Pensamento Pós-Hermenêutico: um contraponto cibernético à subcultura da interpretação - PARTE VI

23/08/2022

Parte VI

Não falamos das coisas em si, mas sim da experiência que nos afeta quando interagimos com algo. Assim, para evitar confusão de domínios, temos de estar atentos para o fato de que experiência e coisa, mesmo que possam ser correlacionadas num metadomínio (ou terceiro domínio que engloba a ambas) inventado por um observador, pertencem a domínios disjuntos, não entrecruzados. Do mesmo modo, convém que tenhamos presente que a descrição da experiência não substitui a experiência descrita, visto que ambas também sucedem em domínios diferentes. A experiência resulta da fenomenologia humana, a descrição da manipulação arbitrária do observador multissensorial.

O resultado desse processo é que todo observador opera na linguagem distinguindo coisas. Essas coisas, sem embargo, não denotam representações do meio envolvente, porque este não pode especificar o que se passa internamente no organismo perturbado durante a interação, por causa de sua determinação estrutural. De modo que, ao fim e ao cabo, o que chamamos de coisas, entes, objetos, situações, estados processos, reduzem-se a matrizes de configurações sensório-operativo-relacionais evanescentes que passam a ser tratadas nas redes de conversações como se tivessem - digamos -  vida própria, independentemente da operação de distinção que os gerou na linguagem.

Por enxergar no fenômeno linguístico essa propriedade fecundante, geradora dos multiversos que constituem nosso viver cotidiano, mais adiante retomarei essa discussão iniciada na parte I, para, finalmente, mostrar que a noção de linguagem simbólica - concebida como um sistema de signos - está relacionada a um reducionismo fenomênico, conservado ao longo dos tempos para atender às necessidades discursivas do padrão hermenêutico de pensar, pois, mesmo que signos, palavras, símbolos expressem modos de os seres linguajeantes fluírem no linguajear, suas funções são basicamente evocativas de coordenações consensuais recursivas de sentimentos, fazeres e emoções, que os antecedem no tempo e no espaço.

É também nesta última parte que abordo e discuto a noção maturaniana de interobjetividade, proposta com o intuito de evocar a emergência dos entes, objetos, coisas, fenômenos, situações, estados, acontecimentos, processos, dinâmicas, que, da perspectiva do observador multissensorial, formam o cosmos, o mundo, a realidade que nos envolve. Veremos, porém, no curso da aplicação deste enfoque bioculturofenomenológico a alguns casos concretos, que tudo isso dispensa apego a supostos apriorísticos e ontológicos, porque, estritamente, nada preexiste à origem do observador, inclusive os hermeneutas e a interpretação.     

 

1. A Linguagem e a Emergência da Realidade

Gregory Bateson faz algumas ponderações que me parecem pertinentes a tudo o que acabei de expor até aqui. Segundo o antropólogo britânico, o fato de compartilharmos certas proposições nada assegura que não sejam falsas. Fazemos isso recorrentemente até tropeçarmos nos erros, que, geralmente, não são fáceis de detectar. Realmente, as premissas errôneas funcionam bem, mas, por outro lado, aplicam-se tão somente até certo ponto. E se, em certo estágio e sob certas circunstâncias, alguém carrega graves erros epistemológicos, pode dar-se conta de que tais suposições desmoronaram-se. Então, descobre com horror o quanto é difícil desgrudar-se de um erro viscoso como mel. (BATESON, 1978, pp. 478-479, tradução livre).

Isso não é tudo, porém. Bateson prossegue argumentando que, por via de regra, o erro epistemológico é reforçado e, por esse motivo, autovalidante. Logo, é possível que sigamos vivendo e convivendo comodamente, mesmo que, em níveis abissais de consciência, abriguemos premissas básicas inconsistentes. (BATESON, 1998, p. 325, tradução livre). Essa me parece ser a sensação que me despertam as noções convencionais de realidade, mente, linguagem, interpretação, emoção, razão, objetividade, intersubjetividade, subjetividade, que são cotidianamente reproduzidas nas redes de conversações como se fossem fieis expressões dos fenômenos evocados na experiência.

Erros ocorrem, evidentemente, mas não são defeitos em si. O ser vivo que erra não sabe, estritamente, que está errando no instante em que erra, a menos que esteja mentindo. Não existe erro a priori, exceto no domínio do PNM, porque, enquanto seres vivos humanos, não distinguimos entre ilusão e percepção no curso de nossas operações de diferenciação na linguagem. Trata-se de experimento comprovado em laboratório, motivo pelo qual deixo de explicitá-lo aqui.[1] O erro e o equívoco não se dão no fazer, porque só aparecem, a posteriori, na reflexão sobre o que foi feito (DÁVILA; MATURANA, 2019, Intr. p. 2-3).

Mesmo que convenha ao mainstream thinking[2] o entendimento de que a linguagem é um sistema de signos; a realidade, algo transcendente; a mente, um fenômeno neurofisiológico; a interpretação, uma compreensão existencial, quando não um procedimento de acesso à realidade transcendente, supondo a observação separada do observador, tudo isso só se torna operacional quando aceito pelo observador multissensorial, visto que as interações linguísticas são intrinsecamente não informativas, em virtude da determinação estrutural ínsita a qualquer ser vivo interatuante.

O domínio linguístico – como domínio consensual que resulta do acoplamento estrutural de sistemas autopoiéticos – é, pois, intrinsecamente não informativo, ainda quando um observador descreva-o como se o fora, desatendendo a determinação interna que o torna desse modo. Fenomenologicamente, o domínio linguístico e o da autopoiese [molecular] são diferentes entre si, e mesmo que um produza elementos do outro, não se entrecruzam. (MATURANA; VARELA, 2003b, p. 115-116, tradução nossa)

Na realidade, como toda criança que aceita candorosamente a lenda escandinava da cegonha e a vivencia como algo verídico, ao menos até o momento em que se dá conta de que o processo de gestação de um bebê não sucede num mundo transcendente ao útero materno, o Pensamento Hermenêutico, a menos que se conduza de má-fé, crê na linguagem como um sistema simbólico[3]. Na verdade, a adesão a esse tipo de noção não diz respeito à singela opção por um modelo linguístico, porque, no fundo, traduz uma questão de sobrevivência, visto que a condição hermenêutica se encontra sempre subordinada à preexistência de algo suscetível à manipulação arbitrária de um intérprete.

Realmente, convém ao PNM manter - a qualquer custo - essa imagined reality[4]. E uma das formas de conservar essa noção é ocultando que a linguagem não se encerra num sistema de signos.[5] Aliás, no sentido harariano mais transparente, para salvar a fama e o sucesso dos hermeneutas, é necessário ocultar o fato de que a linguagem não configura um instrumento simbólico. Essa fake news tem de ser forçosamente sustentada, sob pena de virem abaixo todas as bibliotecas. De fato, seria catastrófico. Afinal, como desfrutar do cafofo hermenêutico sem uma realidade “intersubobjetiva”[6] denotada por um sistema de signos ─ sempre aguardando o milagre da interpretação?

Sucede que, estritamente, o sentido e o significado que abstraímos de nosso viver cotidiano não residem nos signos, nas palavras.[7] Na verdade, resultam do domínio consensual que emerge plasticamente no acoplamento estrutural em que sistemas autopoiéticos linguajeantes interagem recorrentemente. Ademais, consenso não é acordo,[8] este, embora possa ocorrer tacitamente, demanda reflexão sobre os fazeres e emoções que estão em jogo na interação; por outro lado, a consensualidade satisfaz-se com a compensação plástica entre as perturbações que se sucedem no domínio de acoplamento interacional recorrente, sem necessidade de reflexão sobre as coordenações de ação em curso no domínio observacional.

A linguagem não é um instrumento para a designação simbólica de objetos, embora símbolos e signos surjam no linguajear[9] como dinâmicas recursivas de coordenações de sentimentos, emoções e fazeres[10]. Objetos, entidades, ideias e conceitos surgem no linguajear como formas consensuais de coordenações recursivas de sentimentos, emoções e ações, e as palavras conotam essas formas de coordenações recursivas de sentimentos, emoções e fazeres. (DÁVILA; MATURANA, 2015b, p. 65, tradução nossa)

A realidade efetivamente existe, porém “como uma proposição explicativa de nosso viver, ao explicarmos tudo o que fazemos, pensamos e sentimos na realização de nosso viver, usando as coerências sensório-operativo-relacionais da realização de nosso viver” (DÁVILA; MATURANA, 2015b, p. 190, tradução nossa). Sua existência, no âmbito pós-hermenêutico, dá-se, no entanto, de modo radicalmente distinto em domínios interobjetivos, como parte integrante da arquitetura dinâmica[11] da unidade ecológica organismo-nicho, em cujo domínio tudo o que emerge nas operações de distinção do observador passa a ser tratado e manejado como coisa, entidade, objeto, mente, corpo, norma, texto.

