Registrar furto fraudulentamente exige dolo, decide juiz do TJSC

02/02/2016

Redação - 02/02/2016

O caso é inusitado. O acusado, dono do veículo, depois de retornaram para casa da "balada", vai dormir, enquanto seu amigo usa o carro para levar uma amiga para casa. No caminho se envolve em acidente. Para buscar se eximir de eventuais responsabilidades e sob sugestão de terceiro, registra um Boletim de Ocorrência de furto. Embora reprovável do ponto de vista moral, penalmente não há dolo capaz de incidir a conduta no tipo da denunciação caluniosa. A sentença absolveu.

Confira a decisão na íntegra abaixo:
  Autos n. 0014372-51.2014.8.24.0023 Ação: Ação Penal - Procedimento Ordinário/PROC Autor: Ministério Público do Estado de Santa Catarina Acusado: G. S. Vistos para sentença.

I – Relatório.

O representante do Ministério Público em exercício nesta Unidade ofereceu denúncia contra G. S., já qualificado nos autos, pela prática, em tese, do crime descrito no art. 339 do Código Penal, tendo em vista os atos delituosos assim narrados na peça acusatória (fls. 59-60):

No dia 20 de abril de 2014, no início da manhã, I. D. T. de A. dirigia o veículo I/FORD RANGER XLS, cor prata, placa XXX XXXX, registrado em nome da mãe do denunciado G. S., momento em que o colidiu contra o muro de uma residência da Servidão A. J., na Lagoa da Conceição, nesta cidade, fato que gerou uma discussão no local com os moradores. Em face desta situação, I. D. T. de A. foi encaminhado à 10ª Delegacia de Polícia, sediada na Lagoa da Conceição, para os procedimentos de praxe. Ao tomar conhecimento do caso, o denunciado G. S., sabendo que seu amigo havia bebido na noite anterior, para se eximir de qualquer responsabilidade criminal, deslocou-se ao 1º Distrito Policial e registrou o boletim de ocorrência XXXXXXXXX (fl. 09), informando falsamente que a caminhonete I/FORD RANGER XLS, cor prata, placa XXX XXXX, havia sido de si subtraída, imputando o fato criminoso a seu amigo e hóspede Isaac Daniel Traça de Almeida.

Com vista dos autos, o Ministério Público ofereceu denúncia (fls. 59-60).

Encerrada a fase investigativa (fl. 61), os autos vieram conclusos, oportunidade em que recebi a denúncia no dia 29 de outubro de 2014 e determinei a citação do acusado (fl. 63).

Citado nos termos do art. 396 do Código de Processo Penal (fl. 65), o acusado, por meio de seu defensor constituído (fl. 72), apresentou Resposta à Acusação (fl. 71).

Recebida a Resposta à Acusação e, não sendo o caso de absolvição sumária, foi designada audiência de instrução e julgamento para o dia 18 de maio de 2015, às 16h45 (fls. 73-74).

Realizada a instrução, foi inquirida uma testemunha, arrolada pela acusação. Ausentes as demais testemunhas, as quais tiveram suas oitivas insistidas pelo Ministério Público, foi designado o dia 27 de julho de 2015, às 14h15, para a continuação do ato (fl. 91).

Foram ouvidas duas testemunhas e dois informantes, todos arrolados pela acusação, no dia 27 de julho de 2015. Diante da ausência do informante Isaac D. T. A., que teve sua oitiva insistida pela acusação, foi designada nova data para a continuação do feito, no dia 19 de outubro de 2015, às 14h30 (fl. 109).

Novamente ausente o informante Isaac D.T.A., foi designado o dia 07 de dezembro de 2015, às 14h30, para a realização de sua oitiva (fl. 142).

Realizada a instrução no dia 07 de dezembro de 2015, foi inquirido um informante (Isaac D.T.A) e, em seguida, realizado o interrogatório do acusado. Ao fim, o Ministério Público apresentou alegações finais, na qual pugnou pela condenação do acusado nos termos do art. 339 do Código Penal, diante da comprovação da materialidade e autoria, principalmente considerando o teor do Boletim de Ocorrência de fl. 09 e pelos depoimentos colhidos em audiência (fl. 159).

