Coluna Direito Empresarial e Análise Econômica / Coordenador João Carlos Adalberto Zolandeck
Atualmente, com a institucionalização da responsabilidade civil consolidada em nosso ordenamento jurídico, tem-se percebido o uso abusivo do instituto, impulsionado não apenas por precedentes desmedidos, mas, também, pelo amplo e irrestrito acesso à justiça, sob a âncora de normas protecionistas aplicadas equivocadamente em demandas onde não há espaço. Tais elementos desencadearam um fenômeno comportamental da sociedade brasileira que preenche o Poder Judiciário com ações indenizatórias infundadas, das mais variadas espécies.
Nesse contexto, com o aumento exponencial de demandas, faz-se necessário (re)normatizar o instituto da responsabilidade civil de forma sustentável, para garantir, de outro vértice, a devida aplicação do princípio constitucional da isonomia e, especialmente, dar guarida à segurança jurídica inerente às relações negociais.
Eis a grande questão ora discutida: de qual modo pode-se aplicar o instituto da responsabilidade civil de forma racional, equânime e justa, sem que haja a banalização da autonomia privada, por um lado e, por outro, seja garantido o prestígio das ações fundadas em razões legítimas para a arguição desta responsabilidade?
Invariavelmente o dever de reparar o dano decorre de um ato ilícito contratual ou extracontratual, capaz de desagregar ou trazer desequilíbrio social. Em ocorrendo violação à norma, tem-se, com a reparação, o retorno ao statu[1] quo ante, que, quando possível, assemelha-se à própria figura de justiça.[2]
Deste modo, aquele que praticar ato ilícito, por ação ou omissão, que acarrete o dano, atrairá, por consequência, a obrigação de restaurar o statu quo ante — ou o mais próximo disto. Trata-se de um “elementar equilíbrio social, no qual se resume, em verdade, o problema da responsabilidade”[3].
É da relação de causalidade entre a conduta do agressor e o dano experimentado pela vítima que nasce a responsabilidade, a contraprestação.[4] Em reforço a este entendimento, Aguiar Dias esclarece que a definição de responsabilidade surge da ideia de obrigação.[5]
Neste sentido, o instituto da responsabilidade civil é parte integrante do direito obrigacional, pois é, em linhas gerais, a obrigação que o autor de um ato ilícito tem de reparar o dano causado a outrem, seja por meio da resposta a uma pretensão de obrigação de fazer, não fazer ou de satisfação por perdas e danos, dentre outras.
Desta visão decorre a eterna discussão do que seria justo ou injusto dentro de determinados padrões em um contexto social específico.
A partir destas premissas resta evidente que o tema “responsabilidade civil” é amplo, e que sua conceituação não se limita a uma fórmula, mas sim, concerne a uma complexa união de fatores jurídicos, sociais e morais presentes na sociedade.
Tais fatores, unidos em um mesmo plano objetivo, apontam parâmetros de comportamento social e dão, portanto, diretrizes para que se estabeleça a ordem jurídica privada. Por sua vez, o sistema jurídico privado vem regular os “comportamentos sociais”, impondo proibições que se amoldem às mesmas diretrizes.
O desafio consiste em uniformizar esses parâmetros e fatores, para alcançar verdadeira isonomia material e processual e, assim, aproximar-se da ideia de justiça.
Neste contexto, é fácil observar o quão é carente de clareza o tratamento dado ao tema da responsabilidade civil. Tal dificuldade de conceituação é, de fato, compreensível, ao se levar em consideração a amplitude da matéria, seu caráter social e a pluralidade de elementos que a envolve. A dificuldade de classificar objetivamente a matéria tornou-se uma grave problemática à segurança jurídica pátria.
Isto porque relacionar a responsabilidade civil à sua finalidade primordial tornou-se um critério temperado por reações individuais e subjetivas de nossos Julgadores, aplicável independentemente das relações negociais previamente estabelecidas, de modo que a ampliação da finalidade da responsabilidade civil é justamente a questão a ser combatida em prol da segurança jurídica negocial.
Nesta senda, registre-se que, na prática, a aplicação da responsabilidade civil em nosso país obedece a critérios extremamente subjetivos, observando-se de forma corriqueira que Tribunais e Câmaras de mesma Corte fixam entendimentos extremamente díspares, em casos semelhantes, a despeito do princípio da equidade.
