Práticas odiosas e inconstitucionais no processo penal: denúncia vazia ou denúncia que nada denuncia. Dever de bem denunciar e respeito ao contraditório e a ampla defesa

17/03/2016

Por Jackson Silva Wagner - 17/03/2016

É de conhecimento geral que a denúncia criminal deve conter um rol de requisitos mínimos, tais como: (i) a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias; (ii) a qualificação do acusado ou elementos para sua identificação; (iii) a classificação do crime e, se necessário, (iv) a relação de testemunhas. Extrai-se esse modo de proceder sobre a denúncia do art. 41 do CPP[1].

Peço ao leitor que atente ao requisito denominado como “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”. Especialmente a parte final “com todas as suas circunstâncias”. É quanto a ele que iremos refletir nesse breve estudo, inclusive com a análise de denúncias reais e práticas. Obviamente que ficarão preservadas a identidade dos envolvidos.

A pergunta que devemos fazer é: o que satisfaz o verbete que impõe que a denúncia faça “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”?

Pois bem, é certo que a sucintez e a brevidade não podem ser confundidas com denúncias mal estruturadas ou ineptas. Denúncias breves, porém bem elaboradas, não são atingidas pelo instituto da inépcia. Estas não são objeto do humilde estudo. O que se busca aqui é demonstrar que estão englobadas no conceito de denúncia inepta aquelas denúncias sucintas e que propositalmente omitem as circunstâncias sobre como o crime ocorreu, tudo com o fito execrável de causar surpresa na defesa.

Essa conduta adotada por alguns acusadores não é só execrável, mas também inconstitucional pelo fato de violar o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa. Contraditório e ampla defesa que são formados pelo conjunto básico das disposições constitucionais afetas a eles (art. 5º, incisos LIV e LV[2]) e que se desdobram em artigos de lei infraconstitucional que dão eficácia ao mandamento constitucional, como é o caso do artigo 41 do CPP.  Isto é, o artigo 41 do CPP nada mais é do que uma dissecação dos direitos fundamentais constitucionais ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal, ou seja, ele determina de que maneira a denúncia respeitará tais direitos fundamentais na seara penal.

Não se está aqui querendo limitar e conduzir a forma como promotores devem elaborar as suas denúncias. Até porque o texto não trata sobre as limitações infundadas, mas sim de limitações impostas pela própria Constituição e pelo Código de Processo Penal.

Nesse passo, desrespeitar o conteúdo mínimo do artigo 41 é ferir a própria Constituição, nos aspectos atinentes ao contraditório, a ampla defesa e ao devido processo legal. Sobre o tema: 

[...] 2. Saliente-se, no ponto, que a inobservância às regras do artigo 41 do CPP não acarreta a violação de uma regra processual apenas, mas sim fulmina a garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, insculpido no artigo 5º, LV, assim como a garantia do devido processo legal, presente no inciso LIV do citado artigo da Constituição Federal. [...] (TJ-RJ - APL: 00403969420128190001 RJ 0040396-94.2012.8.19.0001, Relator: DES. JOSE MUINOS PINEIRO FILHO, Data de Julgamento: 31/03/2015, SEGUNDA CAMARA CRIMINAL, Data de Publicação: 10/04/2015 14:19) 

Evidente, pois, que uma denúncia silente sobre as circunstâncias em que o crime ocorreu omite da defesa uma parte essencial da tese acusatória e que o CPP determina que o acusador apresente na sua peça justamente a fim de assegurar o contraditório. Com isso poderá ocorrer que o acusador, ao arrepio da Lei e da Constituição, na audiência de instrução ou nas alegações finais desenvolva a parte da denúncia que não apresentou na petição inicial (questionando testemunhas sobre como o crime ocorreu, defendendo nas alegações finais uma agravante fundada em fato não descrito na denúncia). O que representa uma verdadeira surpresa, que deve a todo custo ser evitada no processo penal, vez que a defesa tem direito a ter ciência, desde o início da acusação formal, não apenas do fato delituoso imputado ao defendido, mas também como o crime foi praticado e com o quê. “De que forma” e “com o quê o crime foi praticado” são elementos indissociáveis de uma denúncia, integram a dinâmica delitiva essencial a qualquer peça acusatória.

