Precisamos falar sobre o indiciamento – Por André Sampaio

29/01/2017

O indiciamento é um profundo mistério no ordenamento jurídico brasileiro. Entre omissões legais e falta de consenso jurisprudencial perde-se a oportunidade de atribuir sentido a um instituto tão inútil ao ponto de podermos afirmar que sua supressão, do jeito que o encontramos atualmente, não faria a mínima falta para o processo penal.

Mas sob quais condições pode-se preservar um ato jurídico estéril? Sua ausência de efeitos é tão patente que torna a tarefa de responder tal pergunta um tanto quanto hercúlea, mas atrevamos encarar essa empreitada buscando mais elementos de análise.

Desde uma perspectiva legal é manifesta a total ausência de funcionalidade do indiciamento. O próprio diploma processual penal, de forma bastante a técnica, dirige-se ao sujeito passivo da investigação preliminar sempre como “indiciado”, até mesmo quando se refere àquele contra quem se requisita a instauração de um inquérito policial! Essa confusão de categorias apenas acaba por esvaziar qualquer irradiação de efeitos próprias do instituto. Deve-se destacar que houve uma tentativa de sanar alguns aspectos que causavam alguma divergência jurisprudencial, mas padecendo de uma timidez quase que patológica a Lei 12.830/2013 acabou por se resumir à informação de que “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”.

Esse desprovimento de efeitos e carência de um regramento preciso reverbera nos tribunais. Antes da referida Lei 12.830 havia divergência até mesmo quanto à autoridade responsável pelo ato! O panorama atual, no entanto, quando esquadrinhado, revela-nos dois enunciados; um primeiro afirma que o indiciamento demanda indícios convergindo contra alguém (!) – diante de regras mais claras a obviedade ulula –, e, um segundo, sofre de certa dose de esquizofrenia: ao passo que praticamente não reconhece quaisquer efeitos concretos ao ato, entende que o indiciamento quando mal feito – e quando que ele é bem feito?! – é causa de constrangimento ilegal.

Não é à toa que processualistas penais do quilate de Fauzi Hassan Choukr e Aury Lopes Jr.[1] chegam ao extremo de questionar o porquê de sua existência. Este último, talvez inspirado por Dr. Frankstein, busca admiravelmente dotar de vida esse instituto errante, extraindo sentido da escassa legislação presente acerca do tema em consonância com a Carta Magna e tratados internacionais para desenvolver uma verdadeira sistemática para o indiciamento, atribuindo-lhe contornos formais, momento de ocorrência e efeitos, todavia sabemos que esse tipo de construção acaba infelizmente tendo pouquíssima adesão do Judiciário, restando-lhe o afã de servir de fonte de inspiração para futuras eventuais modificações legislativas.

A praxe policial, por sua vez, acaba dando contornos meramente burocráticos ao indiciamento. O que se percebe em muitas das vezes é sua realização pelo delegado de polícia tão somente quando da elaboração do relatório do inquérito policial, ou seja, o último ato da fase investigativa. Ora, se o que se poderia destacar de efeitos oriundos do indiciamento é a ciência do investigado de seu status de sujeito passivo da investigação, qual a utilidade de sua realização no momento em que se encerra o inquérito?!

Ou seja, o indiciamento se resumiu, hoje, a formalidade absolutamente desprovida de sentido processual, um quiproquó cuja solução não surgirá por parte dos atores situados do lado da acusação por um simples motivo: a única possibilidade de dotá-lo de utilidade é sob a ótica de um processo penal democrático.

Desde outra perspectiva, se verticalizarmos um pouco nossa análise na busca do funcional dentro do disfuncional chegaremos à inevitável conclusão de que a única utilidade dessa atual situação à autoridade policial e Ministério Público é a preservação do arbítrio no que tange ao disciplinamento legal do indiciamento, impedindo, assim que ele possa produzir qualquer efeito(s) democrático(s), o que, na visão de alguns, tornar-se-ia mais um entrave à investigação.

Porém há um anteprojeto para um novo código de processo penal em gestação que certamente corrigirá tal infortúnio, não? Não. De fato o anteprojeto aludido vai além do que foi o atual CPP; enquanto este não dedica um único artigo para esclarecer a utilização do indiciamento, aquele o elenca na Seção IV do Capítulo III, que rege a matéria da seguinte forma:

Art. 31. Reunidos elementos suficientes que apontem para a autoria da infração penal, a autoridade policial cientificará o investigado, atribuindo-lhe, fundamentadamente, a condição jurídica de “indiciado”, respeitadas todas as garantias constitucionais e legais.

§ 1º A condição de indiciado poderá ser atribuída já no auto de prisão em flagrante ou até o relatório final da autoridade policial.

§ 2º A autoridade deverá colher informações sobre os antecedentes, conduta social e condição econômica do indiciado, assim como acerca das consequências do crime.

§ 3º O indiciado será advertido da necessidade de fornecer corretamente o seu endereço, para fins de citação e intimações futuras e sobre o dever de comunicar a eventual mudança do local onde possa ser encontrado.

É possível perceber uma evolução inquestionável. Já se fala em ciência do investigado de sua condição de “indiciado” e elenca pressupostos para tal, todavia ainda entendemos que o dispositivo legal está aquém do que deveria. Ele possibilita a atribuição de “indiciado” desde o flagrante, o que é óbvio, sobretudo diante de sua conversão em prisão preventiva – se há prisão cautelar há indícios suficientes de autoria! –, mas o possibilita até o relatório final, o que já atacamos sendo medida absolutamente inservível.

Pensamos ser imperativo ir além. O indiciado deve conhecer do seu status o quanto antes e ele jamais poderá surgir apenas no relatório final, afinal este não tem natureza de ato de investigação capaz de fornecer indícios para a construção do indiciamento, trata-se apenas de peça de recapitulação do que fora apurado.

Assim, diante desse ato devem ser propiciados ao indiciado todos os minguados direitos do sujeito passivo no curso dessa fase preliminar. Seria a grande panaceia para todos os males do inquérito policial? Certamente que não. Aliás, de muito pouco serve o direito de comparecer ao interrogatório policial acompanhado de defensor constituído se a grande clientela do sistema penal é totalmente dependente de defensor dativo, por exemplo.

É instituto atualmente dotado de inutilidade crassa, o que por si demanda uma revitalização e dotação de efeitos, sobretudo para a proteção do investigado diante de eventuais abusos do investigador, mas teríamos caminhado apenas alguns passos em direção ao processo penal democrático; muito ainda teria de ser feito e não nos acalentaremos enquanto não for.


Notas e Referências:

[1] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 9. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012. CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 3. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.


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