Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta
No último dia 02 de junho de 2020, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) produziu importante julgado que toca em dois temas sensíveis para o estudioso do direito na atualidade: o processo coletivo estrutural e o controle judicial de políticas públicas diante de disputas de altíssima complexidade e conflituosidade.[1]
O acórdão que se traz à baila, proferido pela Terceira Turma do STJ, no REsp n° 1.854.842/CE, relatora Min. Nancy Andrighi, julgado em 02.06.2020, DJe de 04.06.2020, merece o realce e a atenção devidos, pois toca de frente e de modo explícito no tormentoso problema dos litígios estruturais.
O objeto litigioso das 10 (dez) ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público do Ceará em face do Município de Fortaleza, reunidas para julgamento conjunto por conexão, pode parecer, para um leitor mais apressado ou menos avisado, até um tanto singelo, pois trata de um pedido de aplicação direta de uma norma-regra com uma cláusula de abertura para situações excepcionais.
O debate nas ações coletivas envolve a “simples” aplicação da atual redação do art. 19, §2°, do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é peremptório ao preceituar que a permanência de criança ou adolescente em programa de acolhimento institucional não poderá se prolongar por mais de 18 (dezoito) meses, ressalvados casos excepcionais de comprovada necessidade de superação desse teto, o que exige observância do interesse superior dos acolhidos e a devida fundamentação do juízo da infância e juventude.
Os pedidos deduzidos foram voltados para o encaminhamento das crianças e/ou adolescentes (o acórdão usa o termo menores, que não é recomendado, pois remete ao vetusto Código de Menores) para programa de acolhimento familiar, bem como reparação por danos morais pela institucionalização por período excessivo (superior ao teto legal).
Por detrás desse julgado, contudo, como foi percebido no julgamento, existe um grave problema de funcionamento da política pública de assistência social no Município de Fortaleza, que, indiscutivelmente, se estende à grande maioria dos municípios do Brasil.
Diante disso, é valioso colocar alguns pontos polêmicos do importante julgado em destaque, merecendo atenção uma compreensão mais profunda do problema estrutural e seus reflexos nas políticas públicas municipais de assistência social, bem como o exame do por vir, ou seja, de como o juízo de piso deverá conduzir os processos coletivos conexos diante do julgamento analisado, o que se fará a partir das próximas linhas.
1 O PROBLEMA ESTRUTURAL À LUZ DO SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL (SUAS)
A grande verdade é que a disputa judicial que serviu de base ao acórdão comentado evidencia uma falha estrutural no próprio funcionamento do Sistema Único de Assistência Social (Suas) no Município de Fortaleza, uma vez que inexiste programa de acolhimento familiar, além de faltar um trabalho coordenado dos envolvidos com todo o fluxo do acolhimento institucional, de modo a gerar a gravíssima naturalização da institucionalização excessiva, o que viola o direito básico à convivência familiar.
A constatação do problema não é difícil. O detalhe importante, contudo, é perceber que se trata de um problema estrutural que, para sua solução, exige a investigação do litígio à luz da regulação do Suas no Brasil. Trata-se, enfim, de um problema de estruturação da política de assistência social!
O primeiro ponto a observar é que, em termos de normatização jurídica, o caso concreto envolve, de um lado, o direito à convivência familiar e comunitária,[2] previsto nos arts. 19 a 24 do ECA.
A proteção integral de crianças e adolescentes supõe a compreensão que os laços familiares e comunitários são importantes bases para a estruturação da personalidade de pessoas em desenvolvimento. A convivência familiar é conceituada como um direito fundamental de toda pessoa humana de viver junto à família de origem, em ambiente de afeto e de cuidado mútuos, configurando-se como um direito vital quando se tratar de pessoas em formação (crianças e adolescentes).[3]
O grande detalhe é que referido direito, como tantos outros previstos pelo ECA, de outro lado, não se afirmam com a presença apenas da norma abstrata. Além da lei (ECA), se faz mister uma política de atendimento, com ações envolvidas no âmbito das políticas públicas de assistência social (art. 87, I e II, do ECA).
A própria Lei n° 12.010/2009, que aperfeiçoou o direito à convivência familiar e sua sistemática, enfatizou a necessidade de implementação de políticas públicas destinadas à orientação, apoio e promoção social da família de origem, restando claro que a prioridade é a manutenção do infante na família natural ou extensa, admitindo-se, somente se não for possível, a colocação em família substituta (art. 100, X, do ECA).
