Por Marta de Oliveira Torres - 24/01/2016
(Passando na televisão o show de fim de ano de Roberto Carlos)
TIA: Será que Roberto Carlos deixou de ter o TOC dele?
MARIA: Tia, o que é TOC?
TIA: Transtorno Obsessivo Compulsivo, Maria. É considerado uma doença mental pela Organização Mundial de Saúde. É uma coisa que todo mundo tem em pouca quantidade, mas quando fica demais, é de se preocupar...
MARIA: Não entendi...
TIA: Roberto Carlos, por exemplo, ele mesmo declara que tem TOC. Ele só fala palavras positivas. Nessa música que ele tá cantando agora, por exemplo, a letra diz “se o bem e o mal existem, você pode escolher”, mas ele canta “se o bem e o bem existem”. Quer ver: espera!
MÃE: Tem gente que tem TOC de várias coisas. Eu mesma tenho uma prima que tinha TOC de só dormir logo depois de tomar banho. Isso não era nada até ela viajar para o sertão e só ter (pouca) água na casa durante o dia, aí ela passou vários dias sem dormir, não tinha jeito, coitada.
TIA: Teve uma atriz famosa na época da gente que disse ter TOC de ligar e desligar a luz um certo número de vezes, senão não conseguia sair de casa. Eu mesma já tive uma época um TOC parecido com Roberto Carlos. Só queria ver o lado bom das coisas. Acreditava na “lei da atração”, e aí toda vez que vinha um pensamento negativo de desconfiança, eu afastava pensando positivo. Resultado: ao contrário de Roberto Carlos, eu me ferrei, me lasquei, “tomei na tampa”, me arrombei, de diversos lados e maneiras possíveis, justamente nessa época de “pensamento positivo”. Parece que os urubus adivinham: ali tem um besta que pensa que vai dar certo. E o mundo tem sempre os dois lados, como já me lembrava a atriz Cristiane Cândido: “Não podemos divinizar nada nem ninguém”.
Saudade do TOC. Se eu conseguisse ver novamente tudo pelo lado positivo, eu só iria ver, por exemplo, que a cantora baiana que rodou a baiana no palco só falou uma coisa engraçada, ao chamar a atenção do “papai”, seu marido, que conversava com outra mulher enquanto ela apresentava seu show. Se eu tivesse TOC, eu não escutaria a parte que ela dizia: “vou passar a porra nela”, seja de forma raivosa, seja jocosa, de qualquer forma legitimando o enraizado ciúmes. Eu nem veria ciúmes, aliás, nem lembraria que o ciúmes foi introduzido na humanidade somente há poucos milênios, quando os homens militares escravizaram as mulheres livres dos povos primitivos vencidos nas guerras e disseram que elas seriam sua propriedade. De tanto repetir essa história, um virou dono do outro (aliás, a mulher geralmente continua coisa a servir o homem), e a violência pelo ciúmes uma regra tão banal que, se inexistir em um relacionamento a dois, parece que os conviventes são “de alma livre” e, o pior, ser de alma livre é algo tão difícil que se torna esquisito. O normal é mentir fidelidade ou reprimir desejo. O normal é dizer que vai dar tapa se alguém tentar se meter com sua propriedade. O normal é pegar o telefone e marcar por mensagem – seguidamente deletada – um encontro escondido.
Se eu conseguisse ver novamente tudo pelo lado positivo, eu só iria ver que o Juiz Moro está quebrando um esquema de corrupção. Só veria que advogados bem intencionados defendem a valorização da verdade gratuita, e talvez veria alguns juízes defendendo que os fins justificam os meios (já que essa ideia utilitarista introjetada por Maquiavel tem tanto eco que parece até ser positiva). Veria, de um lado ou do outro, somente pessoas que querem acabar com a corrupção no Brasil. Só que como não tenho TOC (não esse), vejo que, como os dois lados não se entendem, para cada condenação mínima de um corrupto (seja político ou empresário) existem no mínimo 1.234.567 páginas de teses para defendê-lo ou anular o procedimento. Para cada mês de condenação, existem anos e anos de perdão. As trocas no Brasil são primitivas: toma-lá-dá-cá. E isso é positivo-negativo-negativo-negativo. Depois de na ditadura militar no Brasil termos criado a “tortura à brasileira”, agora nos eternizaremos como o país da “ética da mentira”. Investigar como os alemães fizeram para apurar os crimes cometidos na Segunda Guerra Mundial, nem pensar. O que os ditadores brasileiros ganhariam? Nada! Então deixa pra lá, não sabemos investigar mesmo! Anistia e perdão para os torturadores e corruptos! E só são condenados se eles quiserem, nos termos deles! Se eu tivesse TOC, continuaria a cantar: salve, salve, pátria amada.
Se eu tivesse TOC, eu não leria a notícia de que uma criança morreu na sua noite de núpcias aos 8 anos num país mulçumano, nem que o Brasil é recordista de casamentos de meninas, crianças e recém adolescentes, nem que há pessoas na internet que se manifestam favoráveis a políticos esquizofrênicos a defender valores que absolutamente só levam à tristeza da humanidade e, pior, tem gente que compactua, e, pior, tem gente que além de incentivar a prática de estupro ainda verbaliza isso seriamente e ainda ensina como fazer.
Se eu tivesse TOC, eu não tentaria entender que diaxo de verdade é essa que todo mundo “roda a porra” defendendo a sua, mas “se você tira a mentira vital de um homem comum, tira-lhe ao mesmo tempo a felicidade” (Henrik Ibsen).
Saudade do TOC.
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Marta de Oliveira Torres é Defensora Pública do Estado da Bahia, Atriz, fotógrafa, poetiza, mestra em Relações Sociais e Novos Direitos pela UFBA. . .
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