Primeiras impressões sobre a responsabilidade civil das empresas desenvolvedoras e administradoras de aplicativos para chamar táxis

08/06/2016

Por Vitor Vilela Guglinski – 08/06/2016

1. INTRODUÇÃO

Um dos maiores desafios do Direito na contemporaneidade relaciona-se com o avanço, cada vez mais acelerado, das inovações produzidas com o uso da informática e da internet. O Direito avança em progressão aritmética; a tecnologia em progressão geométrica.

A cada dia que passa, novos aplicativos são desenvolvidos por diversas startups com vistas a proporcionar aos usuários da rede uma enorme variedade de utilidades e conveniências, bastando que o utente disponha de algum sistema operacional compatível com a utilização de aplicativos, normalmente desenvolvidos para os sistemas Android, iOS e Windows Phone, atualmente disponíveis em tablets e smartphones.

Nesse novo universo frequentemente repaginado em que vivemos, a questão envolvendo a responsabilidade civil dos operadores de aplicativos tem chamado o Judiciário a se pronunciar a tal respeito, uma vez que várias pessoas têm sido vítimas de quem utiliza tais serviços como instrumentos para a prática de ilícitos.

Até o momento em que escrevemos este texto, a maioria das notícias envolvendo a má utilização de aplicativos refere-se casos de intimidade e privacidade devassadas, em especial aqueles envolvendo o que se convencionou denominar revenge porn (pornografia de vingança), em que usuários da internet promovem a divulgação e circulação de fotos e vídeos íntimos. Em regra, tais ofensas são perpetradas por homens que, insatisfeitos com o fim de um relacionamento, exibem suas ex-parceiras durante o ato sexual ou fotografias delas nuas.

Contudo, a imprensa trouxe à lume uma nova situação envolvendo a utilização de aplicativos. Trata-se de um usuário do aplicativo 99Taxis (http://www.99taxis.com/), que alega ter sido agredido fisicamente por um taxista na cidade de São Paulo. No caso, a vítima relatou que chamou o taxi através do referido aplicativo, tendo especificado que pagaria a corrida com cartão de crédito. Entretanto, no momento do pagamento, o taxista disse que não receberia nessas modalidades, o que gerou discussão entre as partes. O cliente então saiu do taxi e, enquanto caminhava, foi seguido pelo taxista, que o espancou pelas costas (leia em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/08/jovem-acusa-taxista-de-ataque-apos-negar-pagamento-combinado-app.html).

Pois bem, as questões que desafiam debate são:

1. O Código de Defesa do Consumidor é aplicável ao caso?

2. Há responsabilidade civil por parte da empresa desenvolvedora/operadora do aplicativo pela agressão sofrida pelo usuário?

As indagações acima são, aparentemente, simples. Porém, o tema é complexo, seja pela vastidão do campo de aplicação do instituto da responsabilidade civil, seja pela ausência de referências doutrinárias e jurisprudenciais específicas.

Assim, buscar-se-á analisar, separadamente, cada uma das questões propostas, esclarecendo-se, desde já, que, como dito no título do artigo, trata-se de primeiras impressões sobre o tema, fundamentando-se o estudo em outras situações analisadas pela doutrina e jurisprudência, envolvendo serviços aparentemente gratuitos de internet, o que desafia reflexões mais aprofundadas pela comunidade acadêmica, especialmente por parte dos estudiosos da responsabilidade civil.

2. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

A respeito da aplicação do Código de Defesa do Consumidor a empresas operadoras de aplicativos dessa natureza, parece-nos que a resposta é positiva.

Em regra, para que um serviço se sujeite às regras do CDC, é necessário que seja remunerado, nos termos do § 2º do art. 3º do código, que dispõe, expressamente: “serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração...” (grifei).

Na esteira das melhores doutrina e jurisprudência, há serviços cuja remuneração nem sempre ocorre de forma direta, mas indiretamente. Ou seja, o fornecedor, ainda que não receba qualquer quantia diretamente do consumidor, aufere vantagens (não precisa ser necessariamente uma vantagem pecuniária) em razão de sua atividade.

Sobre o tema, leciona GARCIA:

“Segundo o artigo, estariam excluídas da tutela consumerista aquelas atividades desempenhadas a título gratuito, como as feitas de favores ou por parentesco (serviço puramente gratuito). Mas é preciso ter cuidado para verificar se o fornecedor não está tendo uma remuneração indireta na relação (serviço aparentemente gratuito). Assim, alguns serviços, embora sejam gratuitos, estão abrangidos pelo CDC, uma vez que o fornecedor está de alguma forma sendo remunerado pelo serviço” (GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: código comentado e jurisprudência. 7ª ed., Niterói: Impetus, 2011, p. 26).