Inegável, ademais, os males da institucionalização por tempo prolongado e seus efeitos na (des)estruturação da personalidade do infante. A esse respeito, cumpre lembrar que, no Brasil, os acolhidos que excedem o tempo têm faixa etária entre 7 e 15 anos e a medida excepcional de segregação vem sendo imposta, muitas vezes, na contramão da medida mais desejável e que mais respeita o princípio da proteção integral, que é a reestruturação familiar.[4]
É preciso, portanto, entender como o Estado brasileiro se organizou para, através do Suas, garantir os serviços de acolhimento institucional e os serviços de família acolhedora. A assistência social no Brasil, principalmente depois do advento da Lei n° 12.435/2011, que institui o Sistema Único de Assistência Social (Suas), supera os males do assistencialismo e se afirma como política de Estado voltada à garantia do direito à proteção social das pessoas que dela necessitar.
Trata-se, portanto, de uma política institucionalizada, que possui uma forte racionalidade, uma lógica de planejamento. Além disso, a política é obrigatória e despersonalizada, ou seja, independe da vontade da pessoa do governante de plantão. Trata-se de política pública juridicamente vinculante!
O Suas é estabelecido como um sistema público não contributivo, fundado numa gestão descentralizada, compartilhada e participativa. Em relação aos seus serviços, a assistência social estrutura serviços de proteção social básica e de proteção social especial de média e alta complexidade. Os serviços de acolhimento, institucional e familiar, voltados para crianças e adolescentes, se localizam na proteção social de alta complexidade, que é prevista para os casos em que o indivíduo já se encontra sem referência familiar, ou mesmo necessita ser retirado do seu núcleo familiar.[5]
Existe, portanto, um sistema de proteção de direitos (Suas) e toda uma organização do Estado para a implementação de políticas públicas de assistência social, que alcança os serviços de proteção social especial de alta complexidade.
O caso concreto, contudo, evidencia uma grave falha na prestação estatal dos serviços de acolhimento, pois simplesmente, como é comum acontecer na grande maioria dos rincões do país, inexiste programa de acolhimento familiar e a institucionalização passa a ser regra, não existindo uma coordenação entre os atores da política e os atores judiciais (Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública), de modo que, cada um a seu tempo, agindo como ilhas, participam dos processos judiciais de acompanhamento dos acolhimentos sem muitas vezes perceber como seu trabalho impacta no funcionamento do sistema de proteção especial de alta complexidade.
O que o julgado revela, portanto, é a existência de um macroproblema que decorre de uma falha na estruturação do Suas, que, na imensa maioria dos Municípios, não se preocupa em pensar o problema do acolhimento institucional excessivo e estruturar famílias acolhedoras,[6] sendo importante lembrar que:
A marca registrada do acolhimento familiar é que a criança e o adolescente estarão sob os cuidados imediatos de uma família denominada família acolhedora, que é previamente cadastrada no respectivo programa. Trata-se de vocacionada função para a qual se exige preparo especial e desprendimento, com o intuito de oferecer o carinho e cuidados especiais do assistido. Nesta medida protetiva, a criança e o adolescente não são recebidos como filhos, até porque não o são, tendo em vista que a situação instalada é provisória, existente tão somente para que, após determinado período, passada a situação de risco e suprido o déficit familiar, possam aquelas pessoas retornar ao seu grupo familiar de origem. (Grifos dos autores).[7]
O julgado revela, portanto, a existência de um grave problema estrutural de difícil e complexa solução.[8] Na feliz expressão de Didier Jr, Zaneti Jr. e Oliveira: “Como quer que seja, o problema estrutural se configura a partir de um estado de coisas que necessita de reorganização (ou de reestruturação).[9]
A omissão quanto ao programa de acolhimento familiar e a atuação isolada dos envolvidos com o acolhimento institucional e o sistema de justiça geraram uma situação consolidada, um estado amplo de desconformidade, cuja consequência mais evidente é o claro e constante desrespeito do prazo legal de institucionalização dos infantes. O excesso de prazo de acolhimento institucional tornou-se algo naturalizado!