Trata-se de elemento essencial. Essencial porque o próprio art. 41 do CPP reconhece como vital para a denúncia a presença da narrativa sobre as circunstâncias do crime. Com efeito, a violação dessa essencialidade narrativa é uma afronta clara ao direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa, pois suprime o direito ao conhecimento de todos os elementos da imputação dirigida ao acusado.

Para confirmar a essencialidade e o motivo do CPP ter elencado no art. 41 esse elemento como requisito mínimo de qualquer denúncia, basta pensar na hipótese de as circunstâncias do crime serem imprescindíveis para a tese de defesa, mormente quando a defesa não discordar da prática do crime, mas eleger a tese de que ele ocorreu de outra forma, a fim de trazer algum benefício ao defendido ou até mesmo a sua absolvição. Não é difícil chegar à conclusão de que a prática de alguns acusadores em omitir as circunstâncias do crime na narrativa da denúncia configura cerceamento de defesa. E que caso não seja declarado pelo juiz de primeiro grau com o reconhecimento da inépcia da denúncia, poderá ser desafiado por habeas corpus, inclusive liminarmente, porquanto a análise é objetiva e se satisfaz com a simples leitura da inicial acusatória. O relator que nega uma liminar dessas sob o fundamento de ausência de verossimilhança e que é melhor aguardar a decisão da turma é na verdade um preguiçoso, pois basta a leitura da denúncia para verificar ou não a sua higidez técnica.

De outro giro, a verificação do desrespeito ao devido processo legal é de fácil constatação, porquanto uma denúncia que não segue os parâmetros mínimos do artigo 41 fere o direito fundamental ao devido processo legal. Em matéria penal o devido processo legal se evidencia quando o processo é inaugurado com uma denúncia que segue o passo a passo estabelecido em Lei, no caso o art. 41 do CPP. Dessa forma, descumprir esse passo a passo é o mesmo que ignorar o devido processo legal, pois só há devido processo legal quando se dá para a parte o processo que lhe é devido, ou seja, um processo originado de uma denúncia apta e válida. E dar a parte um processo devido só se verifica quando se entrega um processo justo (na acepção de respeito à Lei e a Constituição). Em suma, desrespeitar direitos fundamentais e os dispositivos legais infraconstitucionais que os dissecam e regulamentam significa descumprir o devido processo legal, pois processo devido não haverá em tal situação.

Evidente que não se está querendo obrigar o acusador apresentar todos os seus argumentos com a inicial, pois a ocultação de alguns elementos e de teses de acusação e de defesa é do próprio jogo processual penal. O que se busca é trazer à luz que muitos acusadores descumprem os requisitos mínimos que uma inicial acusatória deve trazer como determina o CPP, o que implica no desrespeito aos direitos fundamentais ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal.

Estabelecidas tais premissas passemos a análise de alguns casos concretos que demonstram a prática aqui combatida, reservada a identificação dos envolvidos: 

DENÚNCIA 01: “No dia ___ de___de ___, no período da tarde, em via pública, próximo ao ___, nesta Comarca e Cidade de ___/PR, o denunciado ___, agindo dolosamente, com vontade livre e consciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, utilizando-se de violência contra a mulher na forma da Lei Maria da Penha (art. 7º e 5º, III), OFENDEU A INTEGRIDADE CORPORAL de sua ex-companheira, ___, que estava sob imediata proteção da autoridade consubstanciada em medidas protetivas de urgência (autos nº ___), causando-lhe as lesões corporais de natureza leve diante das fotos apresentadas em anexo.

O crime acima narrado foi praticado pelo denunciado em estado de embriaguez preordenada, causado pelo uso de álcool e drogas (cocaína). A vítima refere que na data do fato ele estava visivelmente bêbado e que na maioria das agressões e ofensas o denunciado se encontrava alcoolizado e que o mesmo não a procura quando está sóbrio”. 

DENÚNCIA 02: “No dia ___ de ___ de ___, por volta das ___, na residência localizada na Rua ___, nesta Comarca e Cidade de ___/PR, o denunciado ___, agindo dolosamente, com vontade livre e consciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, prevalecendo-se de relação doméstica, OFENDEU A INTEGRIDADE CORPORAL e a SAÚDE de sua esposa, ___, grávida de noves meses à época do fato, causando-lhe a aceleração do parto como verificado no laudo de fl. 09/10”. 

