PARTE E INTERESSE JURÍDICO: DOS PROCESSOS DESPOLARIZADOS À INTERPRETAÇÃO DO STJ  

06/02/2022

Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira

O presente ensaio pretende analisar a possibilidade de variação da localização das partes durante o andamento do processo, considerando o entendimento do Superior Tribunal de Justiça e a intepretação legal.

Neste contexto, importante afirmar que na Ação Popular, o papel e a legitimidade da Pessoa Jurídica de Direito Público podem variar, dependendo do interesse jurídico e político de seu representante, considerando que o interesse público está presumidamente no polo ativo, tanto que há remessa necessária em caso de insucesso da ação (art. 19, da Lei 4.717/65).

Aliás, foi bem o art. 238, do CPC/15, ao afirmar que a citação visa a convocação do réu, do executado ou do interessado “para integrar a relação processual”.

Percebe-se a existência de uma variabilidade de atuação da Pessoa Jurídica de Direito Público, dependendo de cada caso concreto e da análise da localização do interesse público. Na Ação Popular, por exemplo, o ente poderá abster-se de contestar, apresentar a irresignação ou atuar ao lado do autor, “desde que isso se afigure útil ao interesse público” (art. 6º, §3º, da Lei 4.717/65).

Nos processos multipolares, com diversidade na interpretação da localização do interesse público, não se pode analisar os elementos subjetivo e objeto com os olhos voltados à clássica e estável divisão do interesse como Autor X Réu. O que importa, no caso concreto, é a verificação da localização e do momento de apreciação do interesse público. No tema. Vale citar passagem do voto do Min. Napoleão Nunes Maia Filho (STJ -  AgReg no REsp 1.515.924 – 1ª Turma – J. em 16.06.2020):

“Primeiramente, cumpre asseverar que a literatura jurídica afirma, com arrimo no art. 17, §3o. da Lei 8.429/1992, a possibilidade de o Ente Público ingressar na ação de improbidade administrativa como litisconsorte passivo. Note-se, no entanto, que tal ingresso deve estar associado à existência de interesse público na defesa do ato dito como ímprobo”.

Portanto, uma coisa é a necessidade de citação da Pessoa Jurídica de Direito Público como ocorre, v.g., na Ação Popular, e outra, é sua efetiva atuação e a inexistência de estabilidade de sua localização nos polos da relação processual.

No mesmo sentido, transcreve-se passagem de outro julgado da Corte da Cidadania:

“2. A jurisprudência do STJ é no sentido de que o deslocamento de pessoa jurídica de Direito Público do polo passivo para o ativo na Ação Civil Pública é possível quando presente o interesse público, a juízo do representante legal ou do dirigente, nos moldes do art. 6º, § 3º, da Lei 4.717/1965, combinado com o art. 17, § 3º, da Lei de Improbidade Administrativa.” (REsp. 1.391.263/SP, 2ª Turma - Rel. Min. Herman Benjamin, DJe 07.11.2016).

Tem-se, pois, nesta demanda, uma cláusula aberta ligada à inexistência de estabilidade subjetiva e qualquer preclusão quanto ao momento procedimental a ser realizada a migração interpolar. Aliás, para quem quiser se aprofundar no tema e limitando o espaço aqui disponível, vale fazer a leitura de dois Acórdãos da 2a Turma do STJ (proferidos ainda vigência do CPC anterior): REsp 945238 / SP – Rel. Min. Herman Benjamin – J. em 09/12/2008 – DJe 20/04/2009 e AgRg no REsp 1012960/ PR – Rel. Min. Herman Benjamin – J. em 06/10/2009 – DJe 04/11/2009.

Com efeito, se no processo de conhecimento (procedimento comum) a estabilização subjetiva está ligada ao momento da propositura da demanda (arts. 108 e 109) e a apresentação da contestação do réu com eventual sucessão do polo passivo (art. 338 e 339, do CPC/15), na Ação Popular não há limite temporal para a ocorrência desta estabilidade, eis que tudo está pautado na discussão da localização do interesse público (e a variação durante o andamento do processo)[1].

Neste momento, a indagação a ser feita, inclusive com suporte nos regramentos do CPC atual, é se a migração interpolar é ser permitida em outras ações coletivas. 

Há algum tempo a doutrina vem defendendo um processo despolarizado, com a análise da legitimidade/interesse de acordo com cada ato a ser praticado. Assim, as posições de autor e réu não seriam analisadas no processo como um todo, mas de acordo com o momento e o ato a ser praticado, inclusive na fase de cumprimento de sentença com direcionamentos aos sujeitos não integrantes da relação processual originária. 

No tema, vale citar as lições de Antonio do Passo Cabral:

“Devemos ampliar a compreensão do interesse processual, conciliando com a abordagem proposta da legitimidade ad actum, autorizando uma apreensão dos filtros das condições da ação a partir de visão mais dinâmica da relação processual e voltada para cada um dos atos processuais.

