Paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica em partilha de bens, segundo STJ

20/09/2015

Por Redação - 20/09/2015

O Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento no Recurso Especial n. 1.128.539/RN em que abordou os diversos aspectos que a paternidade pode assumir, ressaltando a prevalência do aspecto socioafetivo sobre o biológico.

No caso em tela, o Recorrente propôs ação anulatória de partilha e medida cautelar inominada contra os herdeiros que deixaram de arrolá-lo como tal no inventário de seu pai, o que ocasionou a homologação da partilha sem que lhe fosse atribuído seu quinhão na herança. Em que pese o de cujus tê-lo registrado como filho na certidão de nascimento e haver vínculo socioafetivo entre eles, ambas as ações movidas foram extintas sem resolução de mérito, nas instâncias inferiores, tendo por fundamento a ilegitimidade ativa ad causam do Recorrente por inexistência de vínculo biológico, uma vez que o exame de DNA extrajudicial colacionado continha resultado negativo. Assim sendo, requereu a reforma da decisão a fim de figurar como herdeiro na sucessão do falecido, tendo em vista a comprovação dos aspectos registral e socioafetivo da paternidade, ainda que ausente o vínculo biológico entre eles.

A jurisprudência e a doutrina, no que tange ao direito de família e sucessório, têm reconhecido plenamente outras hipóteses de estabelecimento do vínculo parental distintas da vinculação genética, decorrentes da Constituição e do Código Civil, a exemplo da filiação socioafetiva. Cumpre salientar que o STJ possui reiterados precedentes em que expressamente manifesta a prevalência da paternidade socioafetiva sobre o aspecto biológico.

Conforme consta no corpo do Voto de Relatoria do Min. Marco Buzzi,

o registro de nascimento, fundado, como anteriormente afirmado, em livre manifestação de vontade, aliado à afetividade existente, não pode ser descartado frente a um exame de DNA negativo de paternidade biológica. [...] Com efeito, a mera divergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica, por si só, não descaracteriza o estado de filiação.

Diante disso, a Corte decidiu reformar a decisão anteriormente proferida e reconhecer a legitimidade ativa do Recorrente, com o consequente prosseguimento da ação anulatória de partilha e da medida cautelar no juízo de origem.

Confira abaixo a íntegra do Acórdão.


RECURSO ESPECIAL Nº 1.128.539 - RN (2009/0048999-7)

RECORRENTE: Z.M. de M.

RECORRIDO: N.R. de M.O. e Outros

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RELATÓRIO

O EXMO. SR. MINISTRO MARCO BUZZI (Relator): Cuida-se de recurso especial interposto por Z.M. de M., com fundamento no artigo 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal.

Na origem, o ora recorrente propôs medida cautelar inominada em face de N.R. de M.O. e outros, visando à indisponibilidade dos bens imóveis objeto do inventário de F.R. de M..

Na inicial da medida cautelar inominada, narrou o autor ser filho de F.R. de M., já falecido, destacando que no procedimento de arrolamento sumário, a inventariante, de má-fé, deixou de mencioná-lo como herdeiro, na tentativa de apoderar-se da herança, o que culminou na homologação da partilha, sem que lhe fosse atribuído o respectivo quinhão.

Pediu, assim, a concessão, em caráter liminar, da medida cautelar, a fim de "tornar indisponíveis os bens imóveis objeto do inventário de F.R. de M., sitos nesta cidade de Parnamirim" (fl. 11, e-STJ).

Devidamente citados, os réus apresentaram resposta na forma de contestação, arguindo, preliminarmente, carência de ação ante a inadequação da via eleita. No mérito, aduziram que o requerente, conforme certidões de nascimento, fora registrado em cidades e datas diferentes, sendo a primeira lavrada em 06 de fevereiro de 1981, na cidade de Parnamirim/RN, tendo como seus legítimos pais, J.R.B. e F.M.B., e a segunda, na qual constou seu nome como Z.M.B., elaborada em 14 de março de 1985, na cidade de Natal/RN, tendo como pais F.R. de M. e F.M.B., apresentando, assim, duplicidade de registro. Por fim, asseveraram não ser o autor herdeiro do falecido, impondo-se a extinção do feito ou, subsidiariamente, a improcedência da medida.