Cabe indagar: afinal, nos casos de reparação em razão do dano, a ideia de justiça estaria ligada, simplesmente, à igualdade na aplicação das leis — sejam elas oriundas de macro ou microssistemas — haja vista o sistema Civil Law? Neste caso, como esta premissa coexistiria de forma harmônica com o princípio constitucional da isonomia?[6]
Para responder a esta problemática, necessário reconhecer que, não obstante a carência conceitual da responsabilidade civil, de igual forma, nota-se a limitação conceitual para distinguir com propriedade a responsabilidade civil contratual da extracontratual ou aquiliana.
Ainda pairam cinzas sobre o conceito e os elementos da responsabilidade civil, ao ponto de Caio Mário da Silva Pereira ser categórico ao afirmar que, em se tratando do elemento culpa, não há qualquer diferença ontológica entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade aquiliana[7].
Por outro lado, o referido autor estabelece a premissa que, a nosso ver, constitui a significativa diferença que contribui para afastar a subjetividade de interpretação de nossos Julgadores, esclarecendo que “uma e outra (culpa contratual e culpa aquiliana) apresentam pontos diferenciais no que diz respeito à matéria de prova a à extensão dos efeitos”[8].
Isto significa dizer que, embora se entenda que a responsabilidade contratual e a responsabilidade aquiliana se confundam ontologicamente, no que diz respeito aos seus critérios de comprovação de existência de dano, bem como de sua respectiva extensão, as categorias são diametralmente opostas.
Na responsabilidade civil aquiliana cumpre ao queixoso demonstrar a presença de todos os elementos da responsabilidade (ato ilícito, dano e nexo causal).[9] Não se olvide, contudo, que, apesar de apresentar-se teoricamente como um sistema hígido, em muitas ocasiões a aplicação do instituto é desvirtuada de tal maneira que, ante a dificuldade de comprovar a existência de todos os elementos ensejadores da responsabilidade, alguns julgadores passaram a supor sua existência, desprezando o sistema legal de distribuição do ônus da prova.
Por outro lado, em se tratando de responsabilidade contratual, tais elementos são aferíveis de forma mais concreta, uma vez que há um dever positivo de cumprir uma regra previamente avençada.
É como dizem Gagliano e Pamplona Filho, ao firmarem o seguinte convencimento:
Com efeito, para caracterizar a responsabilidade civil contratual, faz-se mister que a vítima e o autor do dano já tenham se aproximado anteriormente e se vinculado para o cumprimento de uma ou mais prestações, sendo a culpa contratual a violação de um dever de adimplir, que constitui justamente o objeto do negócio jurídico, ao passo que, na culpa aquiliana, viola-se um dever necessariamente negativo, ou seja, a obrigação de não causar dano a ninguém[10].
Neste sentido, aquilo que se pode chamar de conceito genérico de culpa contratual tem apoio na formação prévia do contrato e, respectivamente, na sua formatação.[11] Vige a liberdade contratual, prevalecendo a autonomia privada.
Superada a barreira inicial (liberdade de contratar), as partes têm plena liberdade de decidir com quem contratar (desde que pessoa capaz) e, ainda, o que contratar, evidentemente ressalvadas as vedações de ordem pública.
Deste modo, tem-se a perfeita tríade de liberdade de contratar, liberdade de escolher o co-contratante e liberdade de contratar sobre qualquer conteúdo que não seja expressamente vedado.
Preenchidos os requisitos essenciais acima mencionados, uma vez celebrado o contrato, as partes estão vinculadas ao conteúdo das respectivas cláusulas, conforme o que se depreende do princípio da obrigatoriedade:
O contrato obriga seus contratantes, que, em consequência, não têm o poder de se liberarem unilateralmente. Não tem cada contratante o poder de se arrepender do avençado. Nem mesmo o juiz, salvo nos casos expressamente autorizados em lei, tem a faculdade de revogar o contrato, ou alterar suas consequências. Nascido da vontade livre dos contratantes, e formado com observância das normas jurídicas, o princípio da força obrigatória significada a irreversibilidade da palavra empenhada[12].
Assim, presentes os pressupostos legais e formalizado o contrato entre partes autônomas e capazes, sua aplicação no cenário jurídico se aperfeiçoa e se impõe, do contrário, as bases mais elementares da segurança jurídica estarão comprometidas.
