresa “Umanizzare” no segundo dia do ano. As causas ainda são obscuras e se tem atribuído a conflitos entre organizações criminosas rivais, mesmo que alguns dos mortos não fizesse parte de nenhuma facção.

Um magistrado chamado pelos detentos para negociação é prontamente associado pela grande mídia a “suspeita de envolvimento com o crime organizado”, dado à sua postura garantista, ainda que com ela não tenha beneficiado nenhum dos suspeitos de comandar a rebelião.

No dia 4 o governador do Amazonas, José Melo, disse em entrevista que “não havia nenhum santo” entre os mortos, evidenciando o discurso latente de que se tratou de “pena merecida”, ainda que ao arrepio da lei – afinal de contas de que vale a lei diante do Código Penal do homem médio, o que afirma que “bandido bom é bandido morto”? No dia seguinte, aquele que ocupa a cadeira de Presidente da República afirmara que se tratou de “acidente pavoroso”, mais tarde, na mesma toada, seu Ministro da Justiça lançara a afirmação de que a culpa não foi de ninguém, foi do “sistema”.

O massacre no Compaj foi mais uma crônica de tragédia anunciada. Falar das mazelas prisionais do Brasil já se tornara um lugar comum. Nem o mais desinformado dos cidadãos desconhece a situação perversa dos presídios, ou, em uma expressão mais técnica e da moda, o “estado de coisas inconstitucional” que os circunda. Então, o que falar de juízes, secretários de segurança, diretores de presídios e do próprio Ministro da Justiça? Aqui podemos arrematar: eles sabem muito bem o que fazem e mesmo assim o fazem.

Por óbvio que a estrutura de diferenciação funcional opera pelo escamoteamento da responsabilidade; tal qual os nazistas tentaram fazer – e que fique claro que não estamos equiparando ambos os massacres, apenas traçando uma equivalência de modus operandi – , a culpa é diluída na máquina-de-guerra ao ponto de cada agente individualmente falando não poder ser responsabilizado pela sua fração homeopática, restando apenas a opção de culpar o “sistema”, o grande Outro, a ordem simbólica, a qual temporariamente desresponsabiliza seus integrantes ao dar a impressão de que, como o Barão de Munchausen, saindo do mar, montado em seu cavalo, puxando-se pelos próprios cabelos, ela se sustenta por si.

O processo de neutralização da responsabilidade prossegue com o chefe de Estado afirmando se tratar de um “acidente”, ou seja, algo fortuito, inesperado, imprevisível. Tese de difícil sustentação quando um Ministro do STF afirma em público que vota pela execução provisória da sentença condenatória em segundo grau para, entre outros motivos, forçar o Poder Executivo a resolver a situação caótica dos presídios.

Não, a culpa não é do “sistema”, a culpa é de cada ator jurídico que contribuiu para colocar um “reeducando” – identidade atravessada pela marca do cinismo – a mais do que a capacidade limite do sistema, de cada funcionário público que, operando a máquina-de-guerra, ignora a Lei de Execuções Penais em prol de “apenas cumprir com o seu dever”, como se proteger a dignidade humana também não o fosse.

Se estendermos essa cartografia autoritária mirando suas bases sociais, todos os eventos aqui narrados se conectam: a legitimidade da postura autoritária conferida pelos que se identificaram com o assassino de Campinas funciona como alicerce para que a mídia se sinta livre para identificar o juiz garantista com o juiz criminoso, possa querer criminalizar o advogado pela lealdade ao seu cliente e, por fim, last but not least, possa um governador de Estado em um discurso oficial subentender que os mortos no massacre de certa forma mereceram seu destino.

Nunca tivemos a pretensão de que uma nova translação planetária pudesse varrer as pulsões autoritárias pela tangente, mas todo raiar de novo ano traz a potência do abandonar velhos costumes, do não insistir em estratégias de ação que exaustivamente já se revelaram falhas. Infelizmente não é o que espreita no horizonte ao vislumbrarmos o “plano de ação” do Executivo – verdadeiro museu de grandes novidades. É péssimo o papel de profeta do apocalipse e ainda muito cedo para uma previsão – afinal, toda previsão é sempre precipitada – para o que nos aguarda em 2017, que chega ainda com o cheiro de 2016... ou de 1250...

P.S.: no fechamento desta coluna recebemos a informação de que ao menos 33 presos foram mortos na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, outro “acidente pavoroso”, culpa do “sistema” despersonalizado, mas quem sabe não foi melhor assim, de repente encontrariam um juiz “garantista” (leia-se, observador da lei) pela frente e um advogado fiel a seu papel e seriam eventualmente soltos, mesmo “não havendo ali nenhum santo”.


Imagem Ilustrativa do Post: blood // Foto de: bedrocan // Sem alterações

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