Em sentença (fls. 311-317, e-STJ), o magistrado singular, julgou antecipadamente a lide e extinguiu o feito, sem resolução de mérito, porquanto demonstrado que o autor da demanda não era descendente de F.R. de M., exsurgindo, assim, sua ilegitimidade ativa ad causam.

Esclarece-se que, anteriormente à propositura desta medida cautelar, o autor ajuizou ação anulatória de partilha, que tramita na 2ª Vara Cível da Comarca de Parnamirim sob o n. 124.01.000877-5, cuja decisão de primeira instância, tomada na mesma data em que proferida nesta medida cautelar, declarou extinto o feito sem resolução do mérito, por entender ser o autor parte ilegítima para a propositura da demanda.

Assim, tanto a ação anulatória de partilha como a presente medida cautelar foram extintas, em primeira instância, sem resolução de mérito, reconhecendo a ilegitimidade ativa ad causam do requerente.

Inconformado, o autor interpôs recursos de apelação contra as sentenças proferidas nos autos da ação de anulação de partilha (demanda principal) e na medida cautelar inominada, por si ajuizadas.

O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, simultaneamente julgou os referidos recursos e negou-lhes provimento, ao considerar que a certidão de nascimento não possui presunção absoluta, frente ao exame de DNA negativo da paternidade e, em razão disso, considerou o autor parte ilegítima para propor as mencionadas ações, nos termos da seguinte ementa (fl. 423, e-STJ):

DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÕES CÍVEIS EM AÇÃO E ANULAÇÃO PARTILHA E AÇÃO CAUTELAR INOMINADA. DEMANDANTE QUE NÃO É HERDEIRO. EXAME DE DNA. ILEGITIMIDADE AD CAUSAM CONSTATADA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (fl. 423, e-STJ)

Contra o mencionado acórdão, que julgou tanto a ação anulatória de partilha, quanto a medida cautelar inominada, o demandante interpôs recurso especial, com fulcro no artigo 105, inciso III, alínea "a", da Constituição Federal.

Nas razões do apelo extremo (fls. 432-442, e-STJ), aponta a existência de violação ao disposto no artigo 1.603 do Código Civil e ao artigo 227, § 6º, da Constituição Federal.

Sustenta, em síntese, a existência de prova incontroversa da filiação em relação ao Sr. F.R. de M., consistente na certidão de nascimento, na qual consta o nome deste como pai do recorrente e comunicante. Impugna, ainda, o exame de DNA realizado extrajudicialmente, aduzindo haver erro ou fraude no aludido exame. Por fim, aduz estarem equivocadas as decisões que extinguiram os processos, sem julgamento do mérito e consideraram o recorrente como parte ilegítima para a propositura da demanda originária e da medida cautelar.

Contrarrazões às fls. 446-455, e-STJ.

Admitido o processamento do recurso na origem (fls. 459-461, e-STJ), ascenderam os autos a esta Corte.

Parecer do Ministério Público Federal às fls. 403-405, e-STJ, opinando pelo parcial conhecimento e, nesta parte, pelo provimento do recurso, com retorno dos autos ao juízo de origem para o julgamento da ação anulatória de partilha, bem assim da medida cautelar inominada.

Decisão monocrática, da lavra deste signatário, à fl. 415, e-STJ, pelo não conhecimento do recurso especial, em razão da sua propositura fora do prazo previsto no art. 508 do CPC.

Interposto o agravo regimental (fls. 419-433, e-STJ) e demonstrada a suspensão do prazo no Tribunal de origem, reconsiderou-se a decisão agravada, tornando-a sem efeito, a fim de que as razões do recurso especial fossem submetidas à apreciação do órgão colegiado desta Quarta Turma.