Por isso, não podemos concordar com a idéia de que o interesse processual é “único e imutável”, somente podendo assumir um formato no curso do processo. Em nosso modesto entender, o interesse processual reflete a utilidade cambiante da tutela jurisdicional na vida dos litigantes, uma realidade constantemente sujeita a alterações às quais o processo deve apto a responder, facultando a atuação que o litigante repute como  a mais adequada para a satisfação de suas situações de vantagem”[2].

Seguindo este entendimento, em algumas situações específicas, o controle judicial da atuação dos sujeitos processuais deve ser feito de acordo com o tipo de participação no processo e de direcionamentos quanto as condutas a serem praticadas.

Aliás, o próprio CPC/15, ao alterar expressões existentes no sistema processual de 1973, parece caminhar neste sentido, permitindo que a análise da legitimidade e interesse seja variável e situacional. Enquanto o art. 4º, do CPC/73 trazia a ideia de vinculação da conduta das partes na relação processual (autor propor e réu contestar a ação), o art. 17, do CPC/15, consagra a expressão “postular em juízo”.

Qual a diferença interpretativa ao indicar a postulação em juízo? De repente alguém pode pensar que se tratou apenas de mudança redacional e sem consequência prática relevante. Contudo, é razoável afirmar que se trata de cláusula aberta para permitir a análise da legitimidade e interesse em várias postulações processuais e, consequentemente, de forma variável.

O tema tem sido cada vez mais importante na compreensão de processos multipolares, com diversos módulos de atuação e que dificilmente conseguiriam ser reduzidos ao formato bilateral Autor X Réu, como p.ex. nas ações coletivas, nos processos estruturais e nos incidentes de resolução de casos repetitivos.

Destarte, enquanto o litígio clássico é de formação bipolar e adversarial, algumas demandas discutem a existência de multipolaridade, com a possibilidade de mutação de posições na relação processual: diversos sujeitos, multipolaridade de interesses e necessidade de visualização situacional de sua localização (tempo, lugar, objeto e momento), inclusive no que respeita ao cumprimento das ordens judiciais. Como bem aponta Sérgio Cruz Arenhart:

“O processo estrutural deve assemelhar-se a uma ampla arena de debate, em que as várias posições e os vários interesses possam fazer-se ouvir e possam interferir na formação da solução jurisdicional. Se o Judiciário deve chamar para si a difícil tarefa de interferir em políticas públicas ou em questões complexas no plano econômico, social ou cultural, então é certo que o processo empregado para tanto deve servir como ambiente democrático de participação. Simulando o verdadeiro papel de um parlamento, constrói-se uma ferramenta adequada ao debate esperado, que legitima a atividade judicial”[3].

Nestes casos há a necessidade de se repensar os múltiplos interesses discutidos, que podem variar de acordo com o grupo, categoria, representação e momento procedimental. Imagine, por exemplo, um grande dano ambiental sendo judicializado por Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público, ou por Ação Popular promovida pelo cidadão. Os polos processuais estão estabilizados? Entendo que não, eis que em várias fases, até no cumprimento de sentença, é possível multipolarizar visando atender um determinado interesse discutido na demanda.

O assunto encontra assento em julgados do STJ, que reconhecem a necessidade de se repensar conceitos processuais para a correta compreensão do processo estrutural. No tema, vale citar passagem do acórdão REsp. 1.854.842 (Rel. Min. Nancy Andrighi – 3ª Turma – J. em 02.06.2020)[4]:

“7- Para a adequada resolução dos litígios estruturais, é preciso que a decisão de mérito seja construída em ambiente colaborativo e democrático, mediante a efetiva compreensão, participação e consideração dos fatos, argumentos, possibilidades e limitações do Estado em relação aos anseios da sociedade civil adequadamente representada no processo, por exemplo, pelos amici curiae e pela Defensoria Pública na função de custos vulnerabilis, permitindo-se que processos judiciais dessa natureza, que revelam as mais profundas mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos, sejam utilizados para a construção de caminhos, pontes e soluções que tencionem a resolução definitiva do conflito estrutural em sentido amplo. 8- Na hipótese, conquanto não haja, no Brasil, a cultura e o arcabouço jurídico adequado para lidar corretamente com as ações que demandam providências estruturantes e concertadas, não se pode negar a tutela jurisdicional minimamente adequada ao litígio de natureza estrutural, sendo inviável, em regra, que conflitos dessa magnitude social, política, jurídica e cultural, sejam resolvidos de modo liminar ou antecipado, sem exauriente instrução e sem participação coletiva, ao simples fundamento de que o Estado não reuniria as condições necessárias para a implementação de políticas públicas e ações destinadas a resolução, ou ao menos à minimização, dos danos decorrentes do acolhimento institucional de menores por período superior àquele estipulado pelo ECA. 9- Provido o recurso especial para anular o processo desde a citação e determinar que seja regularmente instruída e rejulgada a causa, está prejudicado o exame da alegada violação aos demais dispositivos legais do ECA indicados nas razões recursais”.