O problema estrutural (estado de desconformidade) se diferencia em face da causa do problema e de sua solução. O fato gerador do ilícito não é um ato isolado, mas sim o efetivo funcionamento de uma estrutura pública, sistema público ou política pública e a intervenção judicial, para uma solução adequada e construtiva, deve se pautar na necessidade de alcançar a ampla e positiva reestruturação do próprio funcionamento da política pública.[10] Exige-se, portanto, uma tutela de reestruturação!
A amplitude do problema foi percebida pela relatora do acórdão, como se vê:
20) Com isso se quer dizer que o litígio examinado neste recurso especial não deve dizer respeito apenas ao MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO CEARÁ, ao MUNICÍPIO DE FORTALEZA e à menor albergada por tempo superior ao máximo legal que consta da petição inicial, em razão do que se pretende a condenação do ente público a reparar os danos morais alegadamente por ela sofridos.
21) É preciso, a partir de processos dessa natureza, que revelam as mais profundas e duras mazelas sociais e as mais sombrias faces dos excluídos, que se pense, reflita e decida não apenas para este litígio individual, mas, sim, que se construam caminhos, pontes e soluções que tencionem resolver o problema do acolhimento por período acima do máximo legal de todos os menores de Fortaleza/CE, quiçá até mesmo fornecendo ao país um modelo eficiente de resolução desse sensível, importante e premente conflito.[11]
Percebe-se, portanto, que o problema estrutural é amplo, pois a efetiva solução do problema envolve, além da reestruturação da política pública no âmbito do Poder Executivo municipal, a revisão de todo o fluxo do acolhimento, o que depende de ações conjuntas de atores que atuam na retaguarda dos serviços e nos processos de acolhimento que tramitam no juízo da infância e juventude, tais como: Município, Estado (responsável pelo cofinanciamento da política), Ministério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário, entre outros, pois os tempos mortos no trâmite do processo nessas instituições, por exemplo, podem resultar no excesso de prazo de acolhimento institucional.
A solução a ser encontrada, portanto, deve partir de três premissas: a) a necessidade de que a solução observe as normas que regulam a política de assistência social, evitando decisões improvisadas, que desprestigiem a moldura normativa estabelecida no âmbito da democracia representativa; b) realização de um profícuo diálogo institucional com todos os órgãos que são partícipes da ampla garantia do direito à convivência familiar, encontrando soluções mais rentes à realidade dessas instituições e, portanto, exequíveis; c) garantir a participação de representantes de todos os grupos de interesses no processo, já que tem grupos mais diretamente atingidos pelo problema, tais como: as crianças e adolescentes acolhidos, suas famílias em processo de restauração de vínculos familiares, os gestores, as equipes técnicas e os trabalhadores da proteção social especial de alta complexidade, entidades do terceiro setor envolvidos, os que possuem interface com os programas de colocação em família substituta etc.
Exige-se, portanto, que se corporifique um verdadeiro processo coletivo estrutural!
4 SUGESTÕES PARA A DINÂMICA DO PROCESSO COLETIVO ESTRUTURAL: O POR VIR DO RESP 1.854.842/CE E OS DESAFIOS DO JUÍZO DE PISO
Outro ponto que merece aceso debate é a investigação do que o juízo da infância de juventude da comarca de Fortaleza/CE deve fazer quando tiver que, seguindo o acórdão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), viabilizar um processo coletivo estrutural que tem por objeto enfrentar as falhas estruturais na dinâmica dos acolhimentos, familiar e institucional, de crianças e adolescentes, no contexto do direito à convivência familiar.
Não se pode olvidar que a decisão, embora importante, limitou-se ao aspecto processual, anulando o processo desde a citação, tendo em vista a impossibilidade jurídica do julgamento liminar de improcedência e do julgamento antecipado de mérito, impondo um tratamento processual estrutural ao problema.
A dinâmica procedimental e a tutela de reestruturação ficarão, naturalmente, a cargo do juízo de piso. O que este deve fazer ao se deparar, na prática, com a necessidade de movimentar processo tão complexo?