No mesmo sentido, TARTUCE afirma que: “De início, cumpre esclarecer que, apesar de a lei mencionar expressamente a remuneração, dando um caráter oneroso ao negócio, admite-se que o prestador de serviço tenha vantagens indiretas, sem que isso prejudique a qualificação da relação consumerista” (TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito do Consumidor: direito material e processual. 3ª ed. São Paulo: Método, 2014, p. 98).

Por fim, para espancar qualquer dúvida sobre a possibilidade de remuneração indireta do fornecedor, merece registro a abalizada lição de CAVALIERI FILHO:

“O sistema protetivo do Código de Defesa do Consumidor afasta da incidência da lei os serviços não remunerados, fato que dá ensejo a equivocadas interpretações, uma vez que a remuneração pode se dar de maneira direta – quando o consumidor efetua o pagamento diretamente ao fornecedor – ou de maneira indireta – isto é, quando proporcionados benefícios comerciais indiretos ao fornecedor, advindos da prestação de serviços aparentemente gratuitos, visto que a remuneração já se encontra diluída e embutida em outros custos...” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Direito do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 77) [destaque do original].

Passando a exemplos, cite-se as ações reparatórias envolvendo a Google e blogs, em que o STJ vem reconhecendo que, apesar de fornecerem seus serviços gratuitamente aos internautas, são, no entanto, remuneradas indiretamente (vide REsp. nº 1.316.921/RJ e REsp. nº 1.192.208/MG).

Outro caso típico, embora haja divergência entre tribunais estaduais, diz respeito ao site Buscapé, havendo julgadores que admitem sua responsabilidade por danos ao consumidor e, de outro lado, aqueles que afastam sua responsabilização (vide Recurso Cível Nº 71004490157/TJSC e APL 90005105020078260506/TJSP).

Pesquisando-se a jurisprudência, parece-nos que o Judiciário tende a reconhecer a existência de relação de consumo, ainda que o serviço fornecido pelo provedor ou pela página seja gratuito para os usuários.

No caso em comento, o primeiro detalhe que deve ser observado é que o aplicativo em questão não se trata de um serviço destinado à hospedagem, tráfego ou propagação de conteúdo, isto é, não há o armazenamento de arquivos (vídeos, fotos, textos etc.), mas sim de um simples serviço cujo objetivo é aproximar passageiros e taxistas, de modo a agilizar a disponibilização de táxis aos usuários, ao mesmo tempo em que aqueles profissionais têm mais chances de captar clientes, e assim manter o táxi menos ocioso.

Sendo assim, s.m.j., aos aplicativos localizadores de taxis não deve ser dispensado o mesmo raciocínio jurídico levado a efeito nos casos envolvendo aplicativos destinados ao armazenamento de conteúdos. Em princípio, aquelas plataformas não armazenam dados para troca entre os usuários, propondo-se tão somente a localizar os táxis mais próximos do usuário, comunicando ao respectivo motorista que há um cliente nas proximidades, de modo que ele se desloque até o passageiro para realizar a corrida.

Resumidamente, num primeiro contato, parece-nos que o serviço oferecido pelos aplicativos para chamar táxis assemelha-se ao que é oferecido pelo site Buscapé, isto é, há tão somente uma aproximação do consumidor (passageiro) com o fornecedor (taxista).

Advirta-se, entretanto, que, com base nos julgados citados linhas atrás, o reconhecimento da responsabilidade civil dos operadores desse tipo de aplicativo pode variar conforme a corrente adotada pelo aplicador do direito. Isto é, se for entendido que a empresa operadora do aplicativo integra a cadeia de fornecimento, poderá ser responsabilizada por eventual vício, mas não por fato do serviço (acidente de consumo). Noutro giro, entendendo-se que o contrato de transporte é firmado diretamente com o motorista do táxi, fica afastada a responsabilidade da empresa que gerencia o aplicativo.

2.1. Vício do serviço

Inobstante, reforce-se a necessidade de se distinguir duas situações para que haja a incidência do CDC nos casos envolvendo aplicativos para chamar táxis; (i) a responsabilidade por eventual vício do serviço e (ii) a responsabilidade pela agressão sofrida pelo passageiro.