DENÚNCIA 03: “No dia ___ de ___ de ___, por volta das ___, na residência localizada na Rua ___, nesta Comarca e na Cidade de ___/PR, o denunciado ___, agindo dolosamente, com vontade livre e consciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, prevalecendo-se de relação doméstica, OFENDEU A INTEGRIDADE CORPORAL de sua prima, ___, causando-lhes as lesões corporais de natureza leve descritas no laudo de lesões corporais de fls. 21/22: ‘escoriações em região de braço e antebraço direito”.

Note caro leitor que na denúncia 01 há imputação de prática de lesão corporal ao denunciado, inclusive sob o estado de embriaguez, mas que não há qualquer referência sobre como a lesão corporal foi causada, se mediante socos, tapas ou com algum instrumento. Pode ser alegado que ocorreu um mero lapso ou que não houve colheita sobre como a agressão ocorreu. Porém, no caso a vítima informou na oitiva em gabinete que a agressão se deu mediantes tapas. O acusador do caso é que, propositalmente, omitiu o fato.

Já a denúncia 02 não traz ao final nem uma breve narrativa sobre como o crime ocorreu e tampouco como as agressões foram perpetradas, apesar de o inquérito do caso trazer tal informação.

Por sua vez, a denúncia 03 padece do mesmo vício que as anteriores, pois em que pese descrever os tipos de lesões não narra como elas foram causadas, repise-se apesar do inquérito narrar como o fato ocorreu.

Poderia o leitor indagar que se trata de formalismo exacerbado e que o fato de o inquérito trazer a informação supre a ausência dela na denúncia. Isso cai por terra com a análise do artigo 41, que determina como a petição de denúncia deve ser elaborada, além de não fazer qualquer exceção ao fato da informação constar no inquérito e ficar ausente na denúncia. Pensar dessa forma implicaria, por exemplo, na necessidade de aceitar que em uma execução de um contrato o exequente cobrasse no decorrer da ação (e não na inicial) uma cláusula especial do contrato sob o pretexto de que apesar de o pedido não constar na inicial, o contrato anexado aos autos contem a cláusula. O que é um absurdo, pois, seja em matéria civil ou penal, o pedido e a sua substancialidade (matéria do corpo da petição) delimitam a atuação do juiz. A jurisprudência não acolhe tal tese: 

ART. 41 DO CPP. DENÚNCIA DEVE CONTER EM SI MESMA TODAS AS INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS AO EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 6º DA LC 105/01. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. [...]  2 - No caso em tela, muito embora a dinâmica dos fatos tenha sido exposta, os contornos exatos da ação penal não foram pormenorizados. Não há especificação de quais tributos foram sonegados e em quais anos e o montante sonegado não foi individualizado. Ainda que tais informações encontrem-se presentes no Inquérito Policial acostado aos autos, isso não significa que a peça cumpra os requisitos do art. 41 do CPP. [...]. 5- Recurso em sentido estrito desprovido. (TRF-2 - RSE: 201251030001092 RJ, Relator: Desembargador Federal ANDRÉ FONTES, Data de Julgamento: 30/09/2014, SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 14/10/2014)

Ouso chamar tais espécies de denúncias de denúncias vazias ou que nada denunciam, porquanto elas apenas descrevem o tipo objetivo praticado sem fazer a adequada subsunção que o Código de Processo Penal exige. O que não preenche o dever de descrever a prática criminosa com todas as suas circunstâncias. Extrai-se dessa análise não só a existência de um direito de se defender dos fatos, mas além disso um direito de se defender de como os fatos foram supostamente praticados. Nasce da interpretação do texto da Constituição e do Código de Processo Penal um direito à defesa sobre a dinâmica delitiva, que deve estar clara na denúncia, sob pena de inépcia por descumprimento do art. 41 do CPP e dos incisos LIV e LV do art. 5º da CF. Não se exerce defesa apenas quanto ao fato elementar do tipo (como a morte em um homicídio, por exemplo), mas também quanto a dinâmica delitiva (como o homicídio ocorreu – perfuração, envenenamento, arma de fogo -, e qual foi o dolo).