Objetos, entidades, noções, ideias, conceitos etc., surgem como coordenações de coordenações de fazeres, e não existem de outra forma. O significado das palavras, frases, signos e símbolos não está nas palavras, mas no fluxo de coordenações de fazeres que elas coordenam [12] (MATURANA, 2008, p. 20, tradução nossa).  Como os objetos surgem em cada recursão no fluxo de coordenações consensuais de fazeres, diferentes formas de viver surgem como diferentes domínios de objetos e passam a ser conservadas de acordo com o fluxo da emoção dos que convivem em coordenações consensuais de fazeres. Quando isso acontece surge um modo de viver em coordenações recursivas de sensorialidades que é visto como um domínio de objetos compartilhados que chamo de domínio da interobjetividade porque é vivido como um mundo de objetos comuns como se fossem entidades independentes[13]. (MATURANA, 2006, p. 98, tradução nossa).

No atual estado da arte, à semelhança do que sucede com os vocábulos interpretação, definição, razão, emoção, objetividade subjetividade, verdade, o abandono da palavra realidade traria muito mais torpor que luzes à dinâmica operativo-relacional. O fato de, frequentemente, evocarmos matrizes sensório-operativo-relacionais, que abstraímos em nosso operar distintivo como aspectos de nosso viver-conviver cotidiano, recorrendo a esse lexema mostra quão fossilizado ele se acha na rede de conversações patriarcais que nos envolve.

Assim, falamos de realidade social, econômica, jurídica, política, sistêmica, familiar, educacional, mundial etc. A palavra realidade tem, portanto, sua ontogenia, e nada impede que sigamos fazendo dela uso operacional. O nó górdio da realidade não reside em si mesma, mas sim no erro epistemológico que ela evoca e do qual agora nos damos conta. Atualmente, quando usamos palavras como: compreensão, pré-compreensão, interpretação, definição, objetividade, intersubjetividade, subjetividade, absoluto, relativo, razão, emoção, verdade, poder, dominação, para evocar coordenações e configurações recursivas de sentimentos, emoções e fazeres que abstraímos de nosso viver cotidiano, trazemos à mão a epistemologia da realidade transcendente.

Sucede que, intrinsecamente, não distinguimos entre percepção e ilusão no instante em que operamos no linguajear, distinguindo configurações relacionais porque, para o bem ou para o mal, dispomos de uma organização operacionalmente fechada e determinada pelo estado de sua própria estrutura (MATURANA, 1970, 1988, 1989, 2005, 2006; 2008). Desse modo, nada que nos é externo determina o que se passa em nossa interioridade. Entre sistemas autopoiéticos moleculares ou entre estes e o meio, não há qualquer possiblidade de instrução ou de transmissão automática de mensagens ou informação.

Claro que, depois que nascemos, ou até mesmo antes do parto, nos deparamos com coisas, entes, objetos, cujas configurações perceptuais, equivocadas ou não, passam a circular nas redes de conversações como se fossem independentes de nossa sensorialidade fisiológica; contudo, só podemos falar delas e pensar sobre elas depois que as distinguimos no linguajear e lhes atribuímos ou aceitamos algum nome que lhes já fora posto (MATURANA; POERKSEN, 2011). A partir da distinção do observador - antes jamais -, passamos a dizer que tal ou qual coisa, entidade, objeto existe.

Não se trata, no entanto, de uma existência automaticamente universal. Pelo contrário, a universalidade de uma proposição explicativa sempre será, necessariamente, diretamente proporcional à universalidade da aceitação do critério de validação aplicado pelo observador no momento da sua distinção no linguajear. É precisamente dessa maneira que exsurge a consensualidade em qualquer acoplamento social humano. Quanto maior aceitação do critério de validez, maiores as chances de a proposição prevalecer nas redes de conversações. Havendo recusa ou irrelevante aceitação, o objeto perceptual proposto tende a esvanecer-se na arquitetura dinâmica do observador, como uma frustação ou tal qual um eterno e estimado voto vencido.

Nessa dinâmica operacional de diferenciação,[14] o próprio observador multissensorial, que não é um ente físico, apesar de operar a partir de um suporte orgânico-molecular que o viabiliza, surge no processo de distinção numa operação recursiva de quarta ordem. E, para que isso suceda, não é necessário apego a qualquer suposto ontológico ou coincidência de subjetividades a partir de algum suposto acesso compartilhado a certa realidade transcendente. Sem embargo, o óbvio nem sempre está explícito, por isso nunca será demasiado repeti-lo:

Os objetos surgem na linguagem; não existem por si mesmos; não preexistem a seu surgimento…, e têm a concretude operacional de nossa operação estrutural na realização de nosso viver. […] Os diferentes mundos [ou entidades] que vivenciamos como seres linguajeantes são diferentes domínios de interobjetividade, que […] se tornam parte do meio em que existimos acoplados estruturalmente. Nesse sentido, nenhum dos objetos ou entidades, que surgem em nossos domínios de interobjetividade, é trivial, por mais abstrato que pareça a um observador ingênuo, porque todos fazem parte do nicho [ecológico] em que [realizamos e] conservamos nosso viver[15]. (MATURANA, 2005, p. 65, tradução nossa)

 

2. Teste Bioculturofenomenológico

Quando, a partir de nossa maneira de pensar pós-hermenêutica, dizemos que todo substantivo oculta um verbo[16],  desejamos enfatizar exatamente isso. No domínio da descrição simbólica, portanto do manejo discursivo e arbitrário, o substantivo é uma palavra ou nome usado para evocar um ente ou objeto, cuja matriz sensório-operativo-relacional emerge na operação de distinção do observador no linguajear, contudo não faz referência à ação (ou verbo) que constitui o objeto, tampouco à fenomenologia emocional que todo verbo arrasta e com a qual especifica a ação.

Como o magistério e a advocacia são meus principais ofícios profissionais, para iluminar esse tema, inspirado em Balbi (2007), proporei duas situações recorrentes no meu viver cotidiano, uma no domínio educacional e outra no campo jurídico, as quais aqui intitularei de “Experiência 1” e “Experiência 2”. Na primeira delas, descrevei uma situação escolar muito comum, associada a trotes de estudantes. Na segunda, também desde a perspectiva pós-hermenêutica, reexaminarei uma situação criminal julgada pela Justiça, buscando mostrar a adequação explicativa da Cibernética 3.0 a ambos os domínios fenomênicos.

 

2.1 A experiência 1

Pois bem, no Brasil, na 1ª série do Ensino Médio, os educandos são iniciados no estudo filosófico.[17] Geralmente, como se trata de algo novo na práxis do viver cotidiano do alunato, o educador se apresenta: - Olha, eu serei o professor de Filosofia de vocês, nesse primeiro período. Dessa maneira, então, numa recursão de 1ª ordem, surgem mais duas coisas na vida de relação dos alunos: um professor e um componente curricular a ser estudado: a disciplina Filosofia.

Na mesma operação de distinção, os educandos distinguem o educador e passam a tratá-lo como tal, segundo as coerências operacionais ou regularidades do ofício. Nessa operação de distinção, no fluxo do linguajear, sucede mais uma recursão, só que agora de 2ª ordem. Na sequência, no momento em que o ente educador surge na operação de distinção do observador educando, uma recursão de 3ª ordem cuida de diferenciar as relações entre entes ou objetos constituídos no linguajear e com o próprio ato de distinção. Por exemplo, os alunos, depois de identificarem o professor, certificam-se de que não se trata de um trote de algum aluno veterano e passam a validar a distinção como uma percepção, ao invés de desvalorizá-la como um equívoco ou ilusão. Chegam então à conclusão de que o tal professor de Filosofia é “real” mesmo, e não um aluno brincalhão fingindo-se educador.

O curioso é que, na mesma operação de distinção em que aparece o professor, emerge também o observador multissensorial, numa recursão de 4ª ordem. Surge a auto-observação ou autoconsciência no observar nas conversações. O observador educando distingue-se a si mesmo na relação com os demais entes ou objetos (professor, colegas, cadeiras, livros, cadernos, componente curricular de Filosofia) presentes no background educativo ou domínio observacional alvejado, que passam a compor um domínio de realidade ou de interobjetividade, como parte da arquitetura dinâmica do nicho ecológico dos educandos, do educador, do sistema autopoiético molecular que se realiza e se conserva em seu viver-conviver.

Como qualquer outra coisa, ente ou objeto, a disciplina Filosofia também surge na operação de distinção do professor, dos alunos ou de algum outro observador, da mesma forma, como uma matriz sensório-operativo-relacional, sem necessidade –vale repetir– de qualquer referência a supostos intersubjetivos, ontológicos ou a um ser em si exterior.[18] Tão somente depois do fazer ou operar distintivo do observador, é que passamos a tratar o professor, os alunos, o componente curricular de Filosofia como se fossem totalidades ou unidades discretas transcendentes, mas não senão por conta de viscosas razões epistemológicas, jamais ontológicas.

