1. Aspectos jurídicos gerais
A vacina configura um direito fundamental, que se insere no contexto do direito à saúde previsto nos artigos 196 e seguintes da Constituição da República Federativa do Brasil.
Se é um direito fundamental isso tem inúmeras conseqüências, como a necessidade de uma atuação positiva do Estado, no sentido de promover e fomentar a aquisição, a distribuição e a aplicação das vacinas.
Portanto, a omissão do Estado na adoção de providências destinadas a inibir a propagação do vírus configura negação da Constituição e violação à cláusula de vedação de proteção insuficiente (decorrente da proporcionalidade prevista no artigo 5º, inciso LIV, da Constituição) e permite a judicialização voltada a cobrar dos entes públicos a promoção e a prevenção do Direito à Saúde (individual e coletivo), bem como a responsabilização dos agentes públicos omissos.
2. Judicialização da vacina.
O tema da vacinação obrigatória não é recente. Já existia no STF ação sobre a questão. Em outro texto publicado no site Empório do Direito[1], denominado tratamentos sanitários obrigatórios, já se sustentou a possibilidade da vacinação como instrumento previsto no artigo 196 da Constituição ao consagrar que as políticas públicas devem visar “à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”
A própria Lei 13.979/2020, no artigo 3º, fixa a obrigatoriedade do uso da vacina como instrumento de combate à pandemia.
A questão aqui é de natureza coletiva, ou seja, vacinar significa tutelar coletivamente a população com a redução capacidade migratória do vírus e a diminuição da transmissão.
Durante a pandemia, houve a centralização no STF da questão atinente à vacinação contra a Covid-19.
E algumas ações foram propostas na aludida Corte de Justiça.
Na repercussão geral julgado no ARE 1267879 foi fixada a seguinte tese:
“É constitucional a obrigatoriedade de imunização por meio de vacina que, registrada em órgão de vigilância sanitária, tenha sido incluída no plano nacional de imunizações; ou tenha sua aplicação obrigatória decretada em lei; ou seja objeto de determinação da União, dos estados, do Distrito Federal ou dos municípios com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar”.
Além disso, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587 o STF fixou outras teses:
(I) A vacinação compulsória não significa vacinação forçada, facultada a recusa do usuário, podendo, contudo, ser implementada por meio de medidas indiretas, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares, desde que previstas em lei, ou dela decorrentes, e tenham como base evidências científicas e análises estratégicas pertinentes, venham acompanhadas de ampla informação sobre a eficácia, segurança e contraindicações dos imunizantes, respeitem a dignidade humana e os direitos fundamentais das pessoas; atendam aos critérios de razoabilidade e proporcionalidade; e sejam as vacinas distribuídas universal e gratuitamente.
(II) Tais medidas, com as limitações expostas, podem ser implementadas tanto pela União como pelos estados, pelo Distrito Federal e pelos municípios, respeitadas as respectivas esferas de competência[2]. [grifado]
Ou seja, basicamente, tem-se a possibilidade de vacinação compulsória – não forçada – com a possibilidade de sanções para quem se recusar. Além disso, o STF consagrou novamente a competência de todos os entes da federação para atuar no combate à pandemia e fomentar a vacinação.
2.1. Sobre a aquisição das vacinas
O STF também atua no controle da gestão das aquisições e no cronograma de vacinação. Tudo acontece na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 756.
Nesta ação postula-se ao STF que haja obrigação estatal em vacinar as pessoas, sem vinculação a questões políticas ou ideológicas.
A questão principal é que não se tinha uma ação positiva e vinculante do Executivo Federal na criação e definição de uma política nacional de vacinação.
O STF passou a controlar isso, com a finalidade de cumprir a Constituição, considerando a vacina como um direito fundamental.
Sobre isso, importa anotar que a pandemia da Covid-19 é uma grande escola para aqueles que duvidavam da participação do Poder Judiciário na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS.
Infelizmente, a situação brasileira trouxe uma conclusão muito clara e objetiva: o Poder Judiciário também é gestor da saúde brasileira.
2.2. Sobre a judicialização do futuro
Em relação à vacina poderão surgir ações judiciais tratando de reembolso por custeio de vacina ou até mesmo a obrigação de fazer.
Além disso, também há a discussão sobre as compras privadas de vacinas, sobre a validade jurídica e a possibilidade de requisição pelos entes públicos da federação e também a definição do respectivo valor.
Além disso, eventuais omissões ou excessos dos agentes públicos poderão ser investigados em ações de improbidade administrativa e também em ações criminais.
E o STF já fixou um parâmetro muito importante para as ações de responsabilidade decorrentes da má gestão da pandemia. No julgamento das ADIs 6421, 6422, 6424, 6425, 6427, 6428 e 6431 a Corte assentou que não aplicar a ciência configura erro grosseiro.
Como regra, os magistrados devem aplicar a Recomendação 66/2020 do Conselho Nacional de Justiça e sugere autocontenção no julgamento das questões relacionadas à pandemia. Contudo, havendo negação da ciência (erro grosseiro), nos termos definidos pelo STF, será possível a responsabilização pessoal dos gestores.
Inclusive é interessante observar que durante a pandemia houve fomento estatal ao uso off label de alguns medicamentos, como a ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina para tratamento contra a Covid-19.
No plano da relação entre o médico e o paciente o uso off label é autorizado pelo Código de Ética Médica do CFM, diante da responsabilidade civil e criminal do médico prescritor.
Diferente é o fomento estatal. Se não há evidência científica, não há legalidade na prática. Até porque o uso off label, nestes casos, trouxe consequências negativas para o usuário e benefícios positivos para a indústria farmacêutica.
É que os efeitos colaterais poderiam prejudicar pessoas cardíacas, inclusive com danos graves. De outro lado, houve a explosão da fabricação e venda destes medicamentos – adquiridos como “tratamento precoce” – no patamar de 800% durante a pandemia[3].
Por isso é possível inclusive a deflagração de investigação para averiguar se o fomento estatal ao uso off label destes medicamentos também tinha alguma outra finalidade, além da política e ideológica, como a econômica (para quem patrocinou o incentivo e/ou para a indústria).
Ou seja, a investidura no cargo público, seja pela via política ou estatutária, não isenta o agente público das responsabilidades pelos atos que pratica e caberá ao Sistema de Justiça aplicar as penas àqueles que negaram as ciências durante a pandemia.
2.3. Vacinação privada
Sobre este tema, é importante destacar que os contratos celebrados entre adquirente e distribuidor/alienante são de difícil execução.
É que a legislação (Lei 8080/90 e Lei 13.979/20) prevê que o Estado pode requisitar “bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas”.
Então, diante da escassez dos insumos e da própria vacina é muito provável que o Estado (União, Estados ou Municípios) requisite as vacinas quando da sua chegada no território nacional.
E se não o fizer na via administrativa, muito provavelmente o STF determinará a aquisição.
Portanto, os contratos particulares são de difícil execução no curto e no médio prazo.
Notas e Referências
[1] SCHULZE, Clenio Jair. Tratamentos sanitários obrigatórios. Empório do Direito. 16 Mar. 2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/tratamentos-sanitarios-obrigatorios. Acesso em: 05 Fev. 2021.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Plenário decide que vacinação compulsória contra Covid-19 é constitucional. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1. Acesso em: 05 Fev. 2021.
[3] SCARAMUZZO, Mônica. Venda de remédios do ‘kit covid’movimenta R$500 mi em 2020. Valor Econômico. 05 Fev. 2021, p. B1.
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