Dessa maneira, a mera descrição do tipo penal sem a adequada subsunção, com higidez probatória mínima, da conduta do acusado (no que se inclui a dinâmica delitiva) não satisfaz a justa causa para a deflagração da ação penal, como decide a jurisprudência: 

PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE HOMICÍDIO CULPOSO NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. INÉPCIA DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 41, DO CPP. NULIDADE. RECURSO PROVIDO. I - A alegação de inépcia da denúncia deve ser analisada de acordo com o que dispõem os arts. 41, do CPP, e 5º, LV, da CF/88. A peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias. Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito (HC 86.000/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJU de 2/2/2007). A inépcia da denúncia caracteriza situação configuradora de desrespeito estatal ao postulado do devido processo legal. II - In casu, a inicial acusatória, pelo crime de homicídio culposo na direção de veículo automotor, não preenche os requisitos exigidos pelo art. 41 do CPP. Isso porque o simples fato de o recorrente dirigir motocicleta sem habilitação não possui o condão de autorizar a imediata subsunção ao tipo penal. Deveria o Parquet ter evidenciado qual foi, in casu, a conduta imprudente ou negligente que veio a ocasionar a morte da vítima (precedentes do STF e do STJ). Recurso ordinário provido. (STJ - RHC: 44990 AL 2014/0024272-8, Relator: Ministro FELIX FISCHER, Data de Julgamento: 07/04/2015,  T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/04/2015) 

E M E N T A RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. PROCESSO PENAL. INÉPCIA DA INICIAL. ART. 41 DO CPP. DENÚNCIA DEVE CONTER EM SI MESMA TODAS AS INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS AO EXERCÍCIO DA AMPLA DEFESA. CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 6º DA LC 105/01. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO DESPROVIDO. 1 - O art. 41 do diploma processual penal traz como requisito da peça acusatória “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias” com o objetivo de garantir à defesa que tenha conhecimento dos fatos imputados ao réu e, desta forma, tenha possibilidade de rebater de maneira eficaz e ampla as acusações que recaiam sobre ele. 2 - No caso em tela, muito embora a dinâmica dos fatos tenha sido exposta, os contornos exatos da ação penal não foram pormenorizados. Não há especificação de quais tributos foram sonegados e em quais anos e o montante sonegado não foi individualizado. Ainda que tais informações encontrem-se presentes no Inquérito Policial acostado aos autos, isso não significa que a peça cumpra os requisitos do art. 41 do CPP. A denúncia deve conter em si mesma, da forma mais clara possível, quais são os delitos imputados e, mais do que isso, em qual extensão os crimes estariam sendo cometidos. Os réus não se defendem apenas da existência ou não do fato criminoso, mas podem insurgir-se também contra a medida em que foram praticados. 3 - A ausência de tais informações obsta o exercício amplo do direito de defesa, motivo pelo qual os pressupostos formais devem estar contidos expressamente na denúncia, de modo a permitir fácil compreensão da imputação. 4 - Constitucionalidade do art. 6º da LC 105/01. 5- Recurso em sentido estrito desprovido. (TRF-2 - RSE: 201251030001092 RJ, Relator: Desembargador Federal ANDRÉ FONTES, Data de Julgamento: 30/09/2014, SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 14/10/2014) 

PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I E II, DA LEI 8.137/90. ART. 41 DO CPP. AUSÊNCIA DE EXPOSIÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS DOS FATOS. INSUFICIÊNCIA DA DESCRIÇÃO GENÉRICA DO TIPO PENAL IMPUTADO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. NULIDADE ABSOLUTA DO FEITO AB INITIO. 1. Afora a menção aos anos-calendário em que teria sido praticado o delito e ao montante do crédito tributário constituído, a denúncia cingiu-se a uma descrição genérica do crime imputado, sem especificar os fatos que o caracterizariam. 2. O uso das expressões "acréscimo patrimonial a descoberto" e "omissão de receitas oriundas de alienação de bens e direitos" não conferem o mínimo de concretude à acusação formulada quanto à descrição do modus operandi, exigindo a sua complementação pelos elementos constantes da representação fiscal para fins penais, cujo conteúdo sequer foi reproduzido na denúncia. 3. Se a exposição deficiente do conjunto fático acarreta prejuízo à sua compreensão por parte do julgador ou da defesa, fica comprometido o exercício da ampla defesa e do contraditório no processo, configurando-se vício insanável, cuja sanção é a nulidade absoluta do feito a partir da denúncia, nos termos do art. 564, II, d, do CPP. 4. Anulação do feito ab initio. (TRF-3 - ACR: 10447 SP 0010447-31.2008.4.03.6181, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL COTRIM GUIMARÃES, Data de Julgamento: 07/05/2013, SEGUNDA TURMA) 

