Qualificação do Bem Jurídico no Crime de Branqueamento de Capitais (Parte 2)

22/09/2016

Por Liliana Santo de Azevedo Rodrigues - 22/09/2016

Leia também a parte 1

2. Bem jurídico do crime precedente

No que diz respeito ao bem jurídico do crime precedente, importa ter em consideração alguns fatores. Inicialmente a criminalização do branqueamento de capitais começou por se relacionar apenas com as vantagens geradas pelo tráfico de drogas. Nesse sentido, defendeu-se que o bem jurídico tutelado seria a saúde pública. O objetivo do crime de branqueamento seria o de evitar que se facilite a prática de delitos prévios.

Porém, hoje este argumento parece-nos manifestamente insustentável na medida em que surgiram posteriormente outros crimes precedentes considerados suficientemente graves que em nada se identificam com o narcotráfico.

Alguns autores resolveram a questão dizendo que o bem jurídico deveria então ser o somatório de todos os bens jurídicos protegidos pelos crimes precedentes, de entre os que seriam susceptíveis de gerar lucro. No entanto, se assim fosse, seria criado um supertipo cuja atuação se iria verificar nas hipóteses de ineficácia de outro tipo penal, desvirtuando assim a própria ideia do tipo. Acresce a falta de identificação do bem jurídico tutelado em concreto uma vez que o agente que pratica o branqueamento não contribui necessariamente com a manutenção do ataque ao bem jurídico já lesionado ou posto em perigo pelo autor do crime precedente, pelo que, uma vez mais, o bem jurídico em causa deverá ser encontrado de forma autónoma.[1]

3. Bem jurídico: administração da justiça

É necessário recuar à origem da criminalização do crime de branqueamento e seu principal objetivo. Na realidade, com a crescente expansão da globalização é muito fácil colocar os proventos do crime longe do alcance das autoridades, dissimulando a sua origem. Por este motivo, o objetivo da tipificação do crime de branqueamento reside no fato de se pretender uma maior eficácia no combate a determinadas formas de criminalidade, nomeadamente as mais gravosas.

Jorge Godinho sublinha que o branqueamento de capitais não se apresenta como uma forma de proteção da economia, mas antes uma forma de evitar que a apreensão dos bens de origem ilícita se torne impossível, tendo em consideração a modernização dos circuitos econômico-financeiros atuais, que permitem ocultar ou dissimular a proveniência dos bens, colocando-os fora do alcance das autoridades e com isso, retirando-lhes eficácia na sua actuação.

Acrescenta o autor,[2]

“O tipo de crime de branqueamento de capitais deve ser formulado a partir do seu núcleo intencional, o resultado a que se dirige: a dissimulação da origem ilícita. O crime não deve ser centrado na descrição de operações materiais de conversão ou transferência de fundos, ou quaisquer outras operações ou transacções financeiras: não só a descrição teria de ser longe e ampla como na verdade não é essa a melhor perspectiva. Esta não capta a ilicitude característica, que não consiste meramente em movimentar fundos ou executar quaisquer outros actos da vida cotidiana de cariz económico-financeiro, mas sim em fazê-lo apenas e só quando essas condutas se dirigem a uma certa específica finalidade que tem que ver com a frustração do exercício da justiça.”

Manuel Gonçalves[3] defende a dualidade do bem jurídico protegido no crime de branqueamento de capitais. Para além da proteção de interesses econômicos e financeiros mencionados supra, entende que se deve considerar de igual forma:

 “a protecção da administração da justiça, uma vez que se torna incapaz de perseguir os responsáveis pelos crimes subjacentes em face da actuação do branqueador, desincentivando-se a prática dos crimes primários, consequência da perda alargada prevista em legislação própria.”

O mesmo autor acrescenta ainda que “ com a colocação do dinheiro em contas e sua circulação em inúmeras transacções internacionais visa-se apagar o rasto do mesmo e da sua origem, permitindo o seu investimento, quer na aquisição de bens, quer na aquisição de serviços.”

Também Jorge Duarte[4] entende que a tutela do branqueamento se identifica com a tutela de dois bens jurídicos. No domínio da ordem socioeconômica identifica como principais finalidades assegurar o normal funcionamento das estruturas do próprio Estado, assegurar o regular funcionamento das atividades comerciais e financeiras legítimas e assegurar a defesa da própria sociedade de uma forma de criminalidade que ameaça de forma sensível os próprios alicerces e estruturas base dessa mesma sociedade. Salienta em paralelo a administração da justiça como tutela do crime de branqueamento na medida que este crime é objeto de mecanismos que prejudicam gravemente a administração da justiça na investigação, identificação e punição dos agentes do crime precedente.

Pedro Caeiro[5] escreve que “a punição do branqueamento visa tutelar a “pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime”, ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na detecção e perda das vantagens de certos crimes.”

Após tecer as considerações de grandes doutrinadores portugueses, finalizamos o nosso raciocínio defendendo a posição do legislador português que tipificou o crime de branqueamento no seu artigo 369.º A com a 16.ª reforma ao Código Penal Português.[6] O crime encontra-se inserido na Parte Especial do CP no Capítulo III – Dos crimes contra a realização da justiça, do Título V – Dos crimes contra o Estado.

Somos da opinião que na determinação do bem jurídico seja fundamental ter em consideração a letra da lei pelo que consideramos que seja a administração (realização) da justiça.


Notas e Referências:

[1] Da opinião que se deve excluir o bem jurídico do crime precedente, cfr. CAEIRO, Pedro, A Decisão-Quadro do Conselho, de 26 de Junho de 2001, e a Relação entre a Punição do Branqueamento e o Facto Precedente: Necessidade e Oportunidade de uma Reforma Legislativa, in Separata de Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pp. 1082 ss.

[2] GODINHO, Jorge Alexandre Fernandes, Para uma Reforma do Tipo de Crime de “Branqueamento” de Capitais, in Direito Penal, Fundamentos Dogmáticos e Político Criminais, Homenagem ao Prof. Peter Hünerfeld, Coimbra Editora, 2013, pp. 995 ss.

[3] GONÇALVES, Manuel, As Especificidades do Crime Económico, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 22, n.º 3, julho-setembro, 2012, Coimbra Editora, pp. 418-419.

[4] DUARTE, Jorge Manuel Vaz Monteiro Dias, Branqueamento de Capitais, O Regime do DL 15/93, de 22 de Janeiro, e a Normativa Internacional, Publicações Universidade Católica, 2002, pp.91 ss.

[5] CAEIRO, Pedro, A Decisão-Quadro do Conselho …, op. cit., p. 1086.

[6] Lei n.º 11/2004, de 27 de Março.


Liliana Santo de Azevedo RodriguesLiliana Santo de Azevedo Rodrigues é Advogada na QBB Advocacia, inscrita na Ordem dos Advogados de Portugal e na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional Rio Grande do Norte (OAB – RN). Possui graduação e mestrado em Ciências Jurídico-Empresariais pela Universidade Portucalense (UPT) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Atualmente, cursa o Doutoramento em Ciências Jurídico-Criminais na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC). Investigadora da Instituto Jurídico Portucalense. Professora na Escola de Gestão e Negócios da Universidade Potiguar (UnP), na graduação em Direito na Faculdade Maurício de Nassau, na Faculdade Estácio de Natal e na Faculdade Natalense de Ensino e Cultura (FANEC)/Universidade Paulista (UNIP). Professora convidada de Pós-Graduação do Centro Universitário do Rio Grande do Norte (UniRN).


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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