Por Fernando César Costa Xavier – 17/06/2017
No último dia 03 de junho, no concurso para o cargo de Promotor de Justiça Substituto do Ministério Público do Estado de Roraima, organizado pelo CESPE, houve uma questão da prova objetiva que chamou a atenção de muitos candidatos. No seu enunciado, constava o seguinte: "Em uma aldeia indígena, um índio cometeu homicídio contra outro índio e, por tal fato, ele foi julgado e condenado por conselho dessa aldeia, razão por que, atualmente, se encontra cumprindo a pena que lhe foi imposta. Acerca dessa situação hipotética, assinale a opção correta à luz do entendimento do TJ/RR".
Em verdade, a situação descrita no enunciado não seria tão hipotética assim. Assemelha-se, em muito, com um interessante precedente julgado pelo Tribunal de Justiça de Roraima em dezembro de 2015: o chamado caso Denilson[1]. Ocorrido em junho de 2009, na comunidade indígena do Manoá, terra indígena Manoá/Pium (na Serra da Lua, município de Bonfim, Roraima), esse caso diz respeito a um homicídio em que um indígena, após consumir bebida alcoólica, matou esfaqueado um irmão seu, também indígena. Tal como na situação apresentada no enunciado da questão, no caso Denilson o acusado e a vítima eram ambos indígenas, e o fato criminoso ocorreu dentro de uma terra indígena.
Em casos assim, que envolvem crime praticado por índio contra índio em terra indígena, o Poder Judiciário roraimense reconheceu à comunidade indígena o direito de julgar o fato e de aplicar formas próprias de punição, em detrimento do sistema de justiça penal estatal.
Contudo, houve divergência entre a Primeira Instância e a Segunda acerca dos fundamentos pelos quais deveria ser afastada a jurisdição estatal nos casos em que a comunidade julgasse e punisse, ela própria, um indígena infrator. Evidenciaram-se no exame judicial do caso as duas teses seguintes:
1) Tese do Duplo Jus Puniendi: O direito de punir crimes seria compartilhada entre o Estado e a comunidade nos casos de crimes entre índios dentro de terra indígena. Seriam sistemas de justiça paralelos e independentes: o comunitário (da comunidade indígena) e o estatal, com precedência para o primeiro. Operando o sistema comunitário, o estatal se tornava inoperável. Não haveria que se cogitar da possibilidade de 'bis in idem' neste caso, pois o poder de punir seria reconhecido sempre para apenas um sistema ou um ente (comunidade ou Estado). Essa foi a tese acolhida em Primeira Instância, pela qual o juiz Aluizio Ferreira Vieira julgou extinta a pretensão punitiva do Estado.
2) Tese do Non Bis in Idem: O direito de punir crimes seria sempre monopólio do Estado, porém ele poderia autorizar em certos casos que outros entes exercessem aquele poder, como as comunidades indígenas em casos de crimes entre índios em terras indígenas. O sistema penal comunitário (indígena) não seria paralelo ao sistema estatal, e sim subordinado a ele, tendo que respeitar a Constituição e as leis do Estado. O sistema comunitário somente operaria se o ente estatal o autorizasse, sendo sempre possível a investigação de notitia criminis pela polícia ou pelo Ministério Público. Em sendo observados limites legais e constitucionais, a comunidade teria prerrogativa para julgar e eventualmente aplicar punições por infrações contra os seus em suas terras, sendo, em todo caso, inafastável a jurisdição estatal. Porém, se esta constatasse uma punição já feita pela comunidade, dentro dos limites da lei, teria que considerar a coisa julgada, bem assim que o acusado não poderia ser julgado novamente (non bis in idem). Essa foi a tese acolhida em Segunda Instância, pelo Des. Mauro Campello (relator) para julgar improcedente o recurso de apelação e manter a decisão monocrática.
A despeito dessas teses estabelecidas, haveria também uma outra, que é tanto normativa (como deveriam ser julgados casos análogos) quanto descritiva (como são julgados casos análogos).
3) Tese da Jurisdição Comunitária Exclusiva: O direito de punir nos casos de crimes entre índios dentro de terra indígena seria exclusiva da comunidade indígena concernida. O sistema penal comunitário teria uma fonte de legitimação própria (não estatal), e a Constituição brasileira, no seu art. 231, permitiria interpretar que o crime em comunidade indígena envolvendo índios seria um fato "estrangeiro", juridicamente irrelevante para o Estado. A principal diferença entre as teses anteriores e esta, é que, naquelas, se a comunidade não submete a julgamento um fato criminoso, o Estado pode subsidiariamente agir, e, nesta terceira tese, se a comunidade não julgar, o Estado nada poderá fazer, pois a jurisdição penal é exclusiva da comunidade. A propósito, essa tese seria, a meu ver, a única compatível com a ideia de pluralismo jurídico, pois suporia que coexistem em um mesmo território nacional sistema jurídicos efetivamente autônomos.
Embora ainda distante de ser formalmente reconhecida pelo Judiciário, essa terceira tese parece corresponder ao que já se verifica em algumas situações, como nos fatos típicos ocorridos em comunidades indígenas isoladas, ou nos casos de "infanticídio" indígena e de estupro de vulnerável em comunidades relativamente integradas. Nessas situações, parece que a apreciação "judicial" do caso é reservada à própria comunidade, e, em não havendo por parte dela qualquer punição, as autoridades estatais costumam considerar o caso resolvido.
Notas e Referências:
[1] TJRR, Apelação Criminal º 0090.10.000302-0, Câmara Única, Turma Criminal, Rel. Des. Mauro Campello, julgado em 18.12.2015.
. Fernando César Costa Xavier é doutor em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia (UnB) e professor do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Roraima (UFRR). E-mail: fxavier010@hotmail.com. . .
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