Por Marlo Almeida Salvador – 26/04/2017
A Constituição do Brasil de 1988, sem prejuízo dos notáveis avanços que já conseguiu implementar, já sofreu inúmeras alterações mediante mais de cem emendas propostas e aprovadas