É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.128.539 - RN (2009/0048999-7)

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EMENTA

RECURSO ESPECIAL - CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - MEDIDA CAUTELAR INOMINADA E AÇÃO ANULATÓRIA DE PARTILHA - FILIAÇÃO CONTESTADA PELOS IRMÃOS - EXAME DE DNA - RESULTADO NEGATIVO - ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM RECONHECIDA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS.

INSURGÊNCIA RECURSAL DO AUTOR.

REGISTRO DE NASCIMENTO – PRESUNÇÃO DE VERACIDADE -  PRETENSÃO DE DESCONSTITUIÇÃO DE PATERNIDADE PELOS CO-HERDEIROS - INADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - NECESSIDADE DE AÇÃO PRÓPRIA FUNDADA EM ERRO OU FRAUDE (ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL) – AFETO COMO PARADIGMA DAS RELAÇÕES FAMILIARES - FILIAÇÃO RECONHECIDA - RECURSO ESPECIAL CONHECIDO EM PARTE E, NA EXTENSÃO, PROVIDO.

Trata-se de medida cautelar inominada, proposta com o intuito de se determinar a indisponibilidade dos bens imóveis objeto do inventário de F.R. de M., tendo em vista a omissão na indicação do autor, como herdeiro, nos autos do procedimento de arrolamento. Processo extinto, sem o julgamento do mérito, ante o reconhecimento da ilegitimidade ativa. Provimento mantido em sede de apelação.

1. A alegada ofensa ao art. 227, § 6º, da Constituição Federal não merece ser discutida em sede de recurso especial, porquanto o exame de ofensa a dispositivo constitucional é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art. 102, inciso III, "a", da Constituição.

2. Nos termos do artigo 1.603 do Código Civil, "A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil." Assim, o estado de filiação se comprova por meio da certidão de nascimento devidamente registrada no Registro Civil, a qual, na hipótese em tela, evidencia a legitimidade ativa do recorrente, enquanto herdeiro do pai registral, para o ajuizamento da ação anulatória de partilha, assim como da medida cautelar inominada – que visa à determinação de indisponibilidade dos bens imóveis.

2.1 A simples divergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica não autoriza, por si só, a anulação do registro, o qual só poderia ser anulado, uma vez comprovado erro ou falsidade, em ação própria - destinada à desconstituição do registro.

2.2 Jurisprudência e doutrina consagram a possibilidade de reconhecimento da socioafetividade como relação de parentesco, tendo a Constituição e o Código Civil previsto outras hipóteses de estabelecimento do vínculo parental distintas da vinculação genética. Ademais, a filiação socioafetiva, a qual encontra respaldo no artigo 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, mas também "parentescos de outra origem", de modo a contemplar a socioafetividade.

2.3 As decisões proferidas pelas instâncias ordinárias, ao desconstituírem o registro de nascimento com base, exclusivamente, no exame de DNA, desconsideraram a nova principiologia, bem assim as regras decorrentes da eleição da afetividade como paradigma a nortear as relações familiares.

3. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, provido, a fim de reconhecer a legitimidade ativa do recorrente e em consequência, determinar o prosseguimento do feito na origem.

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VOTO

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O EXMO. SR. MINISTRO MARCO BUZZI (Relator): No mérito, o recurso merece prosperar, vale afirmar, no que tange à legitimidade ativa do ora recorrente para propositura da medida cautelar inominada e da ação anulatória de partilha, nos termos a seguir expostos:

1. Preliminarmente, é imprescindível ressaltar que os autos da ação anulatória de partilha supracitada encontram-se apensados a esta medida cautelar, cujos recursos de apelação interpostos pelo autor (na cautelar e na anulatória) foram julgados conjuntamente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, como se vê da decisão ora recorrida (fls. 419-428, e-STJ), por versarem a respeito da mesma matéria, qual seja, a ilegitimidade de parte para a propositura da ação e pela identidade de partes.

