Precedentes e o direito processual civil discursivo: conexão necessária, ou idealização?

01/03/2016

Por Tiago Gagliano Pinto Alberto - 01/03/2016

Olá a todos!!!

Caro leitor fiel (e os infiéis também), vamos fazer uma brincadeira. Pense em um número inteiro; agora, multiplique-o por dois; some, digamos 100 ao resultado; agora divida o resultado por dois; agora, finalmente, diminua o resultado do número que você pensou inicialmente. O resultado foi 50, não é?! Acertei, não foi?!

Como fiz isso não importa. O que é importante é a analogia desta brincadeira com o nosso sistema de precedentes e a conclusão a ser apresentada ao final deste texto. Ao ser proposta uma ação não se sabe, como regra, qual o resultado final o processo alcançará; talvez possa ser julgado procedente o pleito, parcialmente procedente, ou improcedente, para ficar apenas nas soluções de mérito da causa. Entretanto, em se tratando de questão já debatida pela jurisprudência e que já alcançou entendimento fixado nos Tribunais pátrios, a possibilidade de que o precedente seja seguido é grande; e não porque o juiz se encontrará de alguma maneira travado, ou aprisionado pelo resultado de um julgamento pregresso, mas porque a segurança jurídica e a estabilidade das relações jurídicas reclamam que o anterior posicionamento seja seguido, confirmando-se, dessa maneira, a análise outrora levada a cabo pelo aparelho judicial a respeito da questão controvertida. É mais ou menos como a brincadeira que fizemos. Não o conheço e tampouco sei o número que escolheu, mas, antecipadamente, já sei qual será o resultado final.

Claro, a sistemática do precedente a ser seguido somente funciona ceteris paribus, ou seja, acaso as circunstâncias e características do caso sejam as mesmas em relação àquelas em que o precedente foi formado; passando-se diversas as coisas, porém, haverá o juiz de se desincumbir do ônus argumentativo que lhe impõe o sistema ao decidir de maneira diversa a qual indicada pela jurisprudência.

Inexiste novidade em dizer que o nosso direito adota a tradição romano-germânica, que, por sua vez, é identificada com a família do civil law, em que as leis ostentam acentuado grau de importância na formação do sistema, baseada no (onírico) fundamento do legislador racional, coerência e, para quem admite, a completude do ordenamento. Diferentemente, no campo da família do common law, precedentes são fortemente considerados, ao ponto de que mesmo a lei, existente também neste ambiente, encontra guarida e definitiva eficácia e efetividade após a sua inserção no sistema por intermédio de precedentes que a interpretem.

Bem verdade que as famílias do direito mencionadas andam, atualmente, com as suas características e diferenças bem atenuadas; e disso é prova o Reino Unido, que, se por muito tempo se viu às voltas com a supremacia do parlamento, nos dias atuais enfrenta o desafio da incorporação de uma Corte Constitucional em seu dia-a-dia.

No sistema brasileiro também temos esse intercâmbio. Após o fortalecimento de precedentes por meio de súmulas, vinculantes ou não, recursos repetitivos, possibilidade de negativa de seguimento de recursos que se opunham às decisões já consolidadas em instâncias revisoras, recurso representativo de controvérsias etc., agora, com o Novo CPC, Lei nº. 13.105/2015, parece que definitivamente estamos operando com a atenção voltada não somente à lei, mas também ao que se decide, em instâncias excepcionais ou não.

O artigo 489 da novel legislação processual, em minha opinião um dos mais importantes artigos do NCPC, determina, no §1º, inciso VI, a invalidade de decisões que não obedeçam à seguinte regra argumentativa: i) ceteris paribus: ou seja, sob as mesmas circunstâncias, iguais decisões devem ser adotadas; ii) sinal específico: em havendo algum sinal, ou distinção no caso sob análise, justifica-se a decisão em sentido diverso, desde que o juiz enuncie o discrímen, ou seja, o motivo que ensejou a diferente opinião.