Um observador, em suas explicações e conversações com outros observadores duma comunidade a que todos pertencem, não revela uma suposta realidade transcendente às suas operações de distinção na linguagem, nem visões subjetivas de uma suposta realidade, apenas gera, em conjunto com os demais membros da comunidade, âmbitos de interobjetividade, como domínios recursivos de coordenações de coerências de sentimentos, fazeres e emoções consensuais, que surgem como matrizes de coerências sensoriais, operacionais e relacionais constitutivas dos mundos comuns em que realizam sua vivência e convivência. (DÁVILA; MATURANA, 2015b, p. 119, tradução nossa)

 

2.2 A experiência 2

O Direito Penal brasileiro tipifica, como crime de furto, a subtração de coisa alheia móvel, agravando a pena, se, para a consumação do fato delitivo, concorrerem duas ou mais pessoas.[19] É sob a hipótese que se materializa na seguinte experiência paradigmática que colho a jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, aqui descrita no “QUADRO-I” (SÃO PAULO, 2011), desde o qual examinarei quatro aspectos relevantes à luz da perspectiva pós-hermenêutica ou cibernética do conhecimento.

Com base no relato proposto pelo Estado-acusador, tentarei delinear: a) as interações recorrentes e respectivas coordenações recursivas consensuais de sentimentos, fazeres e emoções; b) as matrizes sensório-operativo-relacionais configuradas nas operações de distinção dos observadores multissensoriais no linguajear; c) o enfoque judicial aplicado ao caso; e, d) a determinação estrutural e a emoção especificadora da conduta imputada ao agente e convertida em ação criminosa pela justiça.

QUADRO-I

Às escondidas, um agente ingressou num barracão, situado num terreno baldio e descampado, circundado por muro de dois metros de altura, com acesso guarnecido por um portão de ferro, e de lá, em concurso com outros agentes, subtraiu vitrôs que se encontravam guardados no recinto, motivo pelo qual foi apenado judicialmente em dois anos de reclusão pela prática de furto qualificado.

Inconformado, o agente recorreu ao tribunal argumentando a insuficiência da prova, bem como equívoco no tocante à propriedade dos bens apoderados, pois acreditava que o produto do furto tratava-se de coisas abandonadas.

Ocorre que, ouvida em juízo, a vítima informou ser proprietário do terreno onde as coisas subtraídas estavam. Disse que um vizinho lhe avisou que havia pessoas em seu terreno levando os objetos lá depositados. Fato confirmado pelo depoimento da testemunha, que, além de avisar à vítima, também acionou a polícia.

O policial que acompanhou a ocorrência informou que, quando chegou ao local dos fatos, os vitrôs já estavam do lado de fora do terreno.[20]

 

Eis então a versão fática com base na qual a justiça criminal decidiu condenar o agente a pretexto de que a materialidade (elementos e circunstâncias) e a autoria (agente) do delito foram devidamente comprovadas na forma do devido processo legal, ao tempo em que também resolveu rechaçar a tese de erro de tipo invocada pelo réu, considerando que:

QUADRO-II

Em nenhum momento durante o interrogatório judicial[sic] o apelante fez menção sobre acreditar que as coisas subtraídas eram abandonadas, sem dono. Pelo contrário, o apelante[-acusado] admitiu o furto.

O laudo pericial acerca do local dos fatos atesta que se trata de terreno baldio e descampado circundado por muro de bloco de concreto de cerca de 2 metros de altura interrompido por um portão social de ferro.

Dessa feita, percebe-se que se tratava de lugar protegido, seja pelo muro alto, seja pelo portão de ferro, assim, não se pode acolher a tese de que as coisas subtraídas aparentavam estar abandonadas, eis que estavam no interior de propriedade nitidamente particular.[21]

 

2.2.1 Interações recorrentes e coordenações recursivas de sentimentos, fazeres e emoções

Numa primeira aproximação, detecto no domínio observacional[22], descrito no QUADRO-I, uma descrição semântica de experiências vivenciadas por pessoas no plano relacional. Com efeito, a testemunha notou a presença de pessoas retirando vitrôs do barracão situado no imóvel murado do vizinho (recursão de 1ª ordem); em seguida, dera-se conta de que as pessoas avistadas no barracão lhe eram estranhas; entre outras coisas, notou também a ausência do vizinho e a retirada dos vitrôs (recursão de 2ª ordem).

Quando desconfiou que poderia estar diante de uma provável ação criminosa, certamente com base em informes derivados da relação de vizinhança, então a testemunha, comovida pelo desejo de proteger o patrimônio do vizinho, correlacionou uma coisa com outras e coordenou-se para comunicar a ocorrência, inclusive à polícia (recursão de 3ª ordem). E mais: durante o fluxo dessas coordenações recursivas, para não ser confundido como um dos roubadores, evitando que eventual suspeição recaísse sobre si mesma, a testemunha cuidou de distinguir-se dos ladrões, descrevendo uma versão que a configurava apenas como testemunha, e não como um farsante (recursão de 4ª ordem).[23]

As experiências vivenciadas no domínio observacional são, portanto, percebidas pelo observador como resultado de interações recorrentes entre pessoas, posto que resultam de uma história particular convivida entre sistemas autopoiéticos interatuantes, no âmbito de um acoplamento estrutural ontogênico. E são essas interações recorrentes, mediadas por coordenações de coordenações de fazeres, sentimentos e emoções, que constituem o fenômeno linguístico.

As palavras utilizadas para descrever o evento delitivo, depoimentos de testemunhas, laudos periciais, a sentença, são secundárias nesse processo, mesmo que não sejam triviais, porque funcionam como nodos das redes de conversações e, quando aceitas, passam a modular a deriva epigênica do organismo, na respectiva arquitetura dinâmica da unidade ecológica organismo-nicho. Afinal, todo substantivo oculta um verbo, que, evocando uma ação, necessariamente, nele embute uma emoção, se é que estamos falando de seres linguajeantes mamíferos dotados de sistema nervoso.

Essas considerações, efetivamente, conduzem ao entendimento de que, no QUADRO-I, não aparecem somente condutas isoladas, mas, sim, uma série de interações recorrentes, de ordem adaptacional (meio) e consensual (pessoas), cuja ocorrência culminou na condenação dos roubadores. Fica evidente que os encontros iniciais se deram entre o agente e seus comparsas, que, movidos pelo sentimento de furtar, ingressaram no terreno da vítima, de onde tentaram subtrair coisas, que estavam depositadas num barracão e apareceram para a testemunha, vítima, policiais, juízes e roubadores como configurações ou matrizes sensório-operativo-relacionais na linguagem.

 

2.2.2 Configuração das matrizes sensório-operativo-relacionais

A meu ver, o fato de a testemunha (vizinha da vítima) encontrar-se plenamente adaptada ao meio em que reside resultou num fator decisivo ao desfecho do caso em apreço, porque, se ela não conhecesse a vítima e estivesse residindo há pouco tempo nas adjacências do prédio violado, provavelmente, não teria prestado atenção, ou dado importância ao movimento dos roubadores no local, tampouco teria acionado a polícia, não por descaso, certamente, mas pela ausência de relação com essas pessoas.

O que aconteceu, portanto? Vimos suceder uma sequência positiva de interações recorrentes, entre a testemunha, vizinho, polícia, Estado-acusador; todas convertidas, pela Justiça criminal, em coordenações recursivas de fazeres, sentimentos e emoções (linguagem), que, como também sabemos, foram aterrissar nos autos de um processo-crime, instaurado com a finalidade de apurar a responsabilidade penal dos roubadores, assegurando-lhes o direito à ampla defesa e ao contraditório.

O curioso nesse processo é que essas descrições semânticas aparentam ganhar vida própria, passando, elas mesmas, a tornarem-se objeto do operar distintivo do observador, como se fora a expressão da experiência em si; entretanto, sabemos que a ocorrência das apontadas interações tivera lugar como um desencadeamento mútuo de mudanças de estado, segundo as respectivas determinações estruturais das pessoas envolvidas na situação examinada (MATURANA; VARELA, 1992, p. 206 et seq.).

No caso em apreço, esse fenômeno é facilmente perceptível, se nos dermos conta de que, no âmbito judicial, a primeira observação externa foi feita pelo juízo singular. O primeiro a operar, cognitivamente, em relação aos fatos historiados na ação penal. Assim, na condição de primeiro observador judicante, o magistrado tivera a oportunidade de distinguir as coordenações recursivas comportamentais consensuais, relevantes ao desfecho condenatório, associando-as a palavras, ou descrições semânticas (relato). Desse modo, sobreveio a sentença contra a qual se insurgiu o roubador.

No âmbito de sua competência, segundo descreve o QUADRO-II, o órgão colegiado do Tribunal de Justiça, em nenhum momento atuou no plano concreto da experiência delitiva dada na origem. Pelo contrário, o acórdão[24] revela, de forma solar, que as operações de distinção, registradas no seu bojo, são operações de distinção realizadas sobre operações de distinção da sentença, que, por sua vez, condensa operações de distinção de peritos, operações de distinção de agentes policiais, operações de distinção da testemunha e da vítima, operações de distinção dos próprios acusados.