Ao analisar este julgado, Marcus Aurélio de Freitas Barros apresenta duas sugestões:

“Em termos gerais, poderiam ser elencadas duas sugestões: a) trabalhar a demanda como um problema estrutural, preocupando-se em fazer um adequado mapeamento do conflito e dos grupos mais diretamente atingidos, com foco nas causas do problema (causalidade estrutural); e, b) apostar em soluções negociadas e participativas, atuando o juiz, dentro da moldura normativa, como gestor de interesses dos grupos envolvidos, apostando em soluções flexíveis (decisões em cascata), num verdadeiro experimentalismo democrático na fase de implementação”[5].

Nestes casos, portanto, o interesse e a legitimidade devem ser analisados a cada ato e não de forma estática. A intervenção na qualidade de parte deve ser feita por ato e não pelo processo como um ato, o que inclui as atividades relacionadas ao cumprimento de sentença.

A multipolaridade e a migração interpolar encontram fundamento no CPC/15 e também no art. 5º, §2º, da Lei 7.347/85. Logo, é possível defender a admissão da migração interpolar em outras ações (especialmente nas ações coletivas e nos processos estruturais).

Caminhando para o encerramento deste breve ensaio, é importante mencionar passagem de Acórdão oriundo da 4ª Turma do STJ, onde restou consagrada a possibilidade de migração dos polos da relação processual em ação envolvendo o INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial):

“2. Nessa perspectiva, admite-se a chamada "migração interpolar" do INPI (litisconsórcio dinâmico), a exemplo do que ocorre na ação popular e na ação de improbidade, nas quais a pessoa jurídica de direito público ou de direito privado, cujo ato seja objeto de impugnação, pode abster-se de contestar o pedido ou atuar ao lado do autor, desde que isso se afigure útil ao interesse público, nos termos dos artigos 6º, § 3º, da Lei 4.717/65 e 17, § 3º, da Lei 8.429/92. 3. Na espécie, a autarquia, após citada para integrar a relação processual, apresentou contestação, suscitando a sua ilegitimidade passiva ad causam, requerendo intervenção no feito na qualidade de assistente especial e aderindo à tese defendida pela autora. Posteriormente, insurgiu-se contra a transação extrajudicial celebrada entre as sociedades empresárias (autora e segunda ré), opondo-se à extinção da ação de nulidade de registro, ao argumento da existência de dano ao interesse público. 4. Nesse quadro, configurou-se o deslocamento do INPI da posição inicial de corréu para o polo ativo da demanda — o que pode ser traduzido como um litisconsórcio ativo ulterior —, ressoando inequívoco que a transação extrajudicial, celebrada entre a autora originária e a segunda ré, não tem o condão de ensejar a extinção do processo em que remanesce parte legitimamente interessada no reconhecimento da nulidade do registro da marca. 5. Nada obstante, cumpre ressalvar o direito da autora originária — que, por óbvio, não pode ser obrigada a permanecer em juízo — de pleitear desistência na instância de primeiro grau, em consonância com o acordo que não produz efeitos em relação ao INPI. 6. Recurso especial não provido” . REsp 1817109 / RJ – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – 4ª Turma – J. em 23/02/2021 - DJe 25/03/2021).

Percebe-se, portanto, que há a necessidade de se repensar o conceito de estabilização subjetiva em demandas multipolares onde, em razão do objeto litigioso complexo e dinâmico, há a variação dos conceitos de interesse e legitimidade.

 

Notas e Referências

[1] No STJ, ver também: REsp 1.185.928/SP, Rel. Ministro Castro Meira – 2ª Turma, J. em 15/06/2010, DJe 28/06/2010; AgRg no REsp 1.162.049/SP, Rel. Ministro Napoleão Nunes Maia Filho – 1ª Turma , J. em 01/03/2016, DJe 11/03/2016.

[2] Despolarização do processo e “zonas de interesse”: sobre a migração entre os pólos da demanda. In Tutela jurisdicional coletiva. 2ª série. DIDIER JR, Fredie; MOUTA, José Henrique; MAZZEI, Rodrigo. Salvador: Editora Juspodvim, 2012, pp. 63 e 64.

[3] Processo multipolar, participação e representação de interesses concorrentes. In Processos estruturais. ARENHART, Sérgio e JOBIM, Marco Félix, 3ª edição. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1096.

[4] No tema: REsp 1.854.847 (J. 02.06.2020, DJe 04.06.2020); REsp 1.854.882 (J. 02.06.2020, DJe 04.06.2020); REsp 1.860.348 (J. 02.06.2020, DJe 04.06.2020).

[5] BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. O STJ e os processos coletivos estruturais: Do Resp 1.854.842?CE às políticas municipais de assistência social. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/o-stj-e-os-processos-coletivos-estruturais-do-resp-1-854-842-ce-as-politicas-municipais-de-assistencia-social. Acesso em 14.12.2021, às 10h00.

 

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