“Se soubessem como são feitas as salsichas e as leis…” – Por André Sampaio

28/05/2017

Recentemente nós brasileiros temos sido impactados por um dos traços característicos do processo penal contemporâneo: a quebra do sigilo das comunicações, entrecruzada com o espetáculo midiático. Independentemente de qualquer juízo de valor acerca das medidas de interceptação de comunicações concretamente realizadas, não se pode negar que elas, enquanto espécies de “meios de prova”, não podem ser olvidadas em sistemas de investigação que se proponham sintonizados com as novas tecnologias, desde que, obviamente, executadas dentro dos limites legais.

De jornalistas a presidentes, ninguém parece ser poupado desse que talvez seja o mais isonômico dos mecanismos de investigação. Eis que a comunicação, estreita como nunca antes, revela-nos a segunda face de Janus: ao tempo que facilita inúmeras atividades do cotidiano, expõe-nos como nunca antes estivemos.

De forma entrecortada, a mídia de massa não perde a oportunidade – e para ser sincero não sei ao certo se deveria perder – de se apropriar das devassas comunicacionais para operar seu espetáculo rotineiro; de plano, telejornais de todos os tons e matizes passam a explorá-las milimetricamente, exercendo o seu dever institucional de informar e, concomitantemente, incrementando o gozo pela exposição da intimidade alheia.

Em várias das interceptações recentes foi possível escutar algum tipo de articulação em torno de leis, entre elas as mais mencionadas, talvez, foram o Projeto da nova Lei de Abuso de Autoridade (Projeto n. 280/2016, do Senado) e o que estabelece as (não mais) dez medidas contra a Constituição, quer dizer, contra a corrupção, aliás, perdoem-me o lapso (Projeto 4.850/2016). Impossível nesse momento não lembrar do Duque de Lauenburg, o Príncipe Otto von Bismarck-Schönhausen, em sua célebre frase “Os cidadãos não poderiam dormir tranquilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis.”

De modo geral, o que chama a atenção nos diálogos são parlamentares buscando se valerem de alguma maneira de seu capital político para fins pessoais. Mais especificamente, em relação aos projetos já mencionados, seria se valerem da máquina legislativa para aprovar a Lei de Abuso de Autoridade e minar o eventual potencial punitivo das medidas contra a corrupção com o desiderato de estabelecer uma zona de proteção pessoal em face do alcance das investigações policiais.

Diante disso uma questão me acomete e gostaria aqui de compartilhar com vocês: deve a intenção do legislador ser levada em consideração no decorrer do trâmite do processo legislativo ou, na senda de autores como Niklas Luhmann,[1] poderíamos afirmar que sua legitimidade não se irrompe de intenções, mas do próprio procedimento?

Ora, diante deste cenário é impossível não fazer uma pergunta antecedente: será que todas as demais incontáveis leis mediante as quais não se interceptou previamente qualquer parlamentar para poder fiscalizar suas “reais” motivações foram editadas com a mais nobre das intenções?

As possibilidades de captação de motivos são fortuitas e contingentes. Nada mais ilusório que esta tentativa de apreensão do real, tão bem retratada pelo “Che vuoi?” Lacaniano, extraído do conto de Jacques Cazotte, “O diabo amoroso”, conto no qual este aparece como portador de um saber sobre o desejo alheio.

O desejo é campo selvagem – corriqueiramente objeto de tentativas de estratificação, diriam Deleuze e Guattari, mas sempre escapulindo por linhas de fuga.[2] A tarefa de alcançar a “verdadeira” intenção do legislador, quando, na senda do inconsciente freudiano, nem ao menos ele próprio sabe qual é, está eternamente fadada ao fracasso.

Assim, o que nos acometem são traços do desejo, estratos que nos são revelados por devassas investigativas que nos impactam por nos fazerem contemplar algo que cotidianamente queremos esquecer: os procedimentos possuem o condão de escamotear, jamais de eliminar as vontades que os operam de modo subjacente.

Evidente que se trata de elemento sustentado por fundamentos sociais mais radicais, como o próprio mito da neutralidade da lei, mito este ancorado na harmonia entre os três poderes e no juiz “boca-da-lei”. Ocorre que a lei não é neutra, nunca será. Ela é o fruto da decisão da maioria destas máquinas desejantes, seres que querem, sempre transitivamente – todo desejo é em conjunto, um agenciamento[3] – e, com efeito, apenas contingentemente usam seu querer de forma altruísta e abnegada – valores não descartados nesse “caldo pulsional”, mas tão somente eventuais.

Por certo que a irrupção de conversas privadas demonstrando nuances previamente ignoradas nos faz duvidar da legitimidade da lei em questão, mas não seria o ônus de nosso modelo de democracia a legitimação pela mera observação das regras do jogo?

A lei é a consolidação de vontades que extrapolam a política como arte e alcançam a política como jogo de interesses: pessoais, empresariais, partidários, familiares, são inúmeros os fatores que se agenciam para que uma lei seja editada, provavelmente tendo os mais fortes o caráter pessoal, centrado no eu (ego), e os mais fracos no outro (alter), o “povo”.

Desejável ou não, é o custo de nosso sistema político – cuja excrescência são os supostos “motivos reais” do ator político. Posto o problema nestes termos, o que talvez devêssemos mirar seria não o desejo “contaminado” de quem participou de dado procedimento ocorrido nos limites da lei, mas no próprio modelo político adotado: a democracia representativa.

Aqui, impossível não concordar com Fran Alavina, que, escorada em matriz Agambeniana, conclama-nos a “profanar” – “restituir aos homens o que antes havia sido isolado, retirado do uso comum” – visto que sua versão sacralizada nos tem sido onerosa.[4] Sua conclusão é a de que

Se no momento histórico em que se gestavam os regimes democráticos de hoje falou-se que o rei estava nu, agora é possível afirmar que a representação está nua: a vemos como ela é, eivada de contradições, paradoxalmente despida por aqueles que com ela se vestem. Por isso, toda tentativa de reforma da Democracia que mantenha a atual versão representativa será remendo de pano novo em roupa velha. Não há mais espaços para meras reformas, é preciso, de fato, reinventá-la, recriá-la: em outros termos, é preciso profaná-la. Somente quando profanado o sistema representativo, os escolhidos deixarão de constituir a casta de hoje, e nós deixaremos de ser os párias.

À margem de tudo isso, enquanto formos governados pelo atual sistema, não se pode confundir a necessidade de determinadas leis, como limites à autoridade e à pulsão inquisitória no (necessário, sem dúvida, mas não a qualquer preço) combate à corrupção, com os inalcançáveis “reais” motivos presentes no curso do processo legislativo.

Repitamos, as leis jamais serão neutras; os legisladores nunca serão selecionados exclusivamente por sua nobreza de espírito e abnegação pessoal. Enquanto não profanarmos esse modelo, tudo o que nos resta é o respeito às regras do jogo, tanto no processo penal quanto no legislativo.


Notas e Referências:

[1] LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo procedimento. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1980.

[2] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.

[3] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-édipo: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2010.

[4] < http://outraspalavras.net/brasil/dialogo-com-agamben-profanar-a-democracia-representativa>, acesso em 26 de maio de 2017.


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