Todas essas distinções de distinções consensuais, de distinções consensuais, que se deram num plano de coincidências, desejos e preferências, manifestam o fenômeno da recursão, num fluir histórico particular de coordenações de coordenações consensuais, de coordenações consensuais, decorrentes de interações recorrentes, cujas respectivas coordenações recursivas de fazeres, sentimentos e emoções, que aparecem nas operações de distinção do observador, conservam-se como dinâmicas cibernéticas num processo cíclico-linear conservador até que se dissolvam em algum momento. De todo modo: 

O fundamental, no caso do homem, é que o observador percebe que as descrições podem ser feitas tratando outras descrições como se fossem objetos ou elementos do domínio de interações. Ou seja, o próprio domínio linguístico passa a ser parte do meio de possíveis interações. Somente quando se produz essa reflexão linguística existe linguagem, o observador surge e os organismos participantes de um domínio linguístico passam a funcionar num domínio semântico. Do mesmo modo, é só quando isso acontece que o domínio semântico passa a ser parte do meio no qual os que nele operam conservam sua adaptação. (MATURANA; VARELA, 2004, p. 233, grifos no original)

 

2.2.3 O enfoque judicial aplicado ao caso

O QUADRO-I informa que o roubador coordenou sua defesa com base em dois argumentos: 1) o da inconsistência da prova material, que não teria resistido às evidências historiadas no auto de exibição e apreensão da res furtiva; no auto de entrega à vítima; no laudo pericial do local dos fatos; e, no de avaliação indireta; bem como à prova oral, colhida sob o crivo do contraditório; e, por fim, 2) o do erro de tipo, que também seguiu a mesma sorte do primeiro, nos termos da fundamentação judicial esboçada no QUADRO-II, cuja análise, neste ponto, nos interessa mais de perto.

Segundo propõe o professor Zaffaroni (2010, p. 413-414): erro de tipo não é mais que a falta de representação requerida pelo dolo. Quer dizer, quando o erro recai sobre elementos cujo conhecimento é imprescindível para formular o plano (finalidade típica) haverá erro de tipo.[25] Vemos aqui, portanto, uma noção de dolo associada à epistemologia da realidade transcendente alicerçada no psicologismo inerente à tradicional teoria do conhecimento como representação externa.

Por outro lado, Vives Antón (2011, p. 234 e 247) marcha no sentido oposto porque, para o jurista espanhol, a intenção criminosa, longe de ser subjetiva, é objetiva, porém sem qualquer conotação naturalística. Por esse prisma, a objetividade deriva da aplicação das regras sociais. “As atribuições de intenção descansam sobre hábitos regulares, nos quais estão inscritas. [...]. Existe, pois, uma intencionalidade externa, objetiva, uma prática social constitutiva do significado [...] na qual se apoiam as intenções do sujeito, e sem a qual não são, sequer, identificáveis como intenções”.  O dolo se dá, portanto, normativamente, como um compromisso de atuar.

Tudo indica, portanto, que essa parece ter sido a noção de intencionalidade aplicada pela Corte judicial paulista à situação concreta, apontada no Quadro – II, mesmo que inconscientemente, pois, para determinação do dolo, os juízes consideraram decisivos os seguintes fatores: a) o silêncio do apelante, no momento em que foi ouvido em juízo, em relação ao estado de abandono das coisas furtadas; b) a confissão do furto; c) o fato de o terreno encontrar-se cercado por muro alto, interrompido por portão social de ferro, o que denotava proteção aos bens particulares furtados. Desse modo, a prova necessária de que o agente sabia que as coisas furtadas eram alheias (elemento do tipo) e que, efetivamente, quis furtá-las (elemento volitivo), não passa pelo exame do estado mental do recorrente.

Sem embargo, o que vemos, de fato, são regras sociais (critérios conceituais, hábitos, costumes) e o contexto (vitrôs, muro, portão, propriedade, proteção), determinando, significativamente, a configuração da figura delitiva. O conjunto das circunstâncias indica que foram os fatores externos - e não psicológicos ou internos - que possibilitaram à Corte Judicial afirmar a existência de compromisso do apelante roubador com a prática do furto; e, assim, evidenciar o conhecer e o querer, conformadores da intenção criminosa.

Podemos ver, então, que o enfoque explicativo, adotado pelo observador judicial, muito se aproxima da concepção significativa da ação, concebida por Vives Antón. Aliás, parece mesmo confirmar suas conclusões. Não obstante, tudo leva a crer que as principais virtudes da metadogmática vives-antoniana consistem: a) em escancarar a insuficiência dos modelos dogmáticos que lhe antecedem (causalistas e finalistas); e, b) despertar os juristas para a existência de outras possibilidades explicativas, no campo das ciências criminais. O que, realmente, não é pouco - num espaço em que, se não bastasse dogmático, postula ser genuinamente normativo.

O grave problema explicativo, que pende de resolução nos domínios da ontologia normativa da ação vives-antoniana, é essa atitude de afirmar que “normas não existem”, “ações não existem”, porque não dispõem de um substrato ontológico, ao modo dos objetos naturais; enfim, que tais categorias são desprovidas de “ser”, somente pelo fato de não serem explicadas com base na razão teórica. “Sem dúvida, parece mais fácil falar em termos de um mundo de entes e processos que existiriam independentemente de nosso operar, no qual faríamos tudo o que fazemos, e jamais surgiria dificuldade alguma, desde que não perguntássemos como nosso sistema nervoso funciona no ato de conhecer” (DÁVILA; MATURANA, 2015b, p. 501).

 

2.2.4 Emocionalidade e determinismo estrutural 

Pois bem, quer seja o dolo proposto como movimento corporal (causal, fundado em processos psicológicos); como significado (constituído a partir de regras e práticas sociais); ou como caso genérico (suposto de fato) (Cf. BARBERÁ, 2011; VIVES ANTÓN, 2011; ZAFFARONI, 1998), as polimorfas teorias do crime têm diante de si o frequente desafio de negar, rechaçar e suplantar a dimensão emocional e o determinismo estrutural intrínsecos à arquitetura dinâmica dos seres antropoecológicos. Não o fazendo, terão de conviver com o benefício da dúvida no atual estado da arte.

Estritamente, nada que suceda no viver cotidiano humano, inclusive a intencionalidade, escapa ao domínio biológico, que é a própria condição de possibilidade de realização e conservação da autopoiese molecular. É óbvio, por exemplo, que ninguém anda dizendo por aí, no âmbito da tanatologia, que cadáveres agem com intenção ou dolo. Cadáver não atua. Somente o ser vivo tem condição de agir. Acontece que o viver e a ação do ser vivo, conquanto aquele seja condição de possibilidade desta, ocorrem em domínios disjuntos. A ação dá-se no espaço relacional (da conduta), enquanto o viver sucede no domínio molecular (da fisiologia).

Cientificamente falando, toda ação encerra uma reflexão sobre o fazer do agente. E isso tem a ver com a correlação que um observador multissensorial faz entre os dois domínios de existência humanos: o fisiológico – em cujo âmbito dá-se o viver – e o relacional – onde se verifica a conduta humana especificada por certa emoção, cuja configuração sensório-operativo-relacional aparece no metadomínio observacional como ação ou omissão.

Se o observador enxerga congruência entre a atuação e a emoção que a especifica - e tendo se efetivado uma interação - pode concluir pela existência de dolo ou intenção. Simples assim. Por outro lado, se notar incongruência entre a emoção e a conduta, mesmo ante uma interação ortogonal[26], pode simplesmente considerar o fato irrelevante ou concluir pela culpa, se o fator cautela importar ao desfecho da situação.

Definitivamente, a conduta humana não induz fenômeno fisiológico, mas sim relacional, já que surge da relação organismo-nicho, e não, única e isoladamente, do organismo. Ademais, o fato de uma ordem jurídica, no campo penal, imputar responsabilidade individual não implica que a ação ou omissão seja a base justificadora do castigo, pois não são raros os casos em que o comportamento da vítima induz à absolvição do réu.[27]

Assim sendo, conquanto a responsabilidade criminal seja, em regra, imputada ao desencadeador da interação ortogonal, tal não ocorrerá, se não sobrevier a experiência interacional desencadeada. Isso revela o motivo pelo qual nem toda interação humana reclama disciplinamento moral ou jurídico. Os encontros interacionais centrados na dinâmica emocional do respeito e da aceitação do outro (ou sociais propriamente ditos)[28], não reclamam intervenção negativa estatal ou comunitária, uma vez que confirmam a dinâmica básica do sistema ou subsistema social.

Interações baseadas no respeito mútuo são descritas, na linguagem maturaniana, como agonais (confirmatórias),[29] no sentido de que perturbações, desencadeadas pelo meio, não infirmam os estados dos sistemas perturbados; pelo contrário, confirmam-nos, na forma determinada em sua estrutura. De outra banda, encontros recorrentes que resultam na modificação dos estados ou destruição dos sistemas interatuantes são caracterizados como interações ortogonais (não-confirmatórias). É, portanto, a partir desse nível interacional, que a modulação jurídica ou moral faz sentido, com vistas a inibir excessos.