A defesa, por sua vez, apresentou alegações finais por memoriais, na forma do art. 403, § 3º do Código de Processo Penal, postulando pela absolvição do acusado com base no art. 386, VII, do mesmo diploma legal (fls. 163-166).

Os autos vieram conclusos.

É o breve relatório.

II – Fundamentação.

1. Em relação à validade dos elementos colhidos no Inquérito Policial, diante de suas peculiaridades (sem garantia da Jurisdição, do Contraditório, da Ampla Defesa, da Motivação dos Atos), cabe distinção: a) em relação às provas periciais o contraditório será diferido, a saber, no decorrer da instrução processual as partes poderão impugnar os laudos, pareceres, perícias, inclusive requerendo esclarecimentos e sua renovação; b) no tocante aos depoimentos testemunhais a renovação é obrigatória. Cuida-se de mero ato de investigação , sem que o indiciado tenha participado da produção das informações, nem mesmo controlada pelo Estado Juiz. A validade, portanto, é somente para análise da justa causa e cautelares pré-jogo, como explica Lopes Jr: “O inquérito policial somente pode gerar o que anteriormente classificamos como atos de investigação e essa limitação de eficácia está justificada pela forma mediante a qual são praticados, em uma estrutura tipicamente inquisitiva, representada pelo segredo, a forma escrita e a ausência ou excessiva limitação do contraditório. Destarte, por não observar os incisos LIII, LIV, LV e LVI do art. 5o e o inciso IX do art. 93, da nossa Constituição, bem como o art. 8o da CADH, o inquérito policial jamais poderá gerar elementos de convicção valoráveis na sentença para justificar uma condenação.” . Anote-se, por fim, que a não realização de provas periciais por deficiência do aparato de investigação não é culpa do indiciado. Nos crimes que deixam vestígios (CPP, art. 158), é indispensável. Ausente, não pode ser suprida por prova indireta (STJ, HC 131.655) .

2. Trata-se de ação penal de iniciativa pública incondicionada, na qual se imputa ao acusado Guilherme Seeman a prática do crime de denunciação caluniosa, descrito no art. 339 do Código Penal.

Narra a peça acusatória que no dia 20 de abril de 2014, no início da manhã, I. D. T. de A. dirigia o veículo Ford Ranger XLS, placas XXX- XXXX, registrado em nome da genitora do acusado G. S., quando bateu contra o muro de uma residência na Servidão A. J., bairro Lagoa da Conceição, nesta Capital, o que gerou uma discussão com os moradores locais. Diante disso, I. D. T. de A. foi encaminhado à Delegacia de polícia, enquanto o acusado, ao tomar conhecimento do caso, também se dirigiu à Delegacia e registrou Boletim de Ocorrência (fl. 09), com intuito de se eximir da responsabilidade sobre o veículo, informando falsamente que I. D. de A. o havia subtraído.

2.1 Do crime de denunciação caluniosa (art. 339, do Código Penal).

A materialidade dos fatos restou devidamente comprovada por meio do Boletim de Ocorrência de fl. 09 e dos depoimentos prestados na fase judicial (gravações audiovisuais – fl. 160).

Já a autoria encontra respaldo nos elementos colhidos durante a instrução, havendo subsídios suficientes para imputá-la ao acusado.

O informante I. D. T. de A., em seu depoimento prestado em juízo, disse que conheceu o acusado Guilherme na cidade de Criciúma e que veio até a Capital a trabalho. Explicou que ficou hospedado na casa de G., e que na data dos fatos estava com este em uma festa na casa noturna Confraria, na Lagoa da Conceição, permanecendo com a posse da chave da caminhonete desde o início da festa. Ao final da noite, pelo fato de que G. havia bebido muito, conduziu o veículo, levando-o até em casa. Após algum tempo, tentou acordar G. para avisá-lo que levaria a moça que havia conhecido na festa até em casa, não obtendo êxito. Chegando no local, o carro acabou colidindo em um muro, e os moradores partiram com atos de agressão para cima dele. Com a chegada da polícia foi encaminhado pelos agentes públicos até a delegacia, momento em que foi acusado de furto do veículo de Guilherme. Disse também que não furtou o carro e que Guilherme tinha ciência de que a chave do veículo estava com ele desde o início da festa.