Em termos gerais, poderiam ser elencadas duas sugestões: a) trabalhar a demanda como um problema estrutural, preocupando-se em fazer um adequado mapeamento do conflito e dos grupos mais diretamente atingidos, com foco nas causas do problema (causalidade estrutural); e, b) apostar em soluções negociadas e participativas, atuando o juiz, dentro da moldura normativa, como gestor de interesses dos grupos envolvidos, apostando em soluções flexíveis (decisões em cascata), num verdadeiro experimentalismo democrático na fase de implementação.
O mapeamento do conflito,[12] que pode ser feito na fase pré-processual (preferível) ou processual, é fundamental para se entender o problema concreto e os níveis que se exigem de estruturabilidade da política pública empiricamente verificada. Tal constatação vai impactar na dinâmica processual!
Em alguma medida, há características que são próprias dos litígios estruturais e que devem ser levadas em consideração. Na ementa do julgado ora analisado há referência de que as dez ações civis públicas reunidas por conexão “[...]revelam conflitos de natureza complexa, plurifatorial e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual”.[13]
De forma um pouco mais detalhada, tem-se que são características dos litígios coletivos estruturais: a) complexidade (causalidade complexa); b) multipolaridade (policentria); c) mutabilidade; d) caráter prospectivo; e, e) a necessidade de intervenção continuada. [14]
Como a perspectiva é resolver o problema complexo para o futuro, o objetivo do processo coletivo é alcançar uma primeira decisão que, a partir do exame das causas do problema, tendo em conta um contraditório ampliado e um diálogo institucional, reconheça o estado de desconformidade e aponte qual seria o estado de coisas almejado (ex.: o funcionamento de uma nova dinâmica da proteção social especial de alta complexidade, de modo que o prazo de acolhimento institucional, como regra, seja cumprido como determina o ECA). Além disso, a fim de que se estabeleça um modelo de experimentalismo democrático, com exame periódico e novas decisões (em cascata), deve ser definido um regime de transição até que se chegue no estado de coisas ideal.
Para seguir esse itinerário procedimental e conseguir êxito no alcance da necessária tutela de reestruturação da política pública, o caminho sugerido é o das soluções negociadas diretamente pelas partes ou mediadas pela autoridade judiciária, uma vez que a tendência de aprofundar o problema é grande, caso o Judiciário se arvore na condição de querer, de forma solipsista, na solidão do seu gabinete, determinar medidas rígidas e específicas para a reestruturação do Suas no âmbito municipal, uma vez que uma simples lembrança da teoria das capacidades institucionais é suficiente para revelar o risco que se corre com a simples substituição do executivo pelo judiciário.
A alternativa que se indica para reflexão, tendo em vista a dimensão do problema e os fatores, muitas vezes imponderáveis, que devem ser levados em consideração, já pode ser adotada na audiência de conciliação ou de mediação (art. 334, do CPC).
O que se propõe é o que se mire, inicialmente como um possível negócio processual (art. 190, CPC) ou, em último caso, como decisão provisória de urgência, a colocação do problema na arena pública e a criação de uma entidade de infraestrutura específica (EIE),[15] formada por representantes dos grupos atingidos, técnicos, gestores e representantes adequados do Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, entre outros,[16] para, a partir de um conhecimento mais profundo do problema, apresentar um plano de superação, que envolva, inclusive, um regime de transição.
Perceba-se que se trata de um acordo ou solução instrumental, não sendo nada mais do que uma microinstitucionalidade[17] que se cria para que sejam apresentadas soluções mais rentes à realidade e implementáveis, permitindo-se a intervenção continuada necessária para que o problema possa, progressivamente, ser solucionado tecnicamente.
Nem se diga que se trata de algo inédito ou sem qualquer teste de efetividade. Vale lembrar que no importante caso do direito a creches e pré-escola (ensino infantil) no Município de São Paulo, julgado pelo Tribunal de Justiça paulista (Apelação nº 0150735-64.2008.8.26.0002) foi determinado que fossem apresentados relatórios semestrais pelo Município para informar o atendimento de medidas voltadas, dentre outras, à criação de, no mínimo, 150.000 (cento e cinquenta mil) novas vagas em creches e pré-escolas para crianças de zero a cinco anos de idade.