Ao se consultar o site da empresa 99Taxis é possível verificar que há duas “abas” para consulta que, caso seja adotada a tese da remuneração indireta do serviço, podem conduzir à aplicação do CDC, caso ocorra vício do serviço.

Na “aba” intitulada “Promoções” há um tópico denominado “Parceiros”. Ao acessá-lo, verifica-se que há um rol de empresas que oferecem benefícios para os passageiros que apresentarem aos respectivos estabelecimentos o “recibo 99Taxis”, tais como: chopp e cerveja grátis, descontos em tira-gostos, entrada gratuita no estabelecimento etc. De sua sorte, na aba denominada “Serviços” há a opção “Solução corporativa”, destinada a empresas, as quais, mediante remuneração mensal, pagam à 99Taxis para que sejam disponibilizados táxis para seus colaboradores, de maneira mais rápida e eficiente.

Desse modo, não há dúvidas de que o aplicativo em questão trata-se de um serviço prestado de forma profissional pela empresa, corroborando a tese de que a gratuidade é apenas aparente.

Ultrapassado esse esclarecimento, apenas para rememorar os conceitos de vício e fato do produto e do serviço, haverá vício quando o “defeito” apresentado pelo bem de consumo vier a atingir meramente a incolumidade econômica do consumidor, causando-lhe tão somente um prejuízo patrimonial. Nesse caso, diz-se que o dano é circa rem; possui natureza contratual.

No âmbito casuístico, os fatos, da forma como foram colocados, demonstram que o passageiro em questão fez a chamada do táxi usando o referido aplicativo. Segundo afirmou, no momento da chamada selecionou o cartão de crédito como forma de pagamento. Contudo, no momento do pagamento o motorista lhe informou que não receberia daquela forma, e então os fatos se desenrolaram da forma como exposta na reportagem citada.

Anote-se, por pertinente, que na página do aplicativo há um manual direcionado aos taxistas sobre como utilizar o aplicativo. Referido manual consta da “aba” denominada “Taxista”, e traz em seu bojo “Os 10 lemas dos taxistas 99 Taxis”. O 6º “lema” do taxista diz o seguinte: “Se o seu cadastro diz que você aceita cartão, não gere transtorno ao passageiro que quer pagar com cartão e não cobre taxas extras” (leia em: http://www.99taxis.com/manual-de-uso/).

Ora, na opinião deste autor, não há dúvidas de que houve, in casu, um vício do serviço, já que, no mínimo, houve uma falha de comunicação por parte do aplicativo, que, após disparar a chamada aos táxis mais próximos, ou não fez constar na comunicação que se tratava de um passageiro que pagaria a corrida com cartão de crédito ou, ainda que tenha feito constar tal informação na chamada, permitiu que ela chegasse a um taxista que não aceita tal forma de pagamento. De um modo ou de outro, houve falha de comunicação.

No entanto, quanto ao dano físico (fato do serviço) sofrido pela vítima, no nosso sentir a empresa não poderia ser responsabilizada pela agressão levada a efeito pelo taxista. E a razão para tanto está no fato de que, como dito, a garantia de segurança não está inserida nos riscos inerentes ao negócio de startups dessa natureza, como será detalhado adiante, caracterizando-se como fortuito externo.

2.2. CONCORRÊNCIA ENTRE APLICATIVOS 

Outro fato que chama a atenção é a existência de outros aplicativos de idêntica natureza à disposição dos usuários dos serviços de táxi. Um dos mais comuns é o Easy Taxi (http://www.easytaxi.com/br), cujo funcionamento é bastante assemelhado, havendo opções corporativas para empresas, descontos para clientes de determinada instituição financeira, vouchers promocionais etc.

Bem assim, fica evidente que existe concorrência entre aplicativos para chamar táxis, pois é possível identificar nos respectivos sites uma variedade de benefícios ofertados a usuários e empresas para que se decidam por esse ou aquele serviço, o que ajuda a sinalizar no sentido da aplicação do CDC a empresas dessa natureza.

3. RESPONSABILIDADE POR AGRESSÕES A PASSAGEIROS

Parece-nos forçado, contudo, admitir-se a responsabilização civil das empresas que operam esses aplicativos por eventuais agressões a passageiros, como supostamente ocorrido no caso em comento.

