Por Bruno Miragem - 04/11/2015
Na célebre tripartição romana, destacada, sobretudo, nas Institutas de Gaio, a racionalização das relações jurídicas se punha a partir das categorias fundamentais, de pessoas, coisas e ações (persona, res e actio). As pessoas, a quem se atribuiu depois - sobretudo como resultado da escola jusracionalista – a condição abstrata de sujeitos de direito, distingue-se, habitualmente, como pessoas naturais (seres humanos) e pessoas jurídicas. Neste ponto, não se perca de vista que até pouco tempo atrás, também se indicava distinção, de fundamento romanístico, entre as pessoas naturais e os monstros – assim entendidos aqueles que nascidos seres humanos, não eram dotados “de forma humana”, ou seja, vinham ao mundo com deformidades tais que não se identificavam como humanos. Da mesma forma, é recente, do ponto de vista histórico, a qualificação de certos seres humanos – distinguidos em geral pela cor ou etnia – como espécies de “coisas” passíveis de apropriação privada, em termos tais para permitir fundamentação jurídico-formal à escravidão. Diga-se ainda que, em caráter excepcional, é reconhecida também a capacidade postulatória dos chamados entes despersonalizados, a expressar projeção de interesses humanos, como nos casos da massa falida ou do condomínio. Quanto a estes últimos, não são pessoas, mas tem seus interesses reconhecidos para efeito de tutela jurídica, que indiretamente dizem respeito a determinados indivíduos que com eles se relacionam.
Esta brevíssima introdução serve para assentar que as categorias construídas pelo Direito o são segundo a tradição, mas em acordo com a mentalidade de uma época. O Direito é que deve servir ao bem comum e à tutela de interesses legítimos na vida de relações e não o contrário. Desconsiderar isso resulta em esforço inútil frente ao motor das exigências da realidade, que se contrapõe ao formalismo de velhas fórmulas jurídicas, cujo sentido original é esvaziado pelo passar do tempo.
Esta tensão entre a tradição do Direito, a exigência de soluções contemporâneas e a contínua releitura de conceitos clássicos, tem no status jurídico reconhecido aos animais um exemplo emblemático. Tradicionalmente, os animais se qualificam como coisas. Assim era no direito romano e até hoje na legislação brasileira: os semoventes a que se referia o art. 47 do Código Civil de 1916 e ora o art. 82 do Código Civil de 2002. Assim são reconhecidos na doutrina tradicional.
A par desta classificação formal, contudo, não se perde de vista que o espírito humano desde o último século passa a distinguir, ainda que sem exata clareza, uma dignidade própria aos animais, vinculando-se cada vez mais por laços de respeito ou afetividade, e em linha de consequência, apartando-os das demais coisas passíveis de apropriação. A ética fundante das relações do ser humano com os demais elementos do meio ambiente, de sua vez, assiste conhecida transição entre uma visão antropocêntrica (preserve-se o mundo para que ele possa continuar servindo ao homem), para uma visão biocêntrica (as coisas do mundo e seu meio ambiente tem valor em si mesmo, e por isso devem ser preservados).
Efeitos desta nova visão se fazem sentir no Direito em geral, e no Direito privado em particular. Na última década do século passado, uma conhecida decisão do Supremo Tribunal Federal colocou em destaque a proteção dos animais contra atos de crueldade, previsto no art. 225, VII, da Constituição Federal. O Caso da “Farra do Boi” (RE 153531-8/SC) resultou na declaração de inconstitucionalidade da Lei do Estado de Santa Catarina que instituía esta prática no calendário estadual de eventos, sob o argumento de que se tratava de manifestação cultural protegida pelos arts. 215 e 216 da Constituição da República. A Corte entendeu, na ocasião, haver colisão entre os direitos de livre manifestação e preservação da cultura regional, e o direito à proteção do meio ambiente, decidindo em favor deste e coibindo a prática considerada cruel aos animais.
Mais recentemente, o mesmo fundamento foi esposado na Ação Direta de Inconstitucionalidade 1856/RJ, na qual se declarou a inconstitucionalidade de Lei Estadual do Rio de Janeiro, que favorecia a “Rinha” ou “Briga de Galos”. Em sua decisão, o Min. Celso de Mello, relator da ação, destacou que: “a proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade. - Essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais”.
Não se perca de vista, contudo, que a Constituição da República, em seu sentido original, protege os animais, segundo o art. 225, VII, contra atos de crueldade, fazendo-o em vista da realização de um direito fundamental de proteção e preservação do meio ambiente, que é, antes de tudo, um direito humano fundamental. Há aqui, nítida marca de uma visão antropocêntrica da proteção do meio ambiente, da qual, inclusive, se pode permitir associações entre a preservação dos animais contra atos de crueldade e o próprio sistema de valores da Constituição, coroado pelo princípio da dignidade da pessoa humana (o raciocínio sintético: ofenderia a dignidade humana o comportamento daquele que gratuitamente submetesse animais a atos de crueldade, ofendendo sua própria “humanidade”).
A rigor, esta discussão, sem que se tenha em vista a necessária atualização das categorias tradicionais do direito no ponto, perde-se em um discurso circular, no qual ninguém, em sã consciência, deixará de ser contra maus-tratos e crueldade contra animais. Porém, para além disso, não produz maiores efeitos práticos. Um primeiro movimento de concretização deste novo status jurídico dos animais foi a edição da Lei dos Crimes Ambientais (Lei 9.605/98), que além de fixar tipos penais específicos para crimes contra a fauna silvestre (arts. 29 e ss.) e também maus-tratos contra animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos (art. 32), define como circunstância agravante “o emprego de métodos cruéis para abate ou captura de animais;”(art. 15, II, “m”).