Tais relatórios deveriam ser acessíveis à Coordenadoria da Infância e da Juventude do Judiciário, que ficou responsável por fornecer ao juízo, bimestralmente, informações sobre o cumprimento do julgado, além de articular com a sociedade civil e com outros órgãos do Tribunal, com a Defensoria Pública e com o Ministério Público, a forma de acompanhamento da execução da decisão.[18]
Essa microinstitucionalidade formada, por sua vez, permitiu uma dinâmica procedimental mais adequada e resolutiva, pois conseguiu, nos primeiros quatro anos, zerar as vagas de pré-escola e criar em torno de cem mil vagas de creches, estancando uma situação problemática que somente se aprofundava e anunciando uma boa perspectiva de dinâmica de implementação da decisão judicial.
O que se defende, portanto, é que diante da manifesta dificuldade de o Judiciário, por meio de decisões rígidas, reestruturar uma política pública, haja vista a falta de real capacidade institucional para lidar com decisões de políticas públicas, que se crie uma estrutura auxiliar para sugerir providências ou fiscalizar àquelas apresentadas a partir do município.
Mais do que isso, é possível defender também uma aposta na solução consensual do litígio, criando mecanismos de construção de consensos no âmbito de um conflito judicial coletivo já instalado, como verdadeiras entidades de infraestrutura específica, ou mesmo, se o caso exigir, utilizando-se da técnica de design de sistemas de resolução de disputas (DSD).[19]
A referência, ainda que rápida, ao DSD é para lembrar que será necessária alguma técnica para se desenhar, se for o caso, um sistema de resolução de disputas, que, segundo Faleck, requer: “[...](i) iniciativa; (ii) diagnóstico da situação conflituosa; (iii) definição acerca dos objetivos e variáveis intrínsecas ao sistema; (iv) construção do sistema; (v) implementação e avaliação”.[20]
Tal desenho de um sistema de resolução de conflitos, no caso concreto, pode ser interessante, pois, a princípio, serão necessários protocolos interinstitucionais, que regulem um fluxo coordenado dos processos de acolhimento, de modo que poderão existir dissensos entre os órgãos públicos envolvidos e suas limitações humanas e orçamentárias, uma vez que envolverá obrigações do próprio Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, que devem ser tratados a nível institucional.
Vê-se, portanto, que o julgado em comento impõe uma análise mais profunda da dinâmica processual que deverá ser empreendida pelo juízo da infância e juventude da comarca de Fortaleza competente para processar e julgar as demandas insculpidas em dez ações civis públicas conexas, que envolvem o problema estrutural das falhas nos programas de acolhimento de crianças e adolescentes.
5 CONCLUSÃO
Possível concluir, portanto, que o recente julgado do Superior Tribunal de Justiça (REsp n° 1.854.842/CE) merece atenta análise por envolver um problema estrutural complexo, que exige a reestruturação de parcela da política municipal de assistência social, no que toca aos serviços de proteção social especial de alta complexidade, além de verdadeiros protocolos interinstitucionais para definir um fluxo coordenado entre todos os envolvidos nos programas e processos judiciais de acolhimento.
O julgado teve o mérito de perceber que se tratava de litígio de natureza estrutural, bem como que o processo coletivo pode lidar com tais conflitos, ainda que envolva o controle de políticas públicas, exigindo-se, contudo, um processo judicial mais participativo e colaborativo.
Não responde, contudo, ao por vir: o que deverá ser feito pelo juízo de piso para alcançar resultados sociais satisfatórios na reestruturação da política pública? Como resposta a essa indagação, o trabalho sugere: a) o mapeamento do conflito e o conhecimento da política; b) a criação de uma entidade de infraestrutura específica para o acompanhamento e fiscalização das medidas estruturantes prolongadas no tempo; e, c) a criação, se for o caso, de um desenho de sistema de disputas, a fim de resolver eventuais divergências entre os poderes, instituições e sociedade, permitindo que, se necessário for, seja produzido um protocolo interinstitucional que dê conta de um fluxo adequado e institucionalizado para regular a dinâmica do acolhimento institucional e familiar, na perspectiva da prevalência do direito dos infantes à convivência familiar.
Notas e Referências
[1] Trata-se do segundo julgado da Corte Superior sobre o processo estrutural. O primeiro foi: STJ – Segunda Turma, REsp 1.173.412/SP, Rel. Min. Og Fernandes, j. de 17.09.2019, DJe de 20.09.2019.
[2] Trata-se de direito protegido constitucionalmente, como se vê do art. 227 da CF/88: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. (Grifos nossos).