HABEAS CORPUS. ESTELIONATO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. A denúncia não descreveu o fato criminoso com todas as suas circunstâncias (art. 41 do CPP), nada referindo a respeito do dolo da conduta do réu, elementar do tipo penal. Ordem concedida, por maioria. (TJ-RS - HC: 70064618333 RS, Relator: José Antônio Daltoe Cezar, Data de Julgamento: 28/05/2015, Sétima Câmara Criminal, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 03/06/2015) 

De modo geral, podem ser extraídas do nosso ordenamento jurídico duas premissas: o direito de ser bem acusado e o dever de bem acusar, sendo este último uma obrigação de fazer imposta pelo CPP ao acusador, conforme entende o Supremo Tribunal Federal: 

[...] 2. Dois são os parâmetros objetivos do exame da validade da denúncia: os arts. 41 e 395 do Código de Processo Penal. O art. 41 indica um necessário conteúdo positivo para a denúncia. Já o art. 395, esse impõe à peça de defesa um conteúdo negativo. Se no primeiro (art. 41) há uma obrigação de fazer por parte do Ministério Público, no segundo (art. 395) há uma obrigação de não fazer; ou seja, a peça de denúncia não pode incorrer nas impropriedades de que trata o art. 395 do diploma penal adjetivo[...] . (STF - RHC 106359, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Segunda Turma, julgado em 22/02/2011, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-111 DIVULG 09-06-2011 PUBLIC 10-06-2011) 

Em síntese, as denúncias vazias que não descrevem a dinâmica delitiva não satisfazem o comando do art. 41 do CPP e tampouco respeitam os direitos fundamentais ao contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal previstos na Constituição.

A denúncia que não atenda a tais requisitos é arbitrária e nega o Estado Democrático de Direito, no qual se observa o dever de bem acusar, com fulcro em um devido processo legal que respeite o direito de ciência sobre todos os elementos da imputação e oportunize a adequada defesa sobre ela.

Por todo o exposto, a conduta em discussão, em que pese comum entre os acusadores, deve ser repensada por eles e sempre combatida por juízes, sujeitos últimos do dever de observância das garantias e dos direitos dos jurisdicionados. A inépcia da denúncia vazia é inquestionável, dada a ausência de substancialidade na descrição das circunstâncias fáticas do crime, e implica na rejeição liminar da acusação (art. 395, I, CPP), pois presente o caso de inépcia manifesta. E o seu não reconhecimento em primeiro grau desafia o remédio constitucional de habeas corpus, dada a sua celeridade, inclusive com pedido liminar.

Os acusadores em geral precisam (re)pensar o processo penal sob o viés constitucional, onde eles de fato exerçam o seu dever de bem acusar e respeitem o direito do jurisdicionado ser adequadamente acusado; posto que tanto o dever como o direito são extraídos do ordenamento jurídico (art. 5º, incisos LIV e LV da CF e art. 41 do CPP) e a esses acusadores também cabe como uma das funções precípuas a defesa da ordem jurídica e dos direitos individuais (art. 127, CF). Em arremate, mal acusar ou acusar de forma inadequada significa negar a própria função de defensor do ordenamento jurídico e dos direitos fundamentais individuais. É o acusador negando uma das razões da sua existência no Estado Democrático de Direito, beira a um venire contra factum proprium constitucional, porquanto a omissão ou ação contra a violação de direito fundamental é conduta contraditória com uma de suas funções constitucionais.


Notas e Referências:

[1]Art. 41.  A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

[2]Art. 5º, inciso LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. Art. 5º, inciso LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.


Jackson Silva Wagner. . Jackson Silva Wagner é Advogado Criminalista. Bacharel em Direito e pós-graduando. . . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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