Em recente decisão proferida nos autos do HC 653515/RJ, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, por maioria de votos, entendeu que a violação da cadeia de custódia não implica, de maneira obrigatória, a inadmissibilidade ou a nulidade da prova colhida. No caso concreto, ao conceder o “habeas corpus” e absolver o acusado do crime de tráfico de drogas, o Tribunal entendeu que eventuais irregularidades devem ser observadas pelo juízo ao lado dos demais elementos produzidos na instrução criminal, a fim de decidir se a prova questionada ainda pode ser considerada confiável. Somente após essa confrontação é que o magistrado, caso não encontre sustentação na prova cuja cadeia de custódia foi violada, pode retirá-la dos autos ou declará-la nula.
Vale lembrar que a chamada “cadeia de custódia” foi inserida no Código de Processo Penal, pela Lei n. 13.964/19 (Lei Anticrime), que, no art. 158-A, a conceituou e disciplinou todos os aspectos e etapas dessa importante forma de garantia da integridade da prova e de seu correto manuseio e tratamento.
De acordo com o disposto no referido dispositivo, considera-se cadeia de custódia o conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte.
O interessante é que a lei não se refere a cadeia de custódia de “prova”, como seria de se esperar, mas sim a cadeia de custódia de “vestígio” coletado em locais ou em vítimas de crimes. “Vestígio”, segundo a lei, é todo objeto ou material bruto, visível ou latente, constatado ou recolhido, que se relaciona à infração penal.
A relevância do assunto é imensa e impacta profunda e diretamente na maioria dos aspectos de comprovação da materialidade dos crimes.
Não obstante ter sido introduzida em nosso ordenamento processual penal apenas em 2019, a cadeia de custódia já vinha sendo estudada e tratada por diversos órgãos encarregados das perícias oficiais no País, a ponto de a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça – SENASP, por intermédio da Portaria n. 82, de 16 de julho de 2014, já ter estabelecido anteriormente algumas diretrizes sobre os procedimentos a serem observados no tocante à cadeia de custódia de vestígios, praticamente reproduzidas pela Lei Anticrime.
A importância de haver uma regulamentação de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte, se verifica também em outros países, tendo alcançado notoriedade a partir do incremento da valoração da prova pericial nas cortes dos Estados Unidos.
Em interessante estudo publicado pelo “National Center for Biotechnology Information”, dos Estados Unidos, os pesquisadores Ashish Badiye, Neeti Kapoor e Ritesh G. Menezes ressaltam que: “The chain of custody is the most critical process of evidence documentation. It is a must to assure the court of law that the evidence is authentic, i.e., it is the same evidence seized at the crime scene. It was, at all times, in the custody of a person designated to handle it and for which it was never unaccounted. Although it is a lengthy process, it is required for evidence to be relevant in the court. The continuity of possession of evidence or custody of evidence and its movement and location from the point of discovery and recovery (at the scene of a crime or from a person), to its transport to the laboratory for examination and until the time it is allowed and admitted in the court, is known as the chain of custody or chain of evidence.”
Ao tratar da relevância da documentação da cadeia de custódia, os pesquisadores destacam que: “The documentation of the chain of custody serves three primary purposes; to ask relevant questions regarding the evidence to the analytical laboratory, to maintain a record of the chain of custody, and to document that the sample/evidence was handled only by approved personnel and was not accessible for tampering before analysis. The investigator or the person responsible for collecting evidence must complete the labels of the sample container/bags and the chain of custody forms to enable tracking of the sample. Each sample container label must receive a unique identification code and other relevant information such as location, date and time of collection, the name, and signature of the person who collected the sample, and signature of the witness(es). It is vital that the evidence is appropriately packed to avoid damage during transport and must be preferably sealed in tamper-evident/resistant bags or with tamper-evident tapes.”
A nossa lei processual penal, outrossim, estabeleceu detalhadamente as etapas de rastreamento do vestígio na cadeia de custódia, que são:
I - reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial;
II - isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local de crime;
III - fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito, e a sua posição na área de exames, podendo ser ilustrada por fotografias, filmagens ou croqui, sendo indispensável a sua descrição no laudo pericial produzido pelo perito responsável pelo atendimento;
IV - coleta: ato de recolher o vestígio que será submetido à análise pericial, respeitando suas características e natureza;
V - acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, de acordo com suas características físicas, químicas e biológicas, para posterior análise, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta e o acondicionamento;
VI - transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas (embalagens, veículos, temperatura, entre outras), de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse;
VII - recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado com, no mínimo, informações referentes ao número de procedimento e unidade de polícia judiciária relacionada, local de origem, nome de quem transportou o vestígio, código de rastreamento, natureza do exame, tipo do vestígio, protocolo, assinatura e identificação de quem o recebeu;
VIII - processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada às suas características biológicas, físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito;
IX - armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado, com vinculação ao número do laudo correspondente;
X - descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, respeitando a legislação vigente e, quando pertinente, mediante autorização judicial.
Por fim, dentre outros detalhes, as disposições legais estabelecem que a coleta dos vestígios deverá ser realizada preferencialmente por perito oficial, que dará o encaminhamento necessário para a central de custódia, mesmo quando for necessária a realização de exames complementares. Nesse sentido, todos os Institutos de Criminalística deverão ter uma central de custódia destinada à guarda e controle dos vestígios, e sua gestão deve ser vinculada diretamente ao órgão central de perícia oficial de natureza criminal.
Imagem Ilustrativa do Post: Albert V Bryan Federal District Courthouse – Alexandria Va – 0011 – 2012-03-10 / // Foto de: Tim Evanson // Sem alterações
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