O inciso, ao meu sentir, é completamente desnecessário, justamente por traduzir uma regra argumentativa já bem desenvolvida no âmbito da argumentação jurídico-racional. Com a determinação legal, ou sem ela, tratando-se ou não de precedentes, o juiz deverá observar as regras mencionadas, sob pena de a sua decisão padecer de uma pecha bem maior do que a invalidade: a falta de representatividade argumentativa, isto é, a veiculação de arbítrio travestido de decisão[1].

Talvez, no entanto, a sua função tenha sido a de lembrar essa característica aos juízes, ou, quem sabe, plasmar de vez a representação argumentativa no campo do direito positivo, de sorte a que, na linha pretendida pelo artigo 489 em sua completude, mais decisões racionais sejam proferidas. Acaso este tenha sido o intento, a regra deve ser louvada.

Agora, note o seguinte: ao conjugar no mesmo diploma uma das regras básicas da argumentação com o ideário colaborativo do processo (artigo 6º), a legislação faz mais do que relembrar uma máxima argumentativa ou fixar a compreensão da argumentação racional; em realidade, passa a perfilhar linha teórica cuja tônica participativa se espraia para a formação do direito em disputa, materializado pela decisão judicial.

E, nessa linha, a decisão judicial será, antes de tudo, um ato de participação dos sujeitos que integram a relação processual. Legitimada por argumentos e haurida de inequívoca participação dos sujeitos envolvidos na relação jurídico-processual, a decisão, calcada em elementos de teoria discursiva como sugerida por Alexy[2], ostentará em seu bojo elementos que a credenciam enquanto produto de atividade decisória-colaborativa.

Em outras palavras, não se poderá, doravante à entrada em vigor do Novo CPC, cogitar de decisão válida que: i) não contenha elementos semânticos delineados a partir de uma perspectiva argumentativa; ii) deixe de atender ao chamado colaborativo propugnado pela lei, a nível metadecisório.

Evidentemente, nessa linha de ideias, essa participação não poderá se dar a nível formal, propagandístico e episódico. Ao contrário, terá se se fazer ver potencializada de maneira extrema, a fim de que as decisões individuais possam caminhar no sentido da formação legítima de precedentes que, em seu cerne, representem o resultado de disputa argumentativo-racional lastreada em aspectos discursivos da realidade do direito e das necessidades sociais.

Com a formação do precedente, teremos o ponto alto desta história. Legitimando-se o precedente como fruto de uma disputa discursivamente qualificada, a cada momento em que o juiz decidir com apoio na cláusula ceteris paribus estará robustecendo o sistema de segurança jurídica e a estabilização de comportamentos que se espera do Poder Judiciário; e, por outro lado, quando se posicionar no campo do sinal característico de um determinado caso, estará dando vazão ao fluxo de debates colaborativos que decorrem da sistemática postulada pelo NCPC.

Dito de outro modo e com base na brincadeira com a qual iniciei o presente texto: acertarei sempre o número final que você escolher acaso permaneça a equação que propus. Modificando-a, precisarei conhecer a peculiaridade das condições que cada leitor propõe para poder apresentar uma resposta. E, para tanto, nada melhor do que as discussões argumentativo-racionais que, por seus elementos, permitem a construção de um processo discursivo, a partir de uma teoria que, por igual, veja a Constituição também dessa maneira.

O que você acha?

Um grande abraço a todos. Compartilhe a paz!


Notas e Referências:

[1] ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 4ª ed., 2015, p. 53-54.

[2] ALEXY, Robert, op. cit., p. 23.


thiago galiano

Tiago Gagliano é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Professor da Escola da Magistratura do Estado do Paraná (EMAP). Professor da Escola da Magistratura Federal em Curitiba (ESMAFE). Coordenador da Pós-graduação em teoria da decisão judicial na Escola da Magistratura do Estado de Tocantins (ESMAT). Membro fundador do Instituto Latino-Americano de Argumentação Jurídica (ILAJJ). Juiz de Direito Titular da 2ª Vara de Fazenda Pública da Comarca de Curitiba.


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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