Portanto, embora autuada neste Superior Tribunal de Justiça tão somente a medida cautelar inominada, observa-se que o acórdão impugnado julgou tanto a apelação interposta nos autos da ação anulatória de partilha (2008.004230-1), quanto o apelo da medida cautelar (2008.00.4231-8), isto é, os dois recursos de apelação foram julgados simultaneamente, em um único acórdão, pela Corte de origem. Inclusive, consta do recurso especial que a insurgência se refere a ambos os recursos (fl. 432, e-STJ), logo, a decisão a ser proferida por este Tribunal refletirá nos autos da medida cautelar inominada e na ação anulatória de partilha.

Apenas com o intuito de evitar omissões, vale destacar que também seria adequado que cada um dos recursos de apelação fosse julgado individualmente, ainda que de forma idêntica em razão da identidade de matéria e de partes, caso em que o recorrente apresentaria um recurso especial em face de cada uma das decisões. No entanto, uma vez julgados simultaneamente os referidos recursos, havendo um único acórdão, cabível tão somente um recurso especial, cuja decisão desta Corte alcançará tanto a medida cautelar, quanto a ação anulatória de partilha, conforme, aliás, pretensão expressamente deduzida pelo próprio recorrente.

Feita essa breve digressão, passa-se à análise da controvérsia submetida a esta Corte Superior para julgamento, relacionada à existência de legitimidade ativa ad causam do requerente, registrado como filho do de cujus, para pleitear direitos afetos à sua condição de herdeiro.

2. Inicialmente, no que tange à alegada violação ao artigo 227, parágrafo 6º, da Constituição Federal, ressalta-se ser inviável a discussão em sede de recurso especial, porquanto o exame de ofensa a dispositivo constitucional é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal, conforme dispõe o art. 102, inciso III, "a", da Constituição.

Não é possível, portanto, conhecer do apelo em relação à contrariedade ao art. 227, § 6º, da Carta Magna.

3. Superada essa questão, ressalta-se que a temática debatida nas razões recursais reside no inconformismo do recorrente com a declaração incidental de ausência de vínculo de filiação, pelo juízo de primeira instância e confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte, na presente medida cautelar inominada, assim como na ação anulatória de partilha.

O acórdão impugnado manteve as sentenças que extinguiram os processos sem resolução do mérito, por entender que o recorrente é parte ilegítima para pleitear a indisponibilidade dos bens imóveis objeto do inventário de F.R. de M., porquanto o exame de DNA acostado aos autos demonstrou não existir vínculo de consanguinidade com o de cujus.

Inconformado, o insurgente aponta violação ao disposto no artigo 1.603 do Código Civil, tendo em vista a comprovação da paternidade registral, fundada na incontroversa livre manifestação de vontade do pai, além da paternidade socioafetiva, o que evidencia sua legitimidade para figurar no pólo ativo da demanda principal, bem assim da medida cautelar.

Razão assiste ao demandante, neste ponto.

Isso porque, nos termos do artigo apontado como malferido (art. 1.603 do Código Civil), “A filiação prova-se pela certidão do termo de nascimento registrada no Registro Civil."; infere-se, portanto, que o estado de filiação é aferível por meio da certidão de nascimento devidamente registrada no Registro Civil, a qual, na hipótese em tela, evidencia a legitimidade ativa do recorrente, enquanto herdeiro de F.R. de M. (pai registral), para o ajuizamento da ação anulatória de partilha, assim como da medida cautelar inominada – que visa à determinação de indisponibilidade dos bens imóveis.

Nesse contexto, alude-se ao disposto no artigo 1.604 do Diploma Civilista, segundo o qual "Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.”

O dispositivo legal determina, de maneira incontroversa, que a filiação deve ser provada pela certidão do termo de nascimento devidamente registrado, documento esse que goza de presunção de veracidade, somente podendo ser invalidado se constatado vício de vontade (erro ou falsidade).