Deve-se ponderar que a garantia de segurança não é intrínseca à atividade de empresas dessa natureza; não faz parte de sua organização, tratando-se de fortuito externo, e, portanto, de uma excludente de responsabilidade do fornecedor. Sinteticamente, o fortuito externo pode ser conceituado como o fato imprevisível e inevitável, que não guarda nenhuma relação com a atividade desenvolvida pela empresa. A esse respeito, confira-se o disposto no inciso II, do § 3º, do art. 14, do CDC. 

Destarte, s.m.j., sendo o taxista um terceiro cujos ânimos estão fora da previsibilidade e evitabilidade por parte da empresa que opera o aplicativo, a esta nenhuma responsabilidade deve ser imputada pela agressão levada a efeito contra o passageiro. Lado outro, dúvidas não há de que o passageiro poderá, com base no art. 14, § 1º, do CDC, responsabilizar objetivamente o taxista pela agressão. 

Quanto a esse ponto, importa salientar que, em relação à corrida de táxi, enquanto contrato de transporte que é, deve ser observada a cláusula de incolumidade, assim explicada por CAVALIERI FILHO:

“Sem dúvida, a característica mais importante do contrato de transporte é a cláusula de incolumidade que nele está implícita. A obrigação do transportador não é apenas de meio, e não só de resultado, mas também de segurança. Não se obriga ele a tomar as providências e cautelas necessárias para o bom sucesso do transporte; obriga-se pelo fim, isto é, garante o bom êxito. Tem o transportador o dever de zelar pela incolumidade do passageiro na extensão necessária a lhe evitar qualquer acontecimento funesto...” (CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 10ª ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 328).

Ante a lição do preclaro autor, no presente caso não restam dúvidas quanto à violação da cláusula de incolumidade por parte do motorista do táxi, aliás, de forma dolosa, registre-se.

Inobstante, adiantando-nos em relação a eventual questionamento acerca da responsabilização da empresa por fato do serviço (acidente de consumo), analisa-se.

O fato do serviço (sinônimo de acidente de consumo) ocorrerá sempre que o defeito, além de atingir a incolumidade econômica do consumidor, vier a atingir sua incolumidade física ou psíquica. Nesse caso, haverá danos à saúde física ou psicológica do consumidor. Portanto, diferentemente do vício, o fato do serviço deve desencadear um dano que extrapola a órbita do próprio serviço.

Veja-se que, no presente caso, o passageiro alega que sofreu uma agressão física; foi golpeado e ferido pelo taxista. Portanto, dúvidas não há de que houve fato do serviço, ocasionado exatamente pelo prestador do serviço.

No entanto, esse fato do serviço, pelos argumentos já delineados quando da conclusão de ocorrência de fortuito externo em relação à empresa, conduz à sua não responsabilização por fato do serviço. Ou seja, somente o taxista responderá por fato do serviço.

4. CONCLUSÃO

Como visto, as relações travadas por meios eletrônicos são complexas, representando um grande desafio para os estudiosos do Direito, especialmente quando a análise envolve o vastíssimo campo de aplicação do instituto da responsabilidade civil.

Quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor às empresas desenvolvedoras/operadoras de aplicativos para chamar táxis, parece-nos que não há dúvidas nesse sentido, eis que, embora apresentem o serviço como sendo gratuito para passageiros e taxistas, é possível verificar que essas startups são indiretamente remuneradas, através de parcerias com outros estabelecimentos empresariais (bares, restaurantes, boates, casas de espetáculos etc.). Ademais, a existência de concorrência entre empresas dessa natureza é mais um indicativo de que trata-se de uma relação de consumo, já que todas elas buscam arregimentar clientela para promover o crescimento do negócio.

Porém, ficou claro que a incidência do CDC a essas relações deve se limitar aos casos envolvendo vício do serviço, conforme explanado, ficando de fora os acidentes de consumo (fato do serviço), uma vez que a garantia de segurança (cláusula de incolumidade) não é inerente à atividade da empresa virtual. Sem embargo, em casos tais, nada impede que o passageiro, com fundamento nas normas consumeristas, acione judicialmente o taxista, porquanto este e o passageiro se enquadram perfeitamente no conceito jurídico de fornecedor e consumidor, respectivamente.


Vitor Vilela Guglinski. Vitor Vilela Guglinski é Advogado. Pós-graduado com especialização em Direito do Consumidor. Membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON). Ex-assessor jurídico da 2ª Vara Cível de Juiz de Fora (MG). Autor colaborador dos principais periódicos jurídicos especializados do país. .


Imagem Ilustrativa do Post: Taxi App // Foto de: Kentaro IEMOTO // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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