RACISMO RECREATIVO E SUA CRIMINALIZAÇÃO

23/02/2023

A criminalização expressa do racismo recreativo se deu com a vigência da recente Lei n. 14.532, de 11 de janeiro de 2023, que alterou a Lei n. 7.716/89 e o Código Penal.

O termo "racismo recreativo" é usado para se referir a ações ou comportamentos que, de forma consciente ou inconsciente, perpetuam estereótipos e preconceitos raciais, em um contexto que supostamente seria de "diversão" ou "brincadeira".

Por exemplo, piadas que ridicularizam pessoas de determinada raça, cor, etnia ou procedência nacional, comentários jocosos sobre sua aparência física, criação de estereótipos negativos, veiculação de caricaturas racistas, dentre outras formas de exteriorização.

A rigor, são comportamentos que desrespeitam ou humilham pessoas de determinada raça, cor, etnia ou procedência nacional.

O racismo recreativo é uma prática discriminatória que muitas vezes é vista como "inofensiva" ou "brincadeira", mas que pode ter graves consequências para as vítimas. Embora possa parecer inofensivo ou engraçado para alguns, contribui para a marginalização e opressão de grupos étnicos e raciais historicamente discriminados, podendo causar sofrimento e desconforto a pessoas que são alvo dessas ações, além de reforçar uma cultura de exclusão e desrespeito.

O racismo recreativo já vinha sendo objeto de estudos no Brasil e no mundo, sendo, entretanto, incluído expressamente na legislação brasileira apenas mais recentemente, com a vigência da mencionada Lei n. 14.532/23.

Sempre temos o cuidado de mencionar, em nossas palestras e aulas sobre crimes de intolerância e discriminação, a inestimável contribuição, para a análise do tema, do psicólogo norte-americano Gordon Willard Allport (1897-1967), conhecido por suas contribuições para a psicologia da personalidade, da atitude e do preconceito. Allport nasceu em Indiana, nos Estados Unidos, em uma família de intelectuais, e estudou na “Harvard University”, onde se formou em psicologia e posteriormente fez seu doutorado.

Além de ser considerado um dos principais teóricos da personalidade do século XX, tendo desenvolvido várias teorias e conceitos importantes na área, Allport também é conhecido por seu trabalho no estudo da atitude e do preconceito, tendo sido um dos primeiros psicólogos a estudar o preconceito de forma sistemática, desenvolvendo a chamada Escala de Allport, que mede o grau de preconceito ou de intolerância de uma pessoa em relação a diferentes grupos sociais. Ele argumentou que o preconceito é uma atitude aprendida e que pode ser reduzido por meio da educação e da exposição a diferentes grupos sociais.

Em sua mais famosa obra “The Nature of Prejudice”, publicada em 1954, Allport expôs a sua escala, que avalia uma série de declarações, que variam de acordo com o grau de preconceito expresso. As respostas dos indivíduos a essas declarações são pontuadas e, a partir disso, é possível avaliar o nível de preconceito que uma pessoa tem em relação a determinado grupo.

A escala de Allport foi criada para medir preconceitos em relação a grupos étnicos, mas também pode ser utilizada para avaliar atitudes preconceituosas em relação a outras categorias, como gênero, orientação sexual, religião, entre outras.

É um importante instrumento que permite avaliar o grau de preconceito em uma população, auxiliando no desenvolvimento de intervenções e políticas públicas para a promoção da igualdade e do respeito às diferenças. Porém, é importante destacar que a escala tem algumas limitações, como a falta de sensibilidade para captar preconceitos mais sutis e internalizados.

A Escala de Allport é composta por cinco graus ou estágios de preconceito ou intolerância, que vão do menor ao maior grau.

A Antilocução é o estágio mais baixo da escala, caracterizado por falar mal de um grupo social, ou usar piadas e expressões preconceituosas. A nosso ver, aí estão inseridas as manifestações do racismo recreativo.

O segundo estágio é a Esquiva ou Evitação, em que se começa a evitar o contato com membros do grupo social em questão, por exemplo, evitando sentar-se perto deles ou frequentar os mesmos lugares.

O terceiro estágio é a Discriminação, em que se passa a promover ativamente a segregação de membros do grupo social, negando-lhes empregos, serviços ou oportunidades, tratando-os de forma injusta ou criando instituições que desfavoreçam o grupo minoritário, como no caso dos regimes de “apartheid”.

O Ataque Físico ou Violência é o quarto estágio, em que se passa a empregar a violência física contra membros do grupo social, seja de forma individual ou em grupos organizados, ou ainda vandalizando coisas do grupo minoritário, como, por exemplo, a queima de propriedades.

Por fim, o Extermínio ou Genocídio é o estágio mais alto da escala, caracterizado por uma política de extermínio de um grupo social, que pode incluir assassinatos em massa, campos de concentração e outras formas de perseguição sistemática.

A situação em graus mais baixos na escala pode desencadear a passagem a graus mais altos, daí a importância da detecção do nível de intolerância para que se possa evitar a ascensão perniciosa a patamares mais preocupantes.

Voltando à análise da Lei nº 14.532/23, vale ressaltar que a injúria racial foi deslocada do art. 140, §3º, do Código Penal, para o art. 2º-A da Lei n. 7.716/89, com o seguinte teor:

“Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.

Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”

Por conseguinte, assim ficou a redação do art. 140, §3º, do Código Penal:

“Art. 140 (...)

  • 3º Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência:

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.”

Assim agindo, o legislador passou a considerar a injúria racial como uma forma de racismo, na esteira do que já havia decidido o Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 154.248, da relatoria do Min. Edson Fachin, em 28/10/2021 (publicação em 23/02/2022), cominando-lhe pena mais severa, que passou a ser de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Com relação ao racismo recreativo, a nova Lei n. 14.532/23 inseriu o art. 20-A na Lei n. 7.716/89, aumentando de 1/3 (um terço) até a metade os crimes de preconceito e discriminação nela previstos, “quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação.”

Portanto, a referida causa de aumento de pena será aplicada a qualquer dos crimes previstos na Lei n. 7.716/89, incluída a injúria racial, fazendo com que, ainda que por meio de punição mais severa, sejam impostas vedações a piadas, brincadeiras e todos os tipos de manifestação humorística, qualquer que seja a forma de veiculação, por qualquer meio de comunicação (televisão, rádio, publicações etc), seja em meio físico ou virtual/digital (“internet”, redes sociais, aplicativos de mensagens etc).

Por fim, é importante lembrar que o racismo recreativo, mesmo quando praticado de forma "inocente" ou "brincalhona", é uma violação dos direitos humanos e pode ter graves consequências para as vítimas. É fundamental que as autoridades e a sociedade como um todo trabalhem juntas para combater todas as formas de discriminação racial e garantir que todos sejam tratados com igualdade e respeito.

 

 

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