Por um lado, se os fatores internos e externos de enforcement contratual devem corroborar a incondicional aplicação do conteúdo do pacto, de outro vértice, a sua revisão (total ou parcial), com o consequente afastamento da obrigação, ou declaração de eventual nulidade, são hipóteses que apenas devem ser cogitadas e discutidas no Poder Judiciário em casos expressamente previstos em lei, e não de forma corriqueira e irresponsável.
Na prática, observa-se a inversão lógica de regras e exceções, o que, em muitos casos, permeia a ilegalidade e a inconstitucionalidade.
Por oportuno, destaque-se que o CDC há muito deu por superada a distinção entre a responsabilidade contratual e aquiliana, aplicando-se ao fornecedor, invariavelmente, o tratamento unitário (relações consumeristas). Isto quer dizer, em termos gerais, uma íntima proximidade com a teoria da responsabilidade integral, onde o risco do negócio é acentuado.
O que assombra é notar a ampliação ou a extensão de premissas consumeristas (regras e/ou princípios) aos contratos interempresariais, fora da própria lógica do microssistema (CDC) que tem na vulnerabilidade a sua base de sustentação. A crítica reside na mera ambição de reparar para justificar: a aplicação do direito sob a bandeira da “justiça”, no entanto, em uma perspectiva individualista/subjetivista, instauradora da desordem institucional no macrossistema interempresarial.
Evidente é que, em se tratando de relações contratuais, em especial, de contratos interempresariais — onde em ambos os lados se encontram empresários em condição de igualdade — é latente que práticas protecionistas, e respectivos microssistemas legais que as sustentam, devem ser afastadas de plano, vez que tais impropriedades são completamente alheias à realidade corporativa.
Paula Forgioni diz que os contratos interempresariais devem ser interpretados no contexto do mercado e são firmados entre empresas cujas atividades são movidas pelo lucro.[13]
Deste modo, os contratos possuem um papel fundamental para a estabilização das relações, dando a estas, previsibilidade.
A ideia de enforcement (garantia de exequibilidade) dá aos negócios, a partir dos contratos, credibilidade, sem a qual não há incentivos para atrair investimentos e prover o desenvolvimento econômico de um país[14].
A toda evidência, a intervenção inadequada nos contratos, decorrente da equivocada leitura de temas relacionados à responsabilidade civil, no seu núcleo fundamental, acarreta mais danos do que benefícios à sociedade, pois traz incerteza e insegurança jurídica para o ambiente de negócios, repercutindo na livre iniciativa, de forma a desestruturar a ordem econômica nacional e, consequentemente, desencadear a ruína social.
Ainda que trate de um cenário de conceituação aberta, vislumbra-se a necessidade de firmar um ambiente seguro em termos da responsabilidade civil contratual, de modo que se possa tornar o instituto mais objetivo, equânime, trazendo mais racionalidade para o momento de uniformização da jurisprudência.
Notas e Referências
[1] A expressão do latim original não leva o “s”.
[2] HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Traduzido por A Ribeiro Mendes. Lisboa: Gulbenkian, 1986, p. 306.
[3] HART, Hebert L. A. O conceito de direito. Traduzido por A Ribeiro Mendes. Lisboa: Gulbenkian, 1986, p. 24.
[4] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, 11ª ed. Rev. e atual. de acordo com o Código Civil de 2002, aumentada por Rui Berford Dias, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 04.
[5] DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil, 11ª ed. Rev. e atual. de acordo com o Código Civil de 2002, aumentada por Rui Berford Dias, Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 4.
[6] HART, H. L. A. 1986, p. 178. In NALIN, Paulo Roberto Ribeiro, 1996, p. 36: “Mais a diante o autor sustenta, sempre tomando como referência o common Law, que a justiça se revela, antes do que no texto da lei, pelo seu princípio geral de idêntico tratamento aos casos semelhantes. É este o senso de justiça do sistema de precedente jurisprudencial”.
[7] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 247.
[8] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 247.
[9] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 247.
[10] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva 2003.
[11] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 248.
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Responsabilidade civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 248/249.
[13]FORGIONI, Paula. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. São Paulo: RT, 2010, p. 29.
[14] ZOLANDECK, João Carlos Adalberto; FARINHA, Vânia Marian Guerino. A relação da AED, dos contratos e da teoria dos jogos com a atividade empresarial. Disponível em: <http://emporiododireito.com.br/leitura/a-relacao-da-aed-dos-contratos-e-da-teoria-dos-jogos-com-a-atividade-empresarial-exitosa>. Acessado em: 26 de setembro de 2018.
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