[3] MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade. Direito fundamental à convivência familiar. In: MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (Coord.). Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 151-152.
[4] DOMINGOS, Sergio. A família como garantia fundamental ao pleno desenvolvimento da criança. In: Revista de Direito da Infância e da Juventude (DDIJ). Ano 1, vol. 1, jan-jul. de 2013, p. 258.
[5] ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069.90 comentado artigo por artigo. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 256.
[6] O Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora está inserido na Política Nacional de Assistência Social (PNAS, 2004), no Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (PNFC, 2006 ) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), alterado pela Lei 12.010/2009. Sua operacionalização está descrita nos documentos Orientações Técnicas: serviços de acolhimento para crianças e adolescentes (MDS, 2009) e Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais (MDS, 2009). (VALENTE, Jane. Acolhimento institucional: validando e atribuindo sentido às leis protetivas. In: Revista de Direito da Infância e da Juventude (DDIJ). Ano 2, vol. 4, jul./dez. de 2014, p. 290,
[7] ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do Adolescente: Lei n. 8.069.90 comentado artigo por artigo. 7 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 145.
[8] Na verdade, não se há de negar que o funcionamento inadequado das instituições totais, como as unidades de acolhimento institucional são campo fértil para litígios estruturais. No mesmo sentido: FISS, Owen. Two models of adjudication. In: DIDIER JR, Fredie; JORDÃO, Eduardo Ferreira (Coords.). Teoria do processo: panorama doutrinário mundial. Salvador: JusPodivm, 2008, p. 761.
[9] DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista de Processo (RePro), vol. 303, maio de 2020, p. 49.
[10] BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Dos litígios aos processos coletivos estruturais: novos horizontes para a tutela coletiva brasileira. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, p. 30.
[11] ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201901607463&dt_publicacao=04/06/2020.
[12] Segundo Soler (2014, p. 19): “Entiendo por mapeo al análisis de una situación de conflicto realizado por una persona que pretende intervenir en él. El mapeo incluye un conjunto de reflexiones, descripciones y reconstrucciones conforme a las cuales el operador puede diseñar un plan de acción que responda a las cuestiones de ¿qué hacer?, ¿por qué?, ¿para qué? y ¿cuándo haverlo? De esta manera, al dibujar el mapa del conflito el operador o analista (provisionalmente utilizaré los dos términos como sinónimos), puede empezar a conformar un itinerario para su intervención”.
[13] ww2.stj.jus.br/processo/revista/inteiroteor/?num_registro=201901607463&dt_publicacao=04/06/2020.
[14] BARROS, Marcus Aurélio de Freitas. Dos litígios aos processos coletivos estruturais: novos horizontes para a tutela coletiva brasileira. Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2020, p. 32-33.
[15] Para maiores informações, consultar: CABRAL, Antônio do Passo; ZANETI JR., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolution facilities e sua aplicabilidade no Brasil. In: Revista de Processo (RePro), São Paulo, v. 287, p. 445-483, jan. 2019; DIDIER JR, Fredie; ZANETI JR., Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. In: Revista de Processo (RePro), vol. 303, maio de 2020, p. 73.
[16] Perceba-se que será necessário, a princípio, promover a citação do Estado do Ceará, pois, além de ter responsabilidade compartilhada com a política de assistência social, muitos órgãos estaduais do sistema de justiça terão seu funcionamento impactado por uma eventual solução imposta ou negociada.
[17] LORENZETTI, Ricardo Luis. Justicia Colectiva. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2010, p. 186
[18] SANTOS, Heloísa Couto dos. Educação infantil – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo – Apelação nº 0150735-64-2008-8.26002 (caso creches) – Julgamento em 16 de dezembro de 2013. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; COSTA, Susana Henriques da (Coords.). O processo para a solução de conflitos de interesse público. Salvador: Editora Juspodvm, 2017, p.
[19] O DSD pode ser entendido como a organização deliberada e intencional de procedimentos ou mecanismos processuais, que interagem entre si, e, quando aplicáveis, de recursos materiais e humanos, para a construção de prevenção, gerenciamento e resolução de disputas”. (FALECK, Diego. Manual de design de sistema de disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 1).
[20] FALECK, Diego. Manual de design de sistema de disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 3.
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