Por que os direitos de crianças, adolescentes e jovens? Reflexões sobre a trajetória da Coluna Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens no Empório do Direito    

04/01/2022

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

Inspirado no artigo recém-publicado do historiador e amigo Humberto Miranda, com o sugestivo título de “Por que as infâncias? Uma homenagem à Esmeralda Blanco Moura e os(as) “caçadores(as)” de Histórias”[1], gostaria de, neste primeiro artigo do ano de 2022, propor algumas reflexões sobre a trajetória da Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens, sediada no Empório do Direito, e, por consequência, das configurações e dos desafios da produção de conhecimento sobre tal temática.

A primeira parte do título sugerido para este artigo é, portanto, uma provocação ao compartilhamento da reflexão sobre os motivos e os caminhos trilhados para produzir conhecimento no campo dos direitos das crianças, adolescentes e jovens, desde uma perspectiva interdisciplinar.

Trata-se de construir uma ferramenta de comunicação com o público em geral, e não apenas com acadêmicos, para oportunizar informações sobre questões variadas relacionadas ao campo central da Coluna, e que emergem, em sua origem, de uma demanda por superar algumas barreiras presentes no campo acadêmico e profissional.

Particularmente no campo jurídico, a Coluna convive com duas barreiras. Por um lado, a temática não possui centralidade na formação dos/das juristas, sendo, quando muito, tratada como matéria optativa de algumas graduações, e tendo poucas pós-graduações com linhas específicas de pesquisa. As últimas reformas do ensino jurídico, capitaneadas pela Ordem dos Advogados do Brasil, por mais que tenham ampliado a possibilidade de inserção de disciplinas propedêuticas, ainda não lograram a mudança do ensino pautado nas referencias aos códigos hegemônicos, e, sobretudo, no Direito e Processo Civil e Penal, o que faz com que, muitas vezes, os/as estudantes de Direito só conheçam assuntos ligados aos direitos de crianças, adolescentes e jovens de maneira incidental, em temáticas ligadas ao direito de família ou a (im)putabilidade penal, o que prejudica a capacidade de entendimento e de tratamento dos sujeitos, e frutifica percepções estereotipadas e/ou punitivistas de suas cidadanias e constituições subjetivas e socioculturais.

Uma outra barreira está no mercado de trabalho no Direito que ainda carece de especializações laborais que atraiam profissionais para este campo. Por certo, tivemos um grande avanço, nas últimas décadas, com a criação das varas, promotorias, defensorias e delegacias especializadas na temática infantojuvenil, mas elas ainda são poucas nos estados e, via de regra, concentradas nas capitais e municípios-polos de regiões do interior dos estados, não possuindo (ainda) a capilaridade territorial necessária para uma efetiva mudança material (e não apenas de paradigma formal) do tratamento de crianças, adolescentes e jovens pelos/pelas profissionais do Direito. Soma-se a isso o que já foi dito na primeira barreira, o déficit de formação acadêmica, que possui uma continuidade no déficit de formação continuada após o ingresso nas carreiras jurídicas, ainda que isto esteja mudando em algumas carreiras, das quais, é preciso dizer, o da Polícia Rodoviária Federal parece ser o modelo mais interessante, com uma proposta de curso inicial aos membros da carreira com ênfase nos direitos humanos, e que engloba alguns aspectos dos direitos de crianças, adolescentes e jovens, além de possuir uma comissão permanente de direitos humanos que tem proposto várias iniciativas interessantes, como o projeto Mapear[2] que produz um diagnóstico dos pontos de vulnerabilidade sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais, em parceria com a Childhood Brasil, o Ministério Público do Trabalho e o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Em minha experiência como estudante de Direito na Universidade Federal do Pará (UFPA), o primeiro contato com a temática dos direitos de crianças e adolescentes (aqui excluindo os direitos das juventudes), em 2005, foi em decorrência da iniciativa de um grupo de estudantes que se organizou para fundar o Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular “Aldeia Kayapó”, em que foram conduzidos projetos de educação em direitos humanos com adolescentes de escolas públicas de Belém. Mas, foi somente quando me aventurei por disciplinas no Serviço Social, que pude, efetivamente, discutir com docentes tal temática. Isto me gerou a conclusão, depois reforçada com a experiência obtida na Universidade de Brasília[3], durante o doutorado em Direito, de que muitas vezes são os cursos externos ao Direito, em especial Serviço Social, Psicologia e Pedagogia, os que mais fomentam aspectos da formação e de atividades de pesquisa e extensão voltados à abordagem de temáticas sobre os direitos de crianças, adolescentes e jovens. 

Sabemos que estas não são barreiras que afetam apenas o campo jurídico, mas a academia, o Estado e a sociedade como um todo. O déficit de formação e acesso à conhecimentos adequados sobre os direitos de crianças, adolescentes e jovens tem produzido uma distorção preocupante da opinião pública sobre as formas de lidar com tais sujeitos, como em relação às temáticas de vacinação de crianças contra a Covid-19 e do ato infracional (ou da violência juvenil), e das possibilidades, em cada caso, de estruturar as respostas socioestatais. Na era dos discursos populistas e sensacionalistas e dos usos das redes sociais para a disseminação de fakenews, nadamos contra a corrente para produzir e difundir conhecimentos pautados em evidências científicas e em uma linguagem socialmente acessível (ou seja, não carregada em termos academicistas).

