Precisamos Parar de Mexer com Todas

13/05/2017

Por Daniel Brandão – 13/05/2017

Eis que não cessam de vir à tona casos de assédio sexual no país onde, vergonhosamente, 86% das mulheres sofrem assédio em público.[1]

Há pouco mais de um mês, José Mayer, ator da Rede Globo, assediou sexualmente Susllem Tonami, figurinista da mesma emissora, proferindo rotineiramente comentários nauseantes como: “fico olhando a sua bundinha e imaginando seu peitinho”, “vaca!”, “você nunca vai dar para mim?” e, não satisfeito, desceu ao nível de colocar a mão na genitália da moça e dizer que esse era seu antigo desejo.

O caso voltou à luz depois de Susllem, no dia 26 de abril, desistir de prestar queixa contra o assediador e surgir um boato segundo o qual a figurinista foi amante do ator – que é casado.

Embora lamentavelmente seja algo previsível, nos assusta a reação de parte da opinião pública que insiste em atacar e culpar a vítima, utilizando como premissas a desistência da representação penal e o boato de que eram amantes, para chegar a conclusões pouco lógicas e intelectualmente desonestas, como: “a figurinista tornou público o assédio que sofreu para se vingar do ator”; “Susllem perdeu a razão, pois já esteve na condição de amante. É uma mulher promíscua”, “...está explicado o motivo pelo qual José Mayer fez o que fez”.

Que dificuldade há em entender que nada disso desagrava e, muito menos, justifica o assédio assumidamente cometido por José Mayer? Ainda que Susllem fosse namorada ou esposa de Mayer, o ato continuaria sendo jurídica, moral e eticamente reprovável. Quem, minimamente educado, acharia normal e correto um marido surpreender a esposa, no meio de outras pessoas, apalpando-a na genitália? Que mulher, só por estar na condição de namorada ou amante, de fato mereceria ser assediada sexualmente – pior ainda, na frente de outras pessoas? Quem espera, a priori, que uma mulher tenha escolhido se vingar de um homem dizendo para uma sociedade cujos homens assediam em público 86% das mulheres, que foi assediada?

O Código Penal, em seu artigo 225, prevê que a ação penal no crime de assédio sexual é pública condicionada à representação do ofendido. Denunciar ou não o ator é uma decisão pessoal sobre qual cabe a Susllem deliberar.

A parcela considerável da sociedade que enxerga a situação sob as perspectivas expostas acima certamente é a mesma que faz vistas grossas ao modo como José Mayer tratou o assédio que cometeu: “brincadeira de cunho machista”, conforme divulgado em nota pelo ator. É categoricamente errado, mas comum, numa sociedade como a nossa, que o assediador, após cometer um crime deplorável, sinta-se à vontade para ir a público tratá-lo sob uma ótica reducionista: como uma brincadeira de mau gosto ignorada pelo Código Penal.

Outro caso de repercussão nacional diz respeito aos assédios sofridos pelas “coelhinhas da playboy”, que denunciaram dois sócios da empresa que detém os direitos de publicação da revista Playboy no Brasil, caso abordado em matéria exibida no programa Fantástico. Segundo a denúncia e registros de mensagens trocadas por celular, os dois sócios estavam condicionando o sucesso das modelos dentro do Grupo Playboy à troca de “favores sexuais”.

O caso representa o retardo de parte da sociedade que acredita que o fato de uma mulher decidir utilizar o próprio corpo como instrumento de trabalho e, por isso, exibi-lo com roupas curtas e decotadas, dá a quem quer que seja o direito de assediá-la, estando justificados os atos desta natureza.

A sociedade precisa amadurecer a ideia de que o homem que assedia sexualmente uma mulher está, sim, necessariamente, desnudo dos princípios básicos de educação e convivência social, entre os quais: a preocupação se o que pretende fazer pode ofender, desrespeitar ou agredir a dignidade do outro. O assediador não comete um deslize e nem reage a estímulos. O assediador traz à existência parte de seu estado de espírito vil qualificado pelo preenchimento de um vazio moral que é nocivo à coletividade e contrário aos bons costumes.

Mesmo entre profissionais da área acadêmica – dos quais não podemos alegar carência de inteligência e esclarecimento – e estudantes universitárias o assédio sexual registra presença. O tema foi abordado em vídeo[2] pela professora na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, Débora Diniz, que recebeu pedidos de ajuda de estudantes que estão sendo assediadas sexualmente por seus orientadores. Uma das faces do assédio sexual se mostra em casos como o dos referidos professores/ orientadores: o homem, por ocupar uma posição que é, por natureza, de respeito e prestígio (no caso: pessoa detentora de um conhecimento específico, responsável por transmiti-lo) tira proveito da notoriedade que tem para assediar a mulher, que se encontra em condição hierarquicamente inferior.

Sob pena da sociedade se distanciar de um modelo, pelo menos, civilizado, é preciso desconstruir conceitos antiquados que não têm mais condições de fazer parte da nossa sociedade contemporânea. Norbert Elias ensina:

Quanto mais perdura a tradição, mais seus axiomas se afiguram evidentes. Por isso, é um dever premente, quando uma tradição já dura séculos, expor à luz esses axiomas jamais questionados. Convém examinar se o "mobiliário do pensamento" — tudo aquilo que é considerado uma evidência indiscutível — ainda é utilizável, ou não; e, caso não o seja, convém refletir sobre o que pode substituí-lo.[3]

Progredir, neste caso, pressupõe parar. Para quem passeia pelos caminhos da indignidade e da degradação, parar é progredir, dar meia volta é quase um salto quântico.

É preciso parar de resumir a existência das Marias aos papéis sociais padronizados, como o maternal: elas estão também na política, lutando pela aprovação da Lei Maria da Penha e pela tipificação do crime de feminicídio. É preciso parar de reduzir o papel das Marcelas à casa e ao supermercado: elas estão, também, nas ciências e dirigindo grandes empresas. É preciso parar de assediar Julianas que percorrem o trajeto que fica entre o ponto de ônibus e sua residência: isso não é normal, não é engraçado e nem justificável.

O momento exige desapego de convicções tradicionalistas e revisita ao ensinamento de Marguerite Yourcenar, segundo quem o verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos.


Notas e Referências:

[1] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/pesquisa-mostra-que-86-das-mulheres-brasileiras-sofreram-assedio-em acesso em 09/04/2017 às 01h34

[2] https://www.youtube.com/watch?v=wPDWxoS4yR8&t=1s acesso em 08/05/2017 às 00h12

[3] ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1998.


Daniel Brandão. . Daniel Brandão é estudante do quarto semestre do Curso de Direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília, UniCeub. . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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