Interrogado em juízo, o acusado disse que Isaac estava hospedado em sua casa e saíram juntos na data dos fatos, no entanto, não teria dado a chave do veículo para Isaac, uma vez que foi ele quem voltou dirigindo até sua casa. Relatou que uma das testemunhas arroladas, Lourenço B., seu amigo, teria ido até a sua casa avisá-lo do ocorrido e o levou até a delegacia, quando então foi induzido a registrar o boletim de ocorrência.

O testigo Lourenço C. B. relatou que é amigo do acusado e mora em frente ao local dos fatos, e que por isso conseguiu ouvir um carro derrapar em frente a sua casa; ao sair para verificar o que estava ocorrendo, percebeu que o carro envolvido era o carro de G.. Após, dirigiu-se até a casa de G. para avisá-lo sobre seu carro e o levou até o local. Disse ainda que, quando chegaram até o carro, Isaac não estava mais lá, e então levou G. até a delegacia. Alegou não saber se havia um acordo entre o acusado e Isaac envolvendo a posse do carro.

Os policiais militares Elizeu B. C. e Raphael da S., em seus depoimentos, descreveram que se dirigiram até o local do fato, encontraram o veículo já danificado e em seguida levaram I. até a Delegacia. Por fim, relataram que o estado de Isaac parecia alterado.

José C. D., disse em juízo que reside na Servidão A. J., onde ocorreram os fatos, e que a sua casa teve o muro danificado em razão da colisão provocada por I.. Relatou que saiu de casa para oferecer ajuda na manobra do carro, o que foi recusado por I., que iniciou a agressão. Quando I. conseguiu tirar o carro do local, parou em frente à sua casa e desferiu-lhe vários socos. Não soube afirmar se o carro teria sido pego com ou sem a anuência de G..

S. M. de A., que também testemunhou em juízo, disse morar próximo ao local do acidente, mas que não presenciou os fatos. Pôde afirmar apenas que I. colidiu no seu portão em uma manobra de marcha ré, e que ele pedia por ajuda, falando que havia sido agredido.

Ante o exposto, embora devidamente caracterizada a autoria e a materialidade dos fatos, não se mostra evidente se a intenção do acusado no momento em que registrou o boletim de ocorrência foi de denunciar um crime de furto – tendo como sujeito ativo I. D. T. de A. –, ou apenas de registrar o fato ocorrido – uso do veículo sem sua autorização.

Para a configuração do crime de denunciação caluniosa, é necessário que o ato praticado pela vítima seja definido como crime, e que o sujeito ativo tenha inequívoca certeza de que a vítima é inocente e, ainda, o dolo, consistente na intenção de provocar investigação policial.

Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt, esclarece:

[...] a existência de boa-fé é suficiente para afastar o dolo no crime de denunciação caluniosa; quando o agente, por exemplo, acredita sinceramente na verdade dos fatos, na licitude dos fins, há uma oposição ao dolo. Em outros termos: a verdade subjetiva do agente elimina o dolo da imputação. Consequentemente, se houver erro escusável ou invencível de parte do agente, não existirá denunciação caluniosa. Na verdade, o elemento subjetivo que compõe a estrutura do tipo penal assume importância transcendental na definição da conduta típica. É por meio do animus agendi que se consegue identificar e qualificar a atividade comportamental do agente. Somente conhecendo e identificando a intenção – vontade e consciência – do agente se poderá classificar um comportamento como típico.