Por tudo isso é que considero que a proposta original da Coluna, indicada na entrevista que concedi aos editores do Empório do Direito, e publicada no simbólico dia de 13 de julho de 2019 (em que se comemora o aniversário do Estatuto da Criança e do Adolescente), permanece como o eixo central da produção de conhecimento neste espaço: “tratar de diversos assuntos ligados às temáticas dos direitos, das políticas públicas, da jurisprudência, das investigações sociais e das ações políticas paracom e sobre as crianças, as/os adolescentes e as/os jovens, desde uma perspectiva crítica, interdisciplinar e cientificamente fundamentada. Os assuntos serão os mais diversos possíveis, tratando de questões atuais e/ou históricas, de cunho teórico, empírico e/ou normativo, sempre que possível dialogando com (ou abordando) pesquisas em andamento pelos grupos parceiros da empreitada, além de estar atento às diversidades, às adversidades e às resistências dos modos de ser ‘criança, adolescente e jovem’ no Brasil.”[4]

Assim, desde julho de 2019 até o atual momento, um total de 106 artigos foram elaborados pelos cinco grupos que compõe a organização da Coluna: Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente da OAB/PA; Escola de Conselhos de Pernambuco vinculada à Universidade Federal Rural de Pernambuco; Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente vinculado à Universidade Federal de Santa Catarina; Observatório da População Infantojuvenil em Contexto de Violência vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Norte; e, UFPA.

Trata-se de uma quantidade relevante de artigos produzidos, em que se constata a capacidade de organização de cada equipe para dar conta da demanda semanal com uma ampla variedade de temáticas. Dentre elas, fiz a sistematização das que possuem uma maior quantidade de artigos que as abordam como assunto principal. O quadro a seguir possibilita a visualização das oito categorias temáticas mais recorrentes.

 

Fonte: elaboração própria.

Estas oito categorias temáticas reúnem 73 dos 106 artigos publicados ou 69% de toda a produção textual da Coluna. As outras 33 publicações dizem respeito a temas variados como adultocentrismo/menorismo, saúde, trabalho, esporte, violências etc.

Um aspecto interessante diz respeito às três categorias temáticas com maior quantidade de artigos relacionados. A primeira, “rede de proteção”, reúne um conjunto de artigos que objetiva discutir os aspectos operacionais do atuar em rede, ou de maneira intersetorial, e propondo reflexões para a melhoria das políticas públicas no atendimento das demandas de crianças, adolescentes e jovens.

A segunda, que mais bem poderia ser definida como os impactos da “pandemia da Covid-19” nas condições de vida de crianças, adolescentes e jovens, representa e, ao mesmo tempo, apresenta o caráter totalizante da pandemia (ou de fato social total, como propõe Marcel Mauss) e de suas implicações em todas as áreas dos direitos e da vida de crianças, adolescentes e jovens, ao que, neste ponto, tornam-se artigos que buscam produzir uma (re)leitura dos outros temas desde a forma como se (re)configuraram ao longo das etapas da pandemia no Brasil.

Por fim, a categoria temática da “diversidade” reúne textos que refletem, criticamente, sobre as diferentes configurações subjetivas e identitárias de crianças, adolescentes e jovens, com base em marcadores de gênero, sexualidade, raça, etnicidade, classe e pessoa com deficiência, para descortinar as relações de poder que produzem desigualdades, discriminações e violências contra os sujeitos e seus grupos de pertença. E, ao mesmo tempo, anunciam possibilidades de enfrentamento destas adversidades com o uso das ferramentas jurídicas, da mobilização social e de uma mudança na postura do Estado e da sociedade.

Em uma síntese geral dos artigos produzidos na Coluna diria que propõe, de maneira variada, a necessidade de se levar a sério a prioridade absoluta no cumprimento dos direitos de crianças, adolescentes e jovens, e estabelecem uma crítica interdisciplinar ao projeto de sociedade que está por trás das lógicas de interpretação e aplicação destes direitos, e consequentemente de suas violações.

Assim, em 2022, temos o desafio de dar continuidade à esta produção intelectual e de assegurar a ampliação de sua difusão junto à academia, ao Estado e à sociedade, particularmente, neste último caso, pensando os sujeitos crianças, adolescentes e jovens. O desafio está em fazer com que nossas pesquisas e reflexões possam ser, cada vez mais, socialmente acessíveis e politicamente engajadas nas lutas pela promoção destes direitos e no enfrentamento das ameaças de retrocessos sociais, jurídicos e democráticos.

 

Notas e Referências

[1] Artigo em que o autor tece uma análise sobre esta grande historiadora das infâncias no Brasil e, ao mesmo tempo, discorre sobre a trajetória histórica do Grupo de Trabalho História das Infâncias e Juventudes pertencente à Associação Nacional de História (ANPUH/Brasil). Link para acessá-lo: https://periodicos.uffs.edu.br/index.php/FRCH/article/view/12646/8315

[2] A última edição deste mapeamento, referente ao biênio 2019/2020, pode ser acessada pelo link: https://www.gov.br/prf/pt-br/noticias/nacionais/projeto-mapear_v3.pdf

[3] Em que a disciplina de direitos das crianças e dos adolescentes, ministrada em sede de graduação, é conduzida fora da Faculdade de Direito, por docentes majoritariamente ligados ao Serviço Social.

[4] Conferir a entrevista completa de lançamento da Coluna no endereço eletrônico: https://emporiododireito.com.br/leitura/entrevista-de-lancamento-da-nova-coluna-criancas-adolescentes-e-jovens

 

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