Por Tânia Maria S. de Oliveira – 31/08/2017
Exatos cinco anos após a comissão especial de juristas apresentar o texto que foi assumido pela autoria do então senador José Sarney, o PLS 236/2012, que visa a reformar em sua inteireza o Código Penal brasileiro, volta à pauta do Senado Federal para o que será sua terceira versão, sob a relatoria do Senador Antonio Augusto Anastasia, tendo passado por um substitutivo do senador Pedro Taques, em 2014 e outro do senador Vital do Rego, em 2015, sem que tenha sido apreciado.
O primeiro ato do senador Anastasia no âmbito da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania no Senado, onde o projeto de código tramita, foi o de convocar audiência pública para debater o tema. A primeira ocorreu no último dia 08 de agosto, com a presença de advogados, professores da área e um representante do Ministério Público Federal.
Com seus 542 artigos, o projeto de novo código pauta-se no discurso cujos pilares são: a necessidade de consolidação das leis penais, tendo em vista haver uma grande quantidade de leis penais fora do Código Penal, a defasagem do atual Código, de 1940 e, em consequência, a adaptação à realidade brasileira. Um discurso superficial, cuja legitimidade é apenas aparente, carecendo de aprofundamento. Os textos produzidos no Senado até aqui são compilação de legislações já existentes, algumas que sequer se enquadram na sistemática de código, e acréscimos perigosos, mal formulados, pouco debatidos.
As críticas postas pelos operadores do direito durante a audiência pública estão em consonância com as discussões levadas a curso por toda a comunidade jurídica na ocasião da apresentação do projeto no ano de 2012. Genericamente, apontam que há erros grotescos de forma e técnica além de indicar o risco rela de que, sob o discurso de que uma lei se encontra desatualizada, e no afã de uma suposta inovação, termine o parlamento por indicar alterações que que afetam e desvirtuam princípios, sobremaneira no que se refere à parte geral, que a rigor, diferentemente da parte especial, não poderia ser renovada periodicamente, sob pena de atingir a estabilidade como garantia. Equívocos na parte geral, por produzem efeitos sobre todos os delitos em espécie, tendem a ser mais perniciosas do que um erro que se limite a um delito específico.
O texto original do PLS 236/2012 possui problemas de diversas ordens. Os substitutivos, infelizmente, além de não os resolver, trouxeram outras questões negativas que nele não constam. Incorporação das experiências estrangeiras foram feitas, aos moldes da jurisprudência nacional, transportando teorias forasteiras, desconsiderando normas e princípios da teoria jurídica brasileira, de que é melhor exemplo a já famosa teoria do domínio do fato, mal recepcionada na aplicação pelo STF quando do julgamento da AP 470, igualmente mal recepcionada no texto apresentado no substitutivo do senador Vital do Rego. O mesmo se diga da responsabilidade penal da pessoa jurídica, posta em todos os textos, desde o original, demonstrando desequilíbrio do sistema geral de atribuição de responsabilidade entre as pessoas físicas e jurídicas, configurando mera responsabilização simbólica, bem como a parte de autoria e participação, que possui um flerte com a modalidade de responsabilidade penal objetiva no primeiro substitutivo do senador Pedro Taques, algo inadmissível no nosso ordenamento jurídico.
No Brasil, além de todos os problemas do sistema de justiça e de aplicação das normas, possuímos um fetiche dogmático. As teorias desenvolvidas no exterior, que em regra partem de interessantes ideias a respeito de conceitos e institutos penais, com o propósito de resolver problemas concretos, são aqui recebidas com vistas a se transformar em positivação e incorporação no nosso ordenamento jurídico de forma estanque, gerando problemas também práticos e de interpretação.
Quando lemos a respeito da teoria do domínio do fato temos que ela foi pensada no sentido de aperfeiçoar os critérios para diferenciar autoria de participação. Acabou sendo utilizada como forma de identificar aqueles que participaram do delito. Uma distorção que está posta em um dos textos substitutivos.
O cuidado que se deve ter ao mexer na parte geral do atual Código Penal deveria apontar para que se resolvam os defeitos e se faça uma atualização com equilíbrio, sem que as pressões externas exijam inovações que não gozam de estabilidade dogmática ou a inclusão de institutos de característica eminentemente processual e cuja utilização tem causado polêmicas e gerado dúvidas e inseguranças, como é o caso da colaboração premiada, que vem prevista no último substitutivo ao PLS 236, de 2012 com uma regulamentação diversa daquela vigente atualmente na Lei 12.850, de 2013.
Embora aparentemente o senador Anastasia, como novo relator, afirme pretender fazer vários debates para ouvir a comunidade jurídica, o que se mostra uma atitude louvável, de plano é preciso que se diga que pautar novamente esse tema às vésperas do início de debates eleitorais já se apresenta um sintoma ruim. Ninguém desconhece o clamor público em defesa do recrudescimento, e o quanto a pauta se exacerba em período eleitoral.
A pergunta que se deve fazer, sob a ótica da finalidade, é: o que nós queremos com essa reforma? Um projeto que se proponha a substituir todo um código podia ser inteligente no uso de penas restritivas de direito, por exemplo, as chamadas penas alternativas, introduzidas em 1984. Sendo, àquele tempo, uma reforma setorial, foram incluídas na parte geral, como cláusula de permissão de substituição das penas privativas de liberdade. Nada obsta, contudo, que sejam cominadas diretamente a algumas infrações. O projeto, ao oposto, restringe a aplicação das penas alternativas e coloca a pena de multa, por exemplo, em um impasse.
Quando se pretende alterar toda uma sistemática e os fundamentos de uma dogmática diante de uma ruptura de um sistema ou de uma mudança drástica de regime político, evidentemente a proposta de reformulação integral do Código se faz necessária. Não é o caso que se apresenta.
Não se sabe, na atual conjuntura política e com a composição congressual que o Brasil possui se é possível construir um novo Código Penal que corrija os erros e avance, que fuja à contaminação do sistema penal por uma ideologia conservadora, ou a normatização de uma concepção autoritária de política criminal.
Uma vez deflagrada a continuidade do processo de reforma, espera-se que o PLS 236/2012 afaste-se da trilha do esforço de compilação acrítico, que haja uma participação ativa dos operadores jurídicos, na busca de construção de um texto que não seja apenas a correção de eventuais e pontuais erros existentes, mas sim justificado na construção de um Código Penal definidor de normas garantidoras, que sejam, efetivamente, a última ratio, o derradeiro instrumento de controle social.
. . Tânia Maria S. de Oliveira é Mestre e Pós-graduada em Direito. Pesquisadora do GCcrim/Unb. Assessora jurídica no Senado. . .
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