Por Cyro Marcos da Silva - 09/04/2015
Falar de meia idade. Tem a Psicanálise algo a falar sobre meia idade? De um lugar implicado com a Psicanálise ou do lugar de alguém que reflete o mundo em que vive, que posso dizer em torno do tema? Que questões surgem?
Meia idade, segundo o dicionário, seria a idade que vai dos trinta aos cinquenta anos de vida. Veja-se por aí que a resposta está dada em tempo cronológico, em anos contados, em um padrão estabelecido. Será que não há algo, nisto, que fuja ao rigor cronológico? Parece-me que há momentos em que experimentamos a passagem de muitos anos em poucos minutos, ou, o inverso, de que pouca ou coisa alguma tenha se passado ao longo de muitos anos. Por aí, já se vê que há algo que subverte este tempo cronológico, algo atemporal, ligado ao tempo do sujeito, um tempo lógico, em que a noção de percurso implica a de tempo de espaço, algo que possa se referir a um instante de ver, um momento de compreender e um tempo de incluir.
A criança nasce, por assim dizer, fora de um tempo, dando de cara com uma certa eternidade, contornada pelo fatal da efemeridade. Quando nasce, diz o poeta Cassiano Ricardo, “as estrelas já estavam em seus lugares” e prossegue “as lágrimas que havia de chorar lhe vinham de outros olhos”. É pois antecedida pela linguagem; um Outro lhe hospeda.
A chegada ao mundo é em nudez, mas o manto de palavras já estava aí a envolver o sujeito. Nasce-se frente à onipotência de um Outro: mãe total, pura, imaculada. Mas quem, um dia felizmente, - pois esta ainda é a melhor das hipóteses, - não tem sua decepção, descobrindo que sua amada mamãe tem mais o que fazer, e tomara que seja acenar com a causa do desejo do pai ? Eis aí então o sujeito dividido entre a marca de uma separação deste primeiro grande Outro e uma verdade que sempre lhe escapará e que não cessa de provocar a pergunta: que sou eu para o Outro?
E teremos o homem e a mulher, sob o determinismo da linguagem, efeito não da anatomia, mas da fala. Como diz Gennie Lemoine, em Partage des femmes (Seuil, Paris, 1976), “a mulher se fazendo passar por aquilo que ela não é e o homem fazendo mostra daquilo que ele não tem”. E diz mais: “é assim que o homem faz da mulher seu falo e a mulher faz do homem seu porta falo”. Eis aí pois o homem dividido entre crer ter algo a mostrar e à busca do objeto. E, por seu turno a mulher, dividida entre pretender ser A Mulher e buscar ter algo que supõe o homem tenha a lhe dar. Mais ainda que dividida, desdobrada!
Abro aspas para Adélia Prado:
“Com licença poética.” (Adélia Prado)
“ Cumpro a sina
Inauguro linhagens, fundo reinos
dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou ”
Diante hoje das amostras que o mundo nos dá, que questões o fato de se pensar estar chegando, provavelmente, à metade da existência pode nos trazer?
As questões são muitas e diversificadas, o nascimento in vitro, a morte in machina, a possibilidade de que uma mulher de meia idade engravide, seja lipoaspirada, siliconeada, a menopausa mitigada, o congelamento de espermas, a possibilidade da paternidade após a morte, a luta contra a infertilidade, a incerteza da filiação estendida agora até ao então seguro terreno da maternidade, o agarramento a uma imagem de juventude que vai se esmaecendo, o que tudo isto nos leva a pensar?
E mais: a pretensão de desvendar os enigmas da mulher, a possibilidade de procriar com a dispensa do ato sexual, não estão cada vez mais a nos provar o impossível da relação sexual de que falava Lacan, ou seja da impossibilidade do objeto de completude ou a inexistência de uma palavra que queira dizer tudo? E a AIDS, quanto nos traz de estupefação e reflexão, quando é a doença que escancara a vampiresca intimidade entre a morte e o sexo? Estará pretendendo a ciência, cada vez, mais eliminar o ineliminável do irracional? Deste irracional que a clínica nos ensina ser uma outra razão?
Onde se situa a meia idade em tudo isto? Talvez entre um olhar voltado para juventude, frequentemente atônita, procurando às vezes seu objeto na droga, clamando aos quatro ventos pela eficácia da operação paterna e, por outro lado, com o outro olho mirando uma velhice que sabe ser, como diz Freud, “absurdo o desejo de prolongar a vida excessivamente e que a vitória final pertence ao Verme Conquistador”.(entrevista de 1927).
Penso eu, situa-se a meia idade entre o instante de ver que tudo o que vive perece e o tempo de concluir, como Freud, que o homem não constituiria uma exceção. Resulta assim, na possibilidade de um momento de compreensão da qual nos fala o poeta. É por onde encerro:
Pode-se compreender de novo
que esteve tudo certo o tempo todo,
e dizer sem soberba ou horror:
é em sexo, morte e Deus,
que penso invariavelmente, todo dia.
(O modo poético Adélia Prado)
Cyro Marcos da Silva é ex-Promotor de Justiça, ex-Professor de Processo Civil, Juiz de Direito aposentado do TJRJ e Psicanalista. Publica regularmente no Empório do Direito nas quintas-feira.
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