O ideal mesmo seria que todas as interações humanas confirmassem o sistema naquilo que importasse à realização e conservação de sua organização, estabelecida consensual e democraticamente, a despeito das espontâneas modificações que se dão na sua estrutura. Do mesmo modo, seria de todo conveniente que os sistemas selecionassem, a um só tempo, as perturbações do meio, bloqueando as interações instrutivas ou destrutivas, em consonância com o determinismo estrutural. Uma dinâmica como essa é o que se chamaria, de fato, de estado de normalidade.

O problema é que, no domínio das relações humanas, prenhes de contradições emocionais, esse processo não ocorre de maneira tão espontânea – decerto por conta desse déficit de congruência entre o fazer e o emocionar nos encontros interacionais. Na prática, o que se dá é que o excedente de possibilidades operacionais, decorrente da complexa variação do meio, torna o filtro interno do sistema perturbado[30] um mecanismo estrutural sempre carente de socorro externo. É nesse contexto que os sistemas morais e jurídicos fazem sentido, operando como comportas moduladoras do fluxo relacional humano, positivo ou negativo; e esse fato se torna muito mais claro quando questionamos o motivo pelo qual um ser humano necessita de direitos.

Na situação concreta, descrita no QUADRO-I, essa afirmação é ratificada sem qualquer embaraço. Em síntese, ao alegar erro relativamente ao estado de abandono dos vitrôs, o agente tentou sustentar que, em virtude do suposto abandono das coisas, uma interação ortogonal não teria sido desencadeada por ele, de modo a involucrar a vítima na situação incriminadora, já que as coisas retiradas do barracão não lhe pertenceriam, se abandonadas, efetivamente, estivessem. Ora, coisa abandonada não tem dono, e a ausência do senhorio, na relação com o roubador, inviabiliza o encontro ortogonal; logo, também, a tipicidade do crime, ainda que vestígios de ação remanesçam no apoderar-se dos objetos.

Vimos, porém, que as coisas pertenciam à vítima, conforme a prova dos autos. O que poderia ter ficado no plano da ação (como mera apoderação de coisas sem dono) passou, portanto, a configurar um encontro recursivo, especificado pela emoção de subtrair coisa alheia, sem violência (furto), no domínio da convivência, condição constitutiva de qualquer fenômeno jurídico. Dessa forma, além de corroborar o aspecto emocional, que permeia a interação, a situação concreta conduz, também, à afirmação da determinação estrutural do sistema jurídico, se levado em conta o fato de que a negação do animus furtandi (querer), pelo agente, em nada afetou o juízo de condenação da Corte de Apelação paulista.

 

3 Considerações Finais

Sabemos que a história não se reduz a uma sucessão linear de acontecimentos ou sequência de mudanças ao longo do tempo. Mesmo que não nos seja racionalmente prudente emitir juízo definitivo sobre evento pendente de desfecho, como é o caso do conflito bélico entre Rússia e Ucrânia a que me reporto no Diálogo Russo proposto na parte III deste trabalho, nada impede que o distingamos, desde uma mirada sistêmico-analógica[31], como um aspecto do modo de vida que cultivamos há mais de 3,5 mil anos[32].

A pontual revisão histórica que propusemos neste percurso reflexivo tende a mostrar que a história humana é intrinsecamente não linear, porque formada de progressos e retrocessos que acabam desencadeando transformações muitas vezes inesperadas. É certo que não há história ou evolução sem mudança; todavia, ao fim e ao cabo, o que conta não são as mudanças em si, mas sim o que se conserva no processo de transformação em que as mudanças ocorrem.

Estritamente, falamos de um fenômeno histórico “quando fazemos referência a um suceder recursivo de contínuas mudanças mirando em algo que se conserva”[33] (DÁVILA; MATURANA, 2019, tradução livre). E, neste sentido, o Diálogo Russo constitui uma ululante evidência de que a mesma psique dominante no séc. V a.C., que norteou o Diálogo Meliano entre Atenas e os colonos de Melos, na Era de Ouro ateniense, mantém-se, às inteiras, no III milênio da Era Cristã, com sofisticados adornos de hipocrisia e requintes de crueldade, certamente.

É incontestável que, nesse período de aproximadamente 2.500 anos, que medeia o ataque a ilha de Melos e a invasão do território ucraniano, houve progresso, sobretudo no campo armamentista. Na Atenas democrática, os humanos destruíam uns aos outros usando cavalos, flechas e espadas, mas hoje dispõem de aviões, mísseis, ogivas nucleares, armas químicas de destruição em massa; enfim, de um potencial de chantagem e ameaça infinitamente maior e mais aterrorizador que o de nossos ancestrais conquistadores, mesmo depois de dois trágicos conflitos bélicos mundiais.[34]

Tudo isso, a meu ver, além de configurar evidente retrocesso, constitui inelutável evidência da dinâmica recursiva e não linear da história do patriarcado europeu que nos enreda.[35] Em face dessas circunstâncias, sou também constrangido a admitir que, na realidade, o que a historiografia convencional relata, hoje, não é a História da Humanidade, com agás maiúsculos, mas sim a história particular dos povos conquistadores, “[...] que é complacente com os ganhadores e impiedosa com os perdedores” (ONFRAY, 2008, p. 11).

Com efeito, os relatos propostos pela cultura hegemônica são mesmo tão escandalosos que movem Onfray (2008, p. 13-14) a propor dois curiosos questionamentos: “Por que razão Platão nunca cita Demócrito em sua obra completa, ao passo que todo o seu trabalho pode ser lido como uma máquina de guerra lançada contra o materialismo? Como explicar que nunca se explore a informação dada por Diógenes Laércio que relata o desejo enfurecido [de Platão] destruir [...] todas as obras… justamente de Demócrito?”.

De fato, a relevância destas indagações para a presente reflexão recursiva não é trivial, porque, apesar do que se tem dito sobre as diferenças de ordem histórica e cultural entre clãs, gens, tribos, famílias, povos e suas correlativas maneiras de agir e pensar, realmente segue praticamente oculto ou mascarado o denominador comum a todos eles, que é, segundo Eisler (1987, p. 45, grifos no original): “... um modelo dominador de organização social: um sistema social em que a norma é a dominação masculina, a violência masculina e uma estrutura social hierárquica e autoritária”[36].

A um observador desatento, pode mesmo parecer exagerada a afirmação de que permanece tudo como dantes no quartel d’Abrantes[37]. Sem embargo, não é isso o que sugere, por exemplo, o jornalista russo Dmitri Muratov, prêmio Nobel da Paz de 2021, quando denuncia que, em seu país, “os poderosos promovem ativamente a ideia de guerra” (DMITRI..., 2021, texto digital). Ou, então, Silva (2014, p. 86, grifos nossos), ao propor, sob uma perspectiva pós-estruturalista, que “interpretações [...] não são mais do que a imposição de uma matriz de significação sobre uma matéria que, sem elas, não tem qualquer significado”.[38]

Ora, é evidente que os escombros da ilha de Creta, as ruínas de Çatal Hüyük são apenas a parte protuberante da transformação cultural desencadeada na Idade do Bronze pelos aqueus e consolidada pelos dórios no séc. XI a.C. Mas isso não significa que no séc. XXI a cultura patriarcal indo-europeia seja algo do passado. Pelo contrário, é nesse domínio relacional negacionista, centrado na apropriação, na competição, na luta, na agressão e dominação que seguimos imersos, a despeito dos elementos gilânicos[39] ou matrísticos[40] que suleiam[41] a dissidência, muitas vezes silenciada viva. Por conta disso, peço licença para concluir que Hermes, o tradutor dos deuses e seus covers não são senão ingredientes desse caldo cultural europeu colonizador.

O que importa, porém, é que não estamos condenados a interpretar, tal como propõe o Pensamento Hermenêutico e, em particular, a hermenêutica filosófica. Pelo contrário, mesmo que o queiramos, estamos impedidos de fazê-lo. É que os seres humanos, enquanto sistemas autopoiéticos moleculares fechados e determinados pelo estado de sua estrutura, simplesmente não dispõem de mecanismo operacional que lhes permita interpretar ou, mais precisamente, satisfazer a condição hermenêutica, captando a representação do meio, porque as interações linguísticas são intrinsecamente não informativas.

Na realidade, como diria Bateson (1978), quem diz que interpreta, mas ignora a impossibilidade de fazê-lo, incide num pegajoso erro epistemológico, ainda quando a exegese funcione bem circunstancialmente. Por outro lado, quem sabe que a atividade interpretativa é inconcebível, porém insiste em praticá-la, não erra, mente. Com efeito, quem erra não sabe que erra, a menos que esteja mentindo, pois seres humanos não dispõem de mecanismo operacional que lhes possibilite antecipar a validade ou invalidade de suas operações de distinção no conversar.  E isso não é um problema. É nossa condição de existência[42].