Ademais, cabe ressaltar que o indivíduo que se sentir injustiçado ou sob algum constrangimento ilegal, não o tendo divulgado publicamente, apenas com o ensejo de buscar seu direito de cidadão ofendido, desprovido de animus offendendi ao relatar os fatos perante a autoridade competente, o faz no pleno exercício do direito de petição, ato que não configura infração penal.

Infere-se ainda que o crime de denunciação caluniosa possui como caráter fundamental a espontaneidade, que se caracterizará pela iniciativa exclusiva do denunciante. Porém, não se pode excluir a possibilidade de ter sido o acusado induzido no momento do registro do Boletim de Ocorrência. Como se infere da certidão de fl. 41, o acusado apenas negou que teria dado autorização à I. para utilizar seu veículo, não havendo como se concluir que sua intenção era de imputar falsamente a prática de crime a terceiro.

O dolo direto configura elemento subjetivo geral do crime de denunciação caluniosa, não havendo modalidade culposa para este delito, uma vez, para a tipificação do crime, é imprescindível a constatação do ato de "dar causa" à investigação criminal, juntamente com a vontade consciente e espontânea do agente. Sendo assim, não havendo sustentação probatória suficiente da conduta voluntária e de má-fé do acusado ao registrar o boletim de ocorrência com intenção de informar crime de furto, verifica-se a ausência do dolo direto, e, por consequência, a não configuração da infração penal.

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em recente julgado, assim decidiu:

APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA. DENUNCIAÇÃO CALUNIOSA (ART. 339, CAPUT, DO CÓDIGO PENAL). SENTENÇA CONDENATÓRIA. RECURSO DA DEFESA. PLEITO ABSOLUTÓRIO. CABIMENTO. AUSÊNCIA DE INSTAURAÇÃO DE PROCEDIMENTO DE INVESTIGAÇÃO CRIMINAL, ELEMENTO OBJETIVO INDISPENSÁVEL PARA A CONFIGURAÇÃO DO TIPO PENAL. ADEMAIS, DOLO NÃO EVIDENCIADO, ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL. FATO ATÍPICO. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. "Para a configuração do ilícito descrito no art. 339, caput, do Código Penal, mostra-se necessário que o agente, ao imputar a alguém sabidamente inocente determinada prática criminosa, dê causa à instauração de investigação de uma autoridade, seja esta administrativa ou policial, ou, ainda, faça nascer uma ação civil ou penal em face da pessoa denunciada. Assim, na hipótese em que o registro de boletim de ocorrência policial não dá causa à deflagração de inquérito ou de qualquer outro procedimento criminal em desfavor do indivíduo denunciado, não se configura o aludido crime, afigurando-se atípica a conduta em questão" (Apelação Criminal n. 2013.076366-9, de Videira, rel. Des. Paulo Roberto Sartorato, Primeira Câmara Criminal, j. 10-12-2013). HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS PELO OFERECIMENTO DAS RAZÕES RECURSAIS. DEFENSOR DATIVO. INVIABILIDADE. VALOR ARBITRADO EM SENTENÇA. VERBA QUE ABRANGE ATUAÇÃO EM SEGUNDO GRAU. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (Apelação Criminal n. 2014.084986-9, de Lages, rel. Des. Marli Mosimann Vargas, j. 06-10-2015) grifou-se.

Desta forma, verifica-se que o fato praticado pelo acusado não configura a conduta típica do art. 339 do Código Penal, restando a absolvição nos termos do art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

III – Dispositivo.

Por tais razões, JULGO IMPROCEDENTE a denúncia de fls. 59-60 para ABSOLVER o acusado G. S., já qualificado nos autos, da imputação do crime descrito no art. 339 do Código Penal, com base no art. 386, inciso III, do Código de Processo Penal.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Transitada em julgado, arquivem-se.

Florianópolis (SC), 01º de fevereiro de 2016.

Alexandre Morais da Rosa Juiz de Direito


Imagem Ilustrativa do Post: "Obscured," You Say? // Foto de: David Goehring // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/carbonnyc/4626771086/in/photostream/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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