Neste caso, não avançou a lei no sentido de alterar formalmente o status jurídico dos animais, embora lhes tenha endereçado proteção em vista da concretização do que define o art. 225, VII, da Constituição da República. No âmbito dos conceitos jurídicos, mudanças em geral não se fazem apenas por lei, mas por evolução do convencimento comum sobre a natureza, ou acerca de dadas características do que procura expressar certa categoria.
Por outro lado, pode haver um apressamento da discussão quando se fala indistintamente em um “direito dos animais”, ou no “direito” do animal a certas prestações ou comportamentos humanos. Não há categoria em nosso sistema que permita falar-se em direito subjetivo do animal. O pressuposto para a titularidade de direitos é a personalidade, e animais não são pessoas. Todavia, não significa que sejam coisas como quaisquer outras. E antes que se contra-argumente com a existência de uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais da UNESCO, de 1978, a qual expressamente reconhece direitos subjetivos aos animais, o fato é que tal não resolve um problema, que apenas a cuidadosa redefinição de conceitos jurídicos assentados pela tradição histórica do Direito pode fazer. Proclamar-se os direitos dos animais não resolve problema algum, se do ponto de vista prático, não se encaminhar uma atualização dos conceitos assentados na dogmática e na doutrina.
Foi esse caminho seguro que tomaram, primeiro, os austríacos, em 1988, estabelecendo que os animais não são objetos, são protegidos por leis especiais, e as leis que dispuserem sobre objetos não se aplicam aos animais, exceto se houver disposição em contrário” (art. 285 do ABGB). Na mesma linha, os alemães atualizaram o BGB, incluindo um novo artigo na sua Parte Geral, definindo os animais em seu §90-A, nos seguintes termos: “Animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. São regidos pelas disposições que se aplicam às coisas, com as modificações necessárias , exceto nos casos em que exista previsão em contrário.” (“Tiere sind keine Sachen. Sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Auf sie sind die für Sachen geltenden Vorschriften entsprechend anzuwenden, soweit nicht etwas anderes bestimmt ist.”). Seguiu definição semelhante, neste particular, o Código Civil da República Tcheca, de 2014, que mesmo foi além, ao estabelecer em seu §494, “seu significado especial e valor”, assim como indicando que não se aplicam aos animais disposições que contradigam sua natureza (“Live animal has a special meaning and value as an already talented senses alive. Live animal and not a matter to the provisions on the live animal shall apply mutatis mutandis to the extent in which it does not contradict his nature.”).
Recentemente, ganhou destaque decisão da França, que alterou seu Código Civil estabelecendo distinção mais radical, ao definir os animais como seres sencientes, ou seja, dotados de sensibilidade e, por isso, passíveis de proteção legal distinta das coisas. Assim, o novo art. 515-14, do Código Civil francês ”Les animaux sont des êtres vivants doués de sensibilité. Sous réserve des lois qui les protègent, les animaux sont soumis au régime des biens”. Acompanha, neste sentido, o que prestigiosos neurocientistas já afirmaram em relação à aptidão dos animais para certos níveis de consciência e afetividade, do que é manifestação mais conhecida a The Cambridge Declaration on Consciousness, de 2012.
No direito brasileiro, há iniciativa legislativa no mesmo sentido (Projeto de Lei do Senado 315/2015, de autoria do Senador Antônio Anastasia), visando alterar o Código Civil no ponto, de modo a introduzir um parágrafo único ao seu art. 82, com a seguinte redação “Os animais não são considerados coisas”, e incluindo-os entre os bens móveis, “ressalvadas disposições especiais” (mediante a proposição de novo inciso IV, ao art. 83).
O caminho de redefinir a classificação dos animais no Direito privado, seja na avançada conceituação como seres sencientes, seja em mudança mais restrita, simplesmente distinguindo-os das coisas, promove a alteração de seu status jurídico em sentido mais amplo, cuja eficácia se projeta em todos os setores do Direito. Trata-se, ademais, de estratégia mais correta e coerente com o sistema jurídico posto. Isso porque, simplesmente desejar – como certa linha de entendimento pretende – que se considerem os animais como sujeitos de direito, implica em desafios muito mais complexos, e que avançam além do que se percebe da realidade da vida. Tais como justificar, nestes termos, porque se autoriza a morte dos mesmos para fins de alimentação humana, ou ainda seu aprisionamento no caso de animais domésticos, ou dos silvestres em zoológicos, apenas para ficar em dois exemplos mais destacados. Até onde nossa compreensão alcança, tais justificativas guardariam, sempre, certo grau de incoerência sistêmica ou incompletude, quanto às soluções dadas para definir restrições a interesses fundamentais (ou mesmo direitos que se reconheçam) a estes “sujeitos”.
O caminho da evolução do pensamento e da prática humana em relação aos animais está aberto no âmbito do Direito. Nada obsta, contudo, que seja trilhado com a segurança necessária para que qualquer redefinição conceitual, mais do que vença, convença. E altere, no campo das relações entre o ser humano e os outros animais, o status e o cuidado que se reclama em vista de uma nova mentalidade havida na realidade da vida, e que deve ser reconhecida pelo Direito. Afinal, disso tudo resta óbvio é que os animais são diferentes de coisas.
Bruno Miragem é Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Advogado.
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