Vale frisar, por fim, que a aceitação da condição hermenêutica, por séculos, como aspecto de nosso viver cotidiano, notadamente nos campos da ciência e da filosofia, não se deu em função de suas virtualidades epistemológicas, mas sim por conta de outro erro epistemológico segundo o qual seres vivos configurariam sistemas orgânicos abertos. Enquanto prevaleceu oculto esse falso antecedente lógico, a atividade interpretativa pôde ser praticada sem remorso, porque quem erra, efetivamente, não sabe que está incidindo em uma ilusão ou equívoco.

A história está prenhe de situações desse tipo. Como vimos, por 1.300 anos, a humanidade aceitou, por exemplo, o geocentrismo do grego Cláudio Ptolomeu. E por afrontá-lo, o frade Giordano Bruno foi queimado vivo na fogueira da Santa Inquisição. Por razões semelhantes, o italiano Galileu Galilei amargou prisão domiciliar pelo resto da vida, para ser absolvido 359 anos depois de sua morte, sob o argumento de que “[...] ‘se mostrou mais perspicaz na interpretação da Escritura que seus adversários teólogos’” (VATICANO..., 2009, grifos nossos). O espírito bélico e imperialista que norteia as relações internacionais é só mais uma entre tantas outras evidências que timbram a cultura hegemônica desde suas raízes pastoris indo-europeias.

Sem embargo, apesar de ter me dado conta de que a interpretação funciona como um truque epistemológico tendente a mascarar desejos, ganas e preferências de quem dela faz uso, desde um suposto pano de fundo lógico-causal, impondo supostas verdades, reconheço que sua particular história não pode ser ignorada, a exemplo do que sucede com a palavra realidade. Por conta disso, assumo-a na conta de uma poderosa narrativa ou coerência operacional própria e apropriada da cultura patriarcal europeia, desde a epifania do deus Hermes na Grécia pré-homérica ocupada pelos aqueus.

Por outro lado, por aceitar que todo ser humano: a) ouve desde si; b) não pode especificar o que outro ouve; c) limita-se a desencadear um processo de escuta em quem o ouve; d) não dispõe de mecanismo neurofisiológico apto a distinguir no fluxo da experiência entre ilusão e percepção; e) não pode falar senão desde seu viver e explicá-lo com as coerências de seu próprio viver, aceito também que a palavra realidade evoca apenas uma proposição explicativa de matrizes sensório-operativo-relacionais que abstraímos de nosso viver cotidiano quando operamos sistêmica e analogicamente distinguindo tudo o que distinguimos na linguagem.

Com Dávila e Maturana (2021), assumo que “somos o problema, o caminho e solução”. Assim, se desejamos, sem hipocrisia, edificar um modo humano de viver e conviver centrado na democracia, na confiança, no respeito por si e pelo outro, na colaboração, na honestidade, na ética social e equidade, na reflexão e no conversar, a saída é o desapego ao que conservamos muita vez sem gostar. Se, todavia, nos agrada o cosmos que constituímos e conservamos em nosso devenir cultural nos últimos 3,5 milênios, talvez não faça sentido mesmo refletirmos sobre nossa atual e dominante maneira de pensar.

 

Reconhecimentos

Esta reflexão eclodiu em mim num certo momento da minha adolescência, quando uma professora me convidou a interpretar um texto. A perplexidade que me abateu naquela fatídica situação de aprendizagem foi tão dramática que segue acesa depois de quatro décadas. Felizmente, outro professor me ajudou a perceber que nada é um recurso ou uma oportunidade se não o desejamos. Desde então, comecei a me libertar daquele trauma juvenil. A cura veio-me logo que conheci e recebi a atenção e o carinho de Ximena Dávila e Humberto Maturana, em cuja sabedoria ancoro minha presente história. Reconheço, porém, que meu rumo intelectual poderia ter sido outro se não tivesse antes cruzado com a amizade do resiliente jurista e professor Paulo César Busato, que, ao lançar luzes sobre minhas cegueiras culturais, ajudou-me a eleger a rota que me levou à Escuela de Pensamiento del Sur del Mundo.  Se não bastara, nessa deriva cultural, o Dr. Busato também me brindou um amigo e raro exemplar de humanidade, o jurista e professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, tão gigante, generoso e humilde quanto o próprio, a quem especialmente dedico esse singelo esforço reflexivo desde o Sertão da Bahia. Outrossim, jamais poderia deixar de reconhecer o sacrifício, a compreensão e o apoio da minha família e de meus atuais e ex-colaboradores da firma G. Gomes dos Santos Advogados, que facilitam e ajudam a tornar o meu viver edificante e prazeroso. Por fim, manifesto meus sinceros agradecimentos à Profa. Dra. Joselí Maria da Silva pelo hercúleo esforço dedicado à revisão deste trabalho, bem como às oportunas sugestões do Me. Luiz Fernando Ribeiro de Sales, estimado aluno e colaborador, na esperança de que um singelo esforço reflexivo como este justifique a comoção expressada pelo Dr. Humberto Maturana ante o meu interesse por suas ideias.

 

 

Notas e Referências

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[1] Vid. Dávila; Maturana (2015b, p. 154-156).

[2] Pensamento convencional.

[3] Cf. parte I, nota 54.

[4] Cf. parte II, nota 38.

[5] Cf. Maturana (2006; 2008).

[6] Faço referência à ecologia tóxica de conceitos: intersubjetivo+subjetivo+objetivo = inter-sub-ob-jetivo.

[7] “Las palabras no tienen significados propios desde ellas y los significados no son entes abstractos que se transmiten o transfieren entre las personas en el conversar, sino que constituyen la coreografía cambiante del fluir de las coordinaciones de coordinaciones consensuales de sentires y haceres en la dinámica sensorial-operacional-relacional de la arquitectura dinámica de la relación ecológica organismo-nicho de los que lenguajean o conversan en su convivir. Esto es, la semántica -el significado de las palabras, las oraciones o los dichos- no ocurre en el sistema nervioso, en las palabras o en las relaciones entre ellas [la sintaxis], sino que ocurre en el fluir del convivir de las personas inmersas en el lenguajear y el conversar.” (DÁVILA; MATURANA, 2015b, p. 332; Cf. tb. MATURANA, 2008)

[8] Cuando decimos “coordinaciones conductuales consensuales” y “coordinación consensual de sentires, emociones y haceres”, la palabra “consensual” hace referencia a que las circunstancias relacionales en que ocurren las coordinaciones conductuales que el observador llama consensuales en el operar de los organismos que él observa interactuando recursivamente, han resultado como armonizaciones espontáneas de los sentires, emociones y haceres de un convivir recursivo, y no de acuerdos que han explicitado de antemano las coordinaciones conductuales que se van a vivir. Los acuerdos requieren el lenguajear, las conductas consensuales no. Estas últimas son una consecuencia espontánea de una trama epigénica de convivencia en interacciones recursivas. El vivir y convivir humano lenguajeante surgió y se conserva en esa manera de vivir consensual. (DÁVILA; MATURANA, 2015b, pp. 65 e 550, apunte 37; 2019)

[9] Lenguajear es una palabra con la que queremos destacar el hecho de que proponemos transformar al lenguaje en verbo pues sucede en un ocurrir y no es un ente u objeto, sino que una dinámica, un modo de convivir. (Id., 2015b, apunte 7, p. 543)

[10] Los autores usamos la palabra haceres para evocar todo lo que un observador ve que las personas hacemos en la multidimensionalidad de nuestra existencia. Es una palabra que en el fluir de nuestro lenguaje da un sentido más amplio que, por ejemplo, labores o quehaceres, que parecen dejar fuera comportamientos y conductas que podrían no tener finalidad. (Id., ibid., apunte 12, p. 545)

[11] La noción de arquitectura dinámica se refiere a la configuración cambiante de la realización del presente continuo del ocurrir de los procesos que distinguimos que suceden en cualquier parte del cosmos que surge cuando explicamos las coherencias de la realización de nuestro vivir con las coherencias de la realización de nuestro vivir. Es decir, todo lo que distinguimos como observadores que sucede en el cosmos que distinguimos que habitamos, ocurre en un ámbito de determinismo estructural como una dinámica de interacciones determinada en cada instante por las coherencias locales de los elementos participantes. Y todo ocurre como un suceder de autoensamblaje sin plan, codificación o intención alguna. Al hablar de la arquitectura dinámica de la unidad ecológica organismo-nicho nos referimos a una entidad operacional que evocamos, que no podemos describir, pero que opera de esa manera como la única manera en que puede operar. Si nos referimos a la arquitectura dinámica de una célula nos referimos de la misma manera al suceder de los procesos moleculares de su autopoiesis molecular en el presente cambiante continuo que en el devenir de su ocurrir constituye, lo que en nuestra mirada histórica integradora vemos en el operar de la célula como totalidad. (DÁVILA; MATURANA, 2015b, apunte 33, p. 549).

[12] “Objects, entities, notions, ideas, concepts etc., arise as coordinations of coordinations of doings, and do not exist otherwise. The meaning of the words, sentences, signs and symbols is not in the words, but in the flow of coordinations of doings that they coordinate”.

[13] “Since objects arise in each recursion in the flow of recursive consensual coordinations of doings, different forms of living arise as different domains of objects and begin to be conserved according to the flow of the emotioning of those living together in consensual coordinations of doings. When this happens a manner of living in recursive coordinations of sensorialities arises that is seen as a domain of shared objects that I call domain of interobjectivity because it is lived as a world of common objects as if these were independent entities".

[14] Cf. Spencer Brown (1972).

[15] “Objects arise in languaging, they do not exist by themselves, and they do not pre-exist to their arising..., and have the operational concreteness of our structural operation in the realisation [sic] of our living.  [...]. The different worlds [or entities] that we live as languaging beings, are different domains of inter-objectivity that [...], become part of the medium in which we exist in structural coupling. In this sense none of the objects or entities that arise in our domains of inter-objectivity, no matter how abstract they may seem to a naive observer, are ever trivial because they are part of the [ecology] niche in which we conserve our living.”

[16] Cf. Dávila et al. (2009); Maturana (2017).

[17] Alguns Estados da Federação brasileira adotam a aprendizagem filosófica no Ensino Fundamental II (6º ao 9º ano).

[18] Sobre o assunto, vid. aula-conferência proferida pelo professor Jorge Mpodozis (MPODOZIS, 2021). Cf. tb. Maturana e Mpodozis (1987).

[19] Brasil (1940): Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa. [...]. § 4º - A pena é de reclusão de dois a oito anos, e multa, se o crime é cometido: [...]; IV - mediante concurso de duas ou mais pessoas.

[20] Adaptação do relatório veiculado em São Paulo (2011).

[21] O resumo (ementa) oficial do acórdão  é o seguinte: “FURTO QUALIFICADO TENTADO — Quadro probató­rio que se mostra seguro e coeso para evidenciar materialidade e autoria — Erro de tipo — A res não poderia ser confundida com coisa abandonada, uma vez que o local em que se encontrava era guarnecido por muro e portão, numa clara evidência de que se tratava de propriedade particular — Sentença que bem analisou o quadro probatório, devendo ser mantida por seus próprios fundamentos, [...]”(Id., 2011 ).

[22] Neste trabalho, faço uso da noção de “domínio observacional” proposta por Urrestarazu (2011a, p. 307-308): “I use the term “observational domain.” Throughout this paper, the term “observational domain,” refers to any domain of perceived phenomena in which we, as human observers, can perform sensorial and operational experiences through interactions with the observable entities under consideration”.

[23] Num caso criminal investigado pelo autor deste estudo, na capital de São Paulo, durante sua história como investigador de polícia, o autor do crime fingiu-se o tempo todo ser apenas testemunha até o momento em que foi desmascarado.

[24] Sentença dos órgãos colegiados judiciais ou administrativos.

[25] Cf. Brasil (1940): “Art. 18 - Diz-se o crime: I - doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; II - culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou impe­rícia. Parágrafo único - Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente. [...]. Art. 20 - O erro sobre elemento constitutivo do tipo legal de crime exclui o dolo, mas permite a punição por crime culposo, se previsto em lei.” (grifos nossos).

[26] “An orthogonal encounter takes place, however, whenever people behave in ways that do not affirm the system but change its structure. The interaction is positioned, as it were, at a right angle to the dimensions participating in the creation and the maintenance of the system. The approach for an orthogonal encounter must be discovered through observation” (MATURANA; POERKSEN, 2011, II., 1., p. 2, grifos no original).

[27] Cf., por todos, Brasil (2012).

[28] Maturana (2002, p. 45) distingue na dinâmica relacional humana duas espécies de relação: sociais, que se fundam na disposição corporal da aceitação do outro, e não sociais, que implicam exigências.

[29] “A system can generally be specified as a network of relations. If people act within this network of relations, which constitutes The system, they have opted for a form of interaction that I call agonal: They act in a way that is in harmony with the established, traditional ways of behaviour of the system.” (MATURANA; POERKSEN, op. cit., loc. cit., grifos no original). 

[30] É o que Luhmann (1983, p. 45-46) denomina “complexidade”. Para Dávila e Maturana (2015b, p. 238): “La complejidad que el observador ve no es un aspecto del proceso histórico, sino que una expresión de sorpresa del observador ante lo impredecible del curso de la deriva natural en su momento de ocurrir”. Ou seja, ainda segundo os epistemólogos chilenos: “La complejidad no es una característica propia o intrínseca a la composición de un sistema o situación. La noción de complejidad hace referencia a la perplejidad que invade al observador que siente que no tiene cómo referirse a las coherencias operacionales que, él o ella, piensa que deberían constituir al sistema que distingue en el ámbito de determinismo estructural en el que lo distingue” (DÁVILA; MATURANA, op. cit., p. 311).

[31] Vid. parte I, nota 6.

[32] A ciência acaba de divulgar a datação de fósseis hominídeos descobertos há quase um século nas grutas de Sterkfontein, em Johannesburgo (África do Sul), com 3,4 e 3,6 milhões de anos. (GRANGER, 2022).

[33] “al hablar de historia nos referimos a un devenir de continuos cambios recursivos con la atención puesta en algo que se conserva”

[34] Primeira Guerra Mundial (1914-1918) e Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

[35] Cf. Dávila (2022).

[36] “... a dominator model of social organization: a social system in which male dominance, male violence, and a generally hierarchic and authoritarian social structure was the norm.”

[37] Sobre a origem da expressão, cf. https://super.abril.com.br/especiais/nao-marque-touca-a-origem-de-35-expressoes-populares/. Acesso: 18 mar. 2021.

[38] Desde um enfoque construtivista, Ávila (2006, p. 33-34, grifos no original) sustenta que “interpretar é construir a partir de algo, por isso significa reconstruir: a uma, porque utiliza como ponto de partida os texto normativos, que oferecem limites à construção de sentidos; a duas, porque manipula a linguagem, à qual são incorporados núcleos de sentidos, que são, por assim dizer, constituídos pelo uso, e preexistem ao processo interpretativo individual.”

[39] Vid. Eisler (2007, p. 165).

[40] Cf. Maturana; Verden-Zöller (2011).

[41] Cf. Freire (1992): Paulo Freire usou o verbo “sulear” chamando a atenção para a conotação ideológica do verbo “nortear”. Um ano antes o físico brasileiro Márcio D’Olne Campos aplicou o neologismo no texto “A Arte de sulear-se”. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sulear. Acesso em: 18 mar. 2021.

[42] Cf. parte I, nota 11.

 

Glossário*

Antropoecológico: Evoca a unidade organismo-ecológica de todo ser humano.

Arquitetura: Usamos a noção de arquitetura para fazer referência à disposição espacial dos componentes de uma unidade composta particular ou à forma como nos aparece um sistema composto quando o distinguimos como totalidade, mirando os respectivos componentes e a disposição entre si.

Arquitetura dinâmica: Configuração ou forma das coerências sensoriais, operacionais e relacionais que constituem e realizam a organização do ente ou objeto dinâmico.

Biologia-Cultural: É a compreensão de que a origem do humano, na história evolutiva de nossa linhagem, decorre do inevitável entrelaçamento do biológico com o cultural na realização do nosso viver.

Biocultural: Faz referência à unidade resultante do entrelaçamento dinâmico biológico-cultural do viver humano. O bio[lógico] indica a realização e conservação do viver como condições fundantes de todo o possível na existência humana; o cultural diz respeito ao curso que segue o viver, segundo o modo de vida particular cultivado nas redes de conversações.  (DÁVILA; MATURANA, 2008, p. 257-259, tradução livre).

Coerência operacional: O observador faz referência a uma coerência operacional quando distingue alguma regularidade ou componente que contribui recursivamente para configuração, conservação e realização da arquitetura dinâmica da unidade ecológica organismo-nicho, no evolver de sua epigênese no contínuo presente estrutural cambiante de seu viver-conviver cotidiano.

Coerências sensório-operativo-relacionais: Todos os processos ocorrem por meio da operação das estruturas dinâmicas envolvidas em sua realização, independentemente da natureza do domínio em que ocorrem.

Conversações: Resultado do entrelaçamento do linguajear e do emocionar, no qual acontecem todas as atividades humanas. Existimos no conversar e tudo o que fazemos como seres humanos se dá em conversações e redes de conversações.

Cultura: Rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações recursivas de fazeres e emoções entrelaçados (MATURANA; VERDEN-ZÖLLER, 2011).

Determinismo estrutural: A abstração básica do que nossa condição de existência implica como sistemas autopoiéticos moleculares, em que tudo o que nos ocorre ou que acontece conosco, dá-se como mudança determinada pelo estado de nossa estrutura orgânica. Os agentes externos desencadeiam mudanças estruturais, mas não especificam o que se passa internamente no sistema.

Distinção: Nossa diferenciação não é uma operação arbitrária, porque se refere ao que surge em nosso operar a nós mesmos, como organismos, em nosso nicho ecológico.

Emocionar, emocionares e emocionear: As duas primeiras palavras são usadas para nos referir ao ato de viver uma ou mais emoções. A última, usamos para fazer referência ao fluxo ou deslocamento de uma emoção à outra.

Emoções: Referem-se aos distintos modos de viver relacional, de distintas classes de condutas relacionais e de distintas formas de fluirmos no viver e conviver, na unidade ecológica organismo-nicho, definidas desde os distintivos sentires íntimos que os guiam e sustentam. Por outras palavras, são as diferentes classes de comportamento, os diversos domínios de ações nos quais estamos e nos movemos - eles e nós - em diferentes momentos.

Epigenia e ontogenia: O viver vive e convive num devir ontogênico (fluir histórico), num fluxo cambiante de interações recursivas. O termo devir epigênico, no domínio da Biologia-Cultural, faz referência a um suceder histórico recursivo ou, mais especificamente, ao fluxo de transformação do ser vivo, enquanto totalidade, desde a célula-mãe, em correspondência estrutural com a unidade ecológica organismo-nicho.

Epistemologia unitária: A noção de epistemologia unitária mostra que o conhecer, isto é, o fazer, é o fundamento unitário do processo cognitivo humano.

Estrutura: É o feitio do sistema, abrangendo os componentes e as relações que o constituem, como um caso particular de uma classe de sistema. A estrutura pode mudar, sem que o sistema desapareça; fenômeno não possível à organização.

Existência: Surge com a operação de distinção do observador; e o observador surge em sua distinção reflexiva, e encontra-se operando como observador no observar, quando, em seu viver e conviver cotidiano, encontra-se fazendo o observar que faz. O observador opera, então, como a origem do existir de tudo, inclusive de si mesmo em seu próprio observar.

Experiência: É o que o observador multissensorial distingue que lhe sucede." 

Fazer: Evoca um processo que vemos o que está sendo realizado por um animal, humano ou não, como uma dinâmica de configurações sensoriais que guia seus movimentos. A palavra fazer evoca tudo o que um observador vê que as pessoas fazem na multidimensionalidade de sua existência.

Fenômeno: Evoca a experiência que o observador distingue e constitui, enquanto opera na linguagem.

Fenômeno histórico: Processo de mudança no qual cada um dos estados sucessivos de um sistema surge como modificação de um estado anterior.

Fenomenologia: Conjunto de fenômenos associados às interações de uma classe de unidades.

Linguagem: O fenômeno da linguagem tem lugar quando um observador distingue, nas interações entre dois ou mais organismos, coordenações comportamentais consensuais recursivas. A linguagem surge, então, quando há recursão no âmbito das coordenações comportamentais dos organismos. As palavras são apenas modos de coordenação de ações, e não entes abstratos ou referências a entidades independentes.

Linguajear: Palavra que enfatiza a natureza processual e dinâmica da linguagem, como um fluir no modo de conviver.

Matriz: Noção que evoca tanto uma trama de relações, como um útero que contém e nutre. Assim, a matriz biológico-cultural evoca a trama de relações e o útero onde ocorrem o viver e o habitar humano.

Matriz sensório-operativo-relacional: Quando fazemos uma distinção qualquer, trazemos à existência, ao mesmo tempo e de maneira implícita, a matriz sensorial, operacional e relacional em que o distinguido (uma entidade, um processo, um objeto, uma relação) opera e faz sentido.

Nicho: Âmbito operativo-relacional que faz possível o viver de um ser vivo.

Nicho ecológico: É a parte do meio ambiente que envolve todas as dimensões e circunstâncias do modo de viver do organismo (materiais, psíquicas, fisiológicas) e que torna possível o viver deste.

Objeto: Os objetos surgem na linguagem como recursões de coordenações comportamentais consensuais, nas quais a recursão oculta as condutas ou fazeres do observador. Na gramática, os objetos aparecem como substantivos, como distinções estáticas de condutas.

Observador: O observador é um ser humano e surge com sua operação de distinção reflexiva de seu próprio operar no observar. O observador não preexiste à sua pró­pria distinção reflexiva.

Observar: Nada aparece no viver do observador por si mesmo. Tudo aquilo de que falamos surge no operar do observador, no observar, como resultado de seu operar como tal. O observador é um ser vivo, um ser humano que existe no linguajear e opera no observar: por isto, não há observar sem observador, e não há linguajear sem um ser linguajeante. Se o ser vivo humano morre, acaba-se (finda-se) o observar.

Ontogenia: História particular das transformações de uma unidade como resultado de uma história de interações, a partir de sua estrutura inicial.

Organismo: Um ser vivo em seu operar como totalidade.

Organização: A organização de um sistema é a forma invariável como as relações o constituem como unidade e definem sua identidade.

Psíquico: Refere-se à natureza abstrata de processos relacionais íntimos que não se podem descrever e cuja presença se evoca com imagens poéticas; tal como o mental, vem à existência na operação de distinção do observador, como a arquitetura dinâmica relacional da identidade individual-social (singulossocial) de um ser humano ou ser vivo.

Racional: Todo argumento que pretende ser racional é construído como um sistema de coerências sensoriais, operacionais e relacionais, definido a partir das propriedades de premissas básicas aceitas a priori, de modo que a aceitação ou não da validade de um argumento racional depende apenas de aceitarmos, ou não, as premissas básicas que o constituem.

Realidade imaginada: Propõe Harari (2017, p. 40), não é uma mentira, mas “algo em que todo mundo acredita e, enquanto essa crença partilhada persiste, a realidade imaginada exerce influência no mundo”.

Recursão: A recursão ocorre toda vez que uma operação se aplica sobre as consequências de sua aplicação. Dá-se na dinâmica relacional em que se entrelaçam um processo cíclico repetitivo e um processo linear. Assim, a cada novo ciclo se monta novo deslocamento do processo linear associado ao ciclo anterior.

Reflexionar: A reflexão é um ato na emoção em que nos desapegamos das certezas sobre nossos sentires e saberes e que nos perguntamos se, em verdade, sabemos o que dizemos que sabemos. A emoção que faz possível a reflexão é o amar, em respeito por si próprio, pois este é o único domínio operacional e relacional em que é possível não se temer desaparecer no ato de soltar as certezas sobre os próprios saberes e os próprios sentires.

Recursão reflexiva: Faz referência ao modo de dizer o novo, a partir das consequências do que foi dito antes, no fluxo da reflexão e do linguajear, num processo cibernético conservador cíclico-linear.

Sentimentos e sensorialidades: Tudo em nosso viver e conviver sucede como um fluxo de sensações. E, quando descrevemos o que quer que seja, falando do concreto ou do abstrato, o que realmente fazemos em tal momento, às vezes implicitamente, é tentar evocar, no âmbito sensorial de nossos interlocutores, sensações congruentes com as nossas, e, para isso, nos referimos aos nossos sentimentos íntimos, conquanto o façamos como se estivéssemos falando de entes que sentimos existirem em si mesmos como tais, com independência do que fazemos, mesmo sabendo que não é assim que as coisas funcionam.

Sentimentos íntimos: Falamos de dinâmicas internas do organismo, que guiam o fluxo de seus fazeres e de suas coordenações de ações em seu operar, na unidade ecológica organismo-nicho, em que realiza seu viver.

Singulossocial: Evoca a simultânea condição individual e social de todo ser humano.

Sistema autopoiético molecular: Fazemos referência ao fato de que a célula, como ser vivo mínimo, está constituída como uma rede fechada de produções moleculares, em que as moléculas, produzidas com suas interações, geram a mesma rede de produções moleculares que as produz e especificam sua extensão, constituindo seus bordes operacionais como uma unidade discreta.

Sistêmico: Falamos de sistemas quando nos referimos a conjun­tos de elementos interconectados, de modo que, se atuamos sobre um dos elementos, atuamos sobre todos.

Transcendência: O viver de todo ser vivo ocorre num espaço sensório-operativo-relacional, que transcende o domínio molecular, que o faz possível, porque ocorre, precisamente, no âmbito relacional ou condutual do nicho ecológico em que se realiza seu viver como organismo. Toda vez que surge um novo espaço operativo-relacional, desde uma distinção ou uma dinâmica de composição recursiva, em algum domínio de entes, surge, por sua vez, uma matriz sensório-operativo-relacional implícita, que constitui um universo, que define e contém tudo o que pode suceder com o ser vivo.

Unidade ecológica organismo-nicho: Surge na distinção do observador como a ocorrência do fluxo de um conjunto de acontecimentos disjuntos, que se entrelaçam em uma arquitetura dinâmica cambiante, como uma unidade histórica de processos correlacionados, que realizam o viver do organismo distinguido em seu nicho ecológico, em uma deriva evolutiva, que dura enquanto o viver do organismo se conserva. Por outras palavras, ao falarmos da unidade ecológica organismo-nicho, estamos nos referindo ao fato biológico de que todo ser vivo, em seu operar como organismo, existe, necessariamente, em um nicho ecológico multidimensional variável, que surge com ele e muda com ele na realização de sua epigênese.

* Distinções, noções e coerências sensório-operativo-relacionais abstraídas do meu viver-conviver cotidiano no âmbito reflexivo do Pensamento do Sul do Mundo, em especial nos domínios das biologias cultural e do conhecimento.

  

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