Resenha do livro “O juiz e a prova: O Sinthoma Político do Processo Penal. Uma análise Transdisciplinar da Gestão da Prova pelo Julgador à Luz do Direito, da Psicanálise e da História” de Antonio Pedro Melchior

18/07/2016

Por Kelven de Castro Soeiro Santos - 18/07/2016

O presente livro é fruto da dissertação de mestrado do professor Antonio Pedro Melchior e tem a pretensão de contribuir para a construção de um processo penal melhor, que limite a estrutura alucinante do poder, perceba o outro em sua diferença e, portanto, seja mais tolerante. Em suas palavras: sensibilidade democrática. Mais nada. O professor e juiz de Direito Dr. Rubens R.R. Casara teceu breves comentários no prefácio do livro, ressaltando a seriedade do trabalho do autor.

Antonio Pedro Melchior discorre em seu livro de forma brilhante sobre o problema da gestão da prova pelo julgador numa ótica transdisciplinar, envolvendo História, Filosofia, Psicanálise e Direito, pois falam do mesmo assunto: o homem e a interação humana. A abordagem transdisciplinar é utilizada, neste contexto, para enfrentar a fragmentação do saber, responsável por apresentar cada vez mais inconvenientes quanto ao conhecimento que produz. Sem esta mediação, o saber fica enclausurado numa redoma acrítica. Destarte, segundo o autor, é imprescindível que se faça essa relação transdisciplinar para construir um saber crítico e é isto que o mesmo nos mostra no primeiro capítulo.

No segundo capítulo, o autor vem pontuando aspectos históricos do processo penal como o modelo processual grego e o modelo processual romano. Uma das características do modelo grego é o predomínio das partes no processo. A função pública do sistema processual penal grego seria a resolução de um conflito intersubjetivo. Ao juiz caberia regular tão somente esta finalidade. Ao acusador caberia o fardo de reunir as provas que assumia como válida para sustentar a sua imputação.

O ponto fundamental da obra se identifica na relação estabelecida entre o regime político estabelecido, sistema processual e amplitude conferida ao poder do julgador no processo criminal.

A análise do sistema processual em Roma é esclarecedor desta afirmação. Roma conheceu três espécies de regime político: a monarquia, a república e o império. Variava-se muito o modelo processual conforme a ideologia política de cada regime, sendo esta ideologia política o termômetro de um processo penal acusatório ou inquisitivo. É nesse caminhar que o autor lança mão de uma categoria lacaniana, o Sinthoma: a existência de um elemento impassível de desaparecer, incurável, precisamente identificado na relação entre regime político e a forma com que o processo penal é concebido. Portanto, o sinthoma político do processo penal é aquilo que não desaparece nunca, qual seja, o vínculo existente entre determinado regime de poder político, sistema processual penal e o lugar do julgador quanto à gestão da prova.

No terceiro capítulo, de forma magistral, o autor vem destacando: O lugar do Discurso do julgador no processo penal contemporâneo. Trabalha os problemas da tradição e do inconsciente inquisitivo, o que pretende superar por meio da construção de um processo penal democrático, ou seja, uma fortaleza dogmática de contenção ao poder punitivo.

Discorre ainda sobre o mal-estar na contemporaneidade, consequência de uma sociedade marcada pelo traço neoliberal em que quase não ocorrem experiências alteritárias. Trata-se dos desdobramentos da cultura do narcisismo, onde o desprezo pelos outros é constitutivo. Vem demonstrando de forma contundente como há uma cultura do medo que impregna a sociedade e como a opinião pública reage a isso diante de uma experiência de desamparo: a opinião pública busca resultados rápidos e a isso reagem os políticos, introduzindo medidas simbólicas e debilitando as garantias fundamentais.

Por estas razões, é imprescindível que se mantenha o magistrado longe da manipulação do fato histórico pela gestão da prova, pois o juiz pode acabar contaminando a sua subjetividade para atender clamores públicos e, assim, aniquilando garantias fundamentais. É nítida a preocupação do autor com a contenção do poder punitivo e por um processo penal democrático em que não haja um julgador que vista a camisa do “secretário de segurança pública”.

Em seu último capítulo, Antonio Pedro Melchior demarca a gestão da prova pelo julgador no processo penal democrático. Discorre sobre as implicações da cultura narcísica no direito criminal e como isso prejudica de forma voraz as camadas sociais mais vulneráveis. Os malefícios gerados pela cultura do narcisismo e pelo neoliberalismo num processo penal democrático são quase irreversíveis. O problema da gestão da prova pelo julgador é consequência de uma postura ativa no processo. Demonstrando claramente que o lugar da fala do julgador faz toda a diferença, conclui: se o lugar que se fala não toma a relação com o poder como fundamento de identificação do núcleo do sistema processual, tudo muda.

Ainda nas palavras do autor: trata-se de perceber um processo penal vocacionado e concebido como um verdadeiro mecanismo de contenção e regulação do próprio exercício do poder punitivo, o que inclui atuar, na medida do possível, como interdição ao comportamento inconsciente do julgador. O processo penal é, afinal, o gatilho que acende a descarga pulsional e coloca todos a frente com o outro e consigo.

O lugar do julgador como garantidor de regras fortalece o diálogo contraditório entre as partes, compreendendo-se o contraditório como pedra de toque ao limite democrático. Nessa ótica, o autor demonstra a importância de um juiz espectador, afastado da iniciativa probatória.

Como o escopo não é resumir o livro, deixo os caros leitores na curiosidade para ler a instigante obra e de extrema importância para todos que realmente se importam com um processo penal desconectado da amarra inquisitiva e da tradição autoritária, que permeia o consciente e o inconsciente do julgador. Vale muito a pena a leitura!


Kelven de Castro Soeiro Santos. . Kelven de Castro Soeiro Santos é acadêmico do sétimo semestre de Direito da Universidade Cândido Mendes- RJ. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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