Reflexões acerca da violência contra às “amantes” no Brasil

01/03/2017

Por Luanna Tomaz de Souza – 01/03/2017

Aproveitando esse clima de carnaval, é de grande importância discutirmos questões como a democratização dos afetos e dos relacionamentos, principalmente ao lidarmos com tantos casos de violência. Um aspecto em especial me chama atenção: o grande número de casos de violência contra mulheres por supostamente serem “amantes”.

Não se trata aqui de justificar os relacionamentos extraconjugais, mas refletir acerca dos padrões de moralidade social que ainda sustentam a visão da “mulher má e sedutora”, alimentados pelo machismo e pelo preconceito de gênero no intuito de justificar a violência essas mulheres. Isso sem contar que muitas vezes todo esse preconceito termina deixando-a sem espaço de assistência e proteção quando sofre alguma violência, pois muitas vezes é tão julgada, até mesmo pela rede de atendimento, que desiste de responsabilizar quem a agrediu.

Só neste início de ano, vários casos de agressões foram noticiados como o de uma mulher de 32 anos que agrediu uma estudante de 17 anos, em Porto Velho (RO)[1]; o de uma mulher que torturou e expôs uma outra nua pela rua, em Cubatão (SP)[2]; e o de uma mulher que tocou fogo na casa de outra, em Novo Aripuanã (AM), atingindo sete pessoas, inclusive uma criança de dois anos que morreu[3].

O ódio disseminado às amantes está longe de ser novidade e pode ser percebido, por exemplo, em um grande número de músicas, como a recente “Amante Não Tem Lar”, cantada por Marília Mendonça, que alimenta a ideia da “mulher destruidora de lares”:

E o preço que eu pago É nunca ser amada de verdade Ninguém me respeita nessa cidade Amante não tem lar Amante nunca vai casar

Esse assunto ainda se torna tabu em uma sociedade moralista que vilaniza mulheres, responsabilizadas pelo insucesso dos relacionamentos de terceiros. Mirian Goldenberg[4] conseguiu brilhantemente abordar essa questão em diversos estudos. A autora ouviu diversos sujeitos para analisar a construção identitária dessas mulheres que ainda trafegam por polarizações como “puta” e “santa”, “a oficial” e “a outra”. Percebe-se nos depoimentos colhidos pela autora, que os padrões de relacionamento impostos pela sociedade nem sempre se amoldam nas expectativas sociais, fazendo com que as pessoas busquem formas alternativas de felicidade. Muitas mulheres entrevistadas, por exemplo, afirmavam acreditar ser mais felizes que “as titulares”.

Para Jurandir Freire Costa[5], ao longo do tempo, o amor foi colocado numa posição idealizada, tomando uma aura perfeita e eterna. Como ninguém consegue preencher a contento tais papéis e funções, as expectativas são sempre frustradas e o resultado é a oscilação entre a total descrença na possibilidade de amar e um culto cego a um romantismo idealizado.

Em um momento em que se discute tão intensamente questões como direitos humanos, democracia, cidadania e diversidade, não se pode mais conceber que mulheres sejam agredidas, torturadas, mortas por mulheres que acreditam que elas são as responsáveis pelo fato de seus companheiros terem desrespeitado acordos afetivos estabelecidos. Isso sem contar casos de homens que agridem essas mulheres contando com o desprezo social, como os do goleiro Bruno que matou uma mulher com quem tinha um relacionamento extraconjugal depois que ficou grávida e reiteradamente atacava sua imagem social dizendo que a conheceu em uma orgia[6].

Cabe ressaltar que a prática do adultério era capitulada como crime no Direito Penal Brasileiro até o advento da Lei n. 11.106/2005. Antes disso, a conduta esteve em várias legislações, como as Ordenações Filipinas, aplicada no Brasil colonial, que previam a pena de morte para a adultera. Historicamente era somente a conduta da mulher que terminava sendo punida. O Código Penal Brasileiro de 1890 fazia expressamente a diferença ao punir a adúltera com a pena de prisão celular de um a três anos, sendo que a pena somente se aplicava ao marido se este mantivesse uma concubina “teúda e manteúda”, ou seja, caso sustentasse uma amante, não havendo crime no caso de relações fortuitas[7].

Na atualidade, além da conduta de adultério não configurar mais crime, em âmbito cível, cada vez mais os tribunais têm reconhecido o direito das mulheres que tiveram relacionamentos extraconjugais em ter acesso à pensão, partilha de bens, dentre outros direitos[8].

Reconhecer no outro os direitos sexuais, inclusive de liberdade e igualdade, é o passo fundamental para ampliar nossa frágil democracia, ampliando o respeito às individualidades e à busca da felicidade. É necessário caminhar no sentido de impedir a violência contra qualquer mulher, até mesmo essas, duramente cobradas socialmente por sustentar relacionamentos extraconjugais em uma sociedade que ainda acredita que somente o homem pode ser infiel ou que se ele mantém uma relação fora do casamento é porque foi “seduzido”.

Esse assunto deve ser trabalhado também dentro dos movimentos feministas, que historicamente preocuparam-se mais com algumas pautas, ignorando a violência contra algumas mulheres, como as genis do cotidiano. Defender a democratização dos afetos é reconhecer que as pessoas têm o direito de livremente criar relacionamentos sexuais e amorosos, bem como de desfazê-los, mas, jamais, através dos mesmos, promover violência e crueldade, seja contra quem for.


Notas e Referências:

[1] Disponível em: http://www.rondoniagora.com/policia/mulher-espanca-suposta-amante-do-marido-na-saida-de-escola-e-acaba-presa. Acesso em 27 fev. 2017.

[2] Disponível em: http://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2017/01/mulher-que-exibiu-amante-do-marido-nua-em-sp-desabafa-estou-nem-ai.html. Acesso em 27 fev. 2017.

[3] Disponível em: http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2017/02/crianca-de-2-anos-morre-apos-mulher-atear-fogo-em-casa-no-interior-do-am.html. Acesso em 27 fev. 2017.

[4] GOLDENBERG, Mirian. A Outra: um Estudo Antropológico sobre a Identidade da Amante do

Homem Casado. Rio de Janeiro: Record, 1990.

[5] COSTA,Jurandir Freire. Sem fraude, nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

[6] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1UBnyxUT6bU. Acesso em 28 fev. 2017.

[7] ICIZUKA, Atilio de Castro; ABDALLAH, Rhamice Ibrahim Ali Ahmad. A trajetória da descriminalização do adultério no direito brasileiro: uma análise à luz das transformações sociais e da política jurídica. Revista Eletrônica Direito e Política, Itajaí, v.2, n.3, 3º quadrimestre de 2007. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791

[8] Disponível em: http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/06/amantes-podem-pedir-divisao-de-pensao-com-esposa-decide-justica.html. Acesso em 27 fev. 2017.


Luanna Tomaz de Souza. Luanna Tomaz de Souza é Doutora em Direito (Universidade de Coimbra). Professora de Direito Penal da Universidade Federal do Pará (UFPA) e da Universidade da Amazônia (UNAMA). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Direito Penal e Democracia e da Clínica da Atenção à Violência da UFPA. Autora do livro: “Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha”.


Imagem Ilustrativa do Post: Chuva no rosto // Foto de: Américo Meira // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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