Sobre o assunto, Maria Berenice Dias enfatiza:

Com o registro de nascimento constitui-se a paternidade registral (CC 1.603), que goza de presunção de veracidade (CC 1.604). Prestigia a lei o registro de nascimento como meio de prova da filiação. [...] O registro pode ser invalidado se houver erro ou falsidade (CC 1.604)". (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9.ed. São Paulo: RT, 2013. p. 373). [grifo no original]

Na hipótese em tela, a decisão impugnada buscou, em verdade, transformar a presente demanda (medida cautelar e, outrossim, a ação anulatória de partilha) em verdadeira anulatória de registro civil e, portanto, da paternidade, o que não se pode admitir, tendo em vista que a desconstituição do estado de filiação depende de ação própria (ou por meio de ação declaratória incidental - art. 325 do CPC) e a anulação do registro somente será admitida se provado erro ou falsidade, que não é o caso dos autos.

Saliente-se, por oportuno, que "a sistemática adotada pelo Código de Processo Civil define que cabe ao autor da ação definir os limites do pronunciamento judicial e, ao réu apresentar resposta ao pedido autoral; somente nos casos de reconvenção ou de ação declaratória incidental é que será alargado o julgamento da causa, desde que a nova pretensão tenha relação direita com a causa de pedir inicial e ambas as partes sejam legítimas." (REsp 1117217/RN, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/09/2010, DJe 20/09/2010)

Outrossim, a simples divergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica não autoriza, por si só, a anulação do registro, que, repise-se, só poderia ser anulado, uma vez comprovado erro ou falsidade, em ação própria - destinada à desconstituição do registro.

Nesse sentido, mencionam-se os seguintes julgados:

Direito civil. Família. Criança e Adolescente. Recurso especial.

Ação negatória de paternidade. Interesse maior da criança. Vício de consentimento não comprovado. Exame de DNA. Indeferimento.

Cerceamento de defesa. Ausência.

- Uma mera dúvida, curiosidade vil, desconfiança que certamente vem em detrimento da criança, pode bater às portas do Judiciário? Em processos que lidam com o direito de filiação, as diretrizes devem ser muito bem fixadas, para que não haja possibilidade de uma criança ser desamparada por um ser adulto que a ela não se ligou, verdadeiramente, pelos laços afetivos supostamente estabelecidos quando do reconhecimento da paternidade.

- O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando demonstrado vício de consentimento, isto é, para que haja possibilidade de anulação do registro de nascimento de menor cuja paternidade foi reconhecida, é necessária prova robusta no sentido de que o “pai registral” foi de fato, por exemplo, induzido a erro, ou ainda, que tenha sido coagido a tanto.

[...]

(REsp 1022763/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/12/2008, DJe 03/02/2009

RDDP vol. 73, p. 160)

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CIVIL E FAMÍLIA. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL.

AÇÃO ANULATÓRIA DE PATERNIDADE. VÍCIO DE VONTADE. FUNDAMENTO AUTÔNOMO E SUFICIENTE DO ACÓRDÃO RECORRIDO NÃO COMBATIDO NO APELO NOBRE. INAFASTÁVEL APLICAÇÃO, POR ANALOGIA, DA SÚMULA Nº 283 DO STF. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.

1. Ausente impugnação a fundamento suficiente para manter o acórdão recorrido, o recurso especial não merecia ser conhecido. Inteligência da Súmula nº 283 do STF, aplicável por analogia, ao recurso especial.

2. A jurisprudência desta egrégia Corte Superior já proclamou que a comprovação da ausência de vínculo genético por meio do exame de DNA não é motivo suficiente para amparar pretensão de anulação de registro de nascimento, exigindo-se prova robusta de que o pai registral foi induzido a erro ou coagido a registrar filho de outrem como seu, hipótese não caracterizada. Precedentes.

3. Agravo regimental não provido. (AgRg no REsp 1482906/PR, Rel. Ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16/06/2015, DJe 26/06/2015) [grifou-se]

Com efeito, o simples exame da DNA acostado aos autos pelos réus não é suficiente a infirmar a validade do registro de nascimento, tampouco desconstituir, incidentalmente, o estado de filiação nele consubstanciado, notadamente à luz da paternidade socioafetiva, temática abordada adiante. Saliente-se, a propósito, inexistirem, na hipótese dos autos, provas que pudessem demonstrar erro ou falsidade do registro, além de mera alegação dos recorridos.

Diversamente, há informação nos autos de que a ação de anulação de registro civil n. 4.507/95, que tramitou na 2ª Vara Cível da Comarca de Parnamirim/RN, ajuizada pela recorrida N.R. de M.O., por meio da qual pretendia afastar a filiação em apreço, foi julgada improcedente (fls. 28-33, e-STJ).

Como se vê, a ação própria intentada com vistas à desconstituição da paternidade ora questionada, ajuizada por um dos herdeiros, foi julgada improcedente, tendo transitado em julgado.

Partindo-se de tais premissas e, considerando ser pacífico o entendimento nesta Corte de que as condições da ação, dentre as quais a legitimidade para a causa, devem ser aferidas com base na teoria da asserção, vale dizer, à luz da narrativa constante da inicial, no caso, o registro de nascimento no qual se pauta o recorrente, impõe-se o provimento do apelo extremo (Precedentes: AgRg nos EmbExeMS 10.424/DF, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 24/06/2015; AgRg no AREsp 669.449/RO, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/06/2015; AgRg no AREsp 605.732/SP, QUARTA TURMA, julgado em 26/05/2015).

De fato, consoante destaca Marinoni "As condições da ação devem ser aferidas in status assertionis, isto é, à vista das afirmações do demandante, sem tomar em conta as provas produzidas no processo". (MARINONI, Luiz Guilherme. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2010. p. 260).

Desta forma, considerando que o cerne da discussão é a legitimidade ativa para causa – condição da ação – e que os argumentos apresentados pelo recorrente na inicial firmam-se no registro de nascimento por ele apresentado, merece reforma a decisão impugnada para afastar a ilegitimidade ad causam.

Efetivamente, não se mostra plausível que, no bojo de ação anulatória de partilha e de uma medida cautelar, fosse desconstituído o estado de filiação do recorrente, visto que tal pretensão demanda ação própria e a anulação do registro somente será admitida se provado erro ou falsidade, o que não é o caso dos autos. Repisa-se, inclusive, que fora proposta ação visando à desconstituição da paternidade ora questionada, a qual foi julgada improcedente, tendo tal decisão transitado em julgado.

Necessário salientar que as decisões proferidas pelas instâncias ordinárias, ao desconstituírem o registro de nascimento com base, exclusivamente, no exame de DNA, desconsideraram as regras decorrentes da eleição da afetividade como paradigma a nortear as relações familiares.

De fato, a jurisprudência e doutrina consagram a possibilidade de reconhecimento da socioafetividade como relação de parentesco, tendo a Constituição e o Código Civil previsto outras hipóteses de estabelecimento do vínculo parental distintas da vinculação genética. Ademais, a filiação socioafetiva, a qual encontra respaldo no artigo 227, § 6º, da CF/88, envolve não apenas a adoção, mas também "parentescos de outra origem", de modo a contemplar a socioafetividade.

Neste norte, o registro de nascimento, fundado, como anteriormente afirmado, em livre manifestação de vontade, aliado à afetividade existente, não pode ser descartado frente a um exame de DNA negativo de paternidade biológica.

Ao tratar da filiação socioafetiva, destaca Maria Berenice Dias:

O desenvolvimento da sociedade e as novas concepções da família emprestaram visibilidade ao afeto, quer na identificação dos vínculos familiares, quer para definir os elos de parentalidade. Passou-se a desprezar a verdade real quando se sobrepõe um vínculo de afetividade. (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 9.ed. São Paulo: RT, 2013. p. 412). [grifou-se]

Com efeito, a mera divergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica, por si só, não descaracteriza o estado de filiação.

A respeito do reconhecimento da paternidade socioafetiva no ordenamento jurídico, destacam-se precedentes desta Quarta Turma:

REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE VIA ESCRITURA PÚBLICA. INTENÇÃO LIVRE E CONSCIENTE. ASSENTO DE NASCIMENTO DE FILHO NÃO BIOLÓGICO. RETIFICAÇÃO PRETENDIDA POR FILHA DO DE CUJUS. ART. 1.604 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE VÍCIOS DE CONSENTIMENTO. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. ATO DE REGISTRO DA FILIAÇÃO. REVOGAÇÃO. DESCABIMENTO. ARTS. 1.609 E 1.610 DO CÓDIGO CIVIL. [...]

3. "O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil" (REsp n. 878.941-DF, Terceira Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 17.9.2007).

4. O termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob autêntica posse de estado de filho, com proteção em recentes reformas do direito contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral – portanto, jurídica –, conquanto respaldada pela livre e consciente intenção do reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de afetar o ato de registro da filiação, dar ensejo a sua revogação, por força do que dispõem os arts. 1.609 e 1.610 do Código Civil.

5. Recurso especial provido. (REsp 709.608/MS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 05/11/2009, DJe 23/11/2009) [grifou-se]

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[...] Não se pode olvidar que o STJ sedimentou o entendimento de que "em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. (REsp 1059214/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 16/02/2012, DJe 12/03/2012). Recurso especial desprovido. (REsp 1115428/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 27/08/2013, DJe 27/09/2013) [grifou-se]

Importante consignar, inclusive, a relevância conferida por esta Corte à paternidade socioafetiva, que, em reiteradas decisões, tem entendido que esta última deve prevalecer sobre a verdade biológica. A pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, quando em conflito com a paternidade socioafetiva.

Inclusive, no caso em tela, frisa-se que a ação própria visando à desconstituição da paternidade fora julgada improcedente, afastando a existência de erro ou falsidade, portanto, salvo novo enfoque, não há razão para se questionar o estado de filiação do recorrente.

Nesse contexto, portanto, deve ser reconhecido o termo de nascimento fundado na paternidade registral, lavrado e registrado em 1985, tendo em vista que a filiação está alicerçada na paternidade socioafetiva, considerando-se o recorrente para legítima para a propositura da ação.

A corroborar a conclusão acima exposta, extrai-se do parecer proferido pelo Ministério Público Federal:

[...] razão assiste à parte ora Recorrente, quanto à alegada legitimidade para ajuizar Ação Anulatória de Partilha e Medida Cautelar Inominada (visando obstar o perdimento dos bens inventariados), porquanto o termo de nascimento, que teve por supedâneo paternidade socioafetiva, denota filiação com pleno respaldo jurídico, pois fundada na livre e consciente manifestação de vontade. Outrossim, em que pese p Acórdão Recorrido expor que a certidão de nascimento não possui presunção absoluta para atestar a posse do estado de filho, mormente, frente ao exame de DNA, exsurge, in casu, que a dita Prova Pericial Genética fora realizada extrajudicialmente (sem a observância aos princípios jusconstitucionais do contraditória e da ampla defesa) e, sem a propositura da ação adequada para desconstituir o estado de filiação (v. g. Ação Anulatória e Paternidade, manejada que deve ser dentro do quadriênio legalmente previsto).  (fl. 404, e-STJ) [grifou-se]

Assim, restou caracterizada a ofensa ao disposto no art. 1.603 do Código Civil, ao passo que o recorrente comprovou o estado de filiação, portanto, é parte legítima para figurar no pólo ativo da medida cautelar, bem assim da ação anulatória de partilha.

4. Do exposto, CONHEÇO EM PARTE do presente recurso especial e, na extensão, DOU-LHE PROVIMENTO, a fim de anular o acórdão recorrido e a sentença, para reconhecer a legitimidade ativa do ora recorrente e, em consequência, determinar o prosseguimento, no juízo de origem, da medida cautelar, bem assim da ação anulatória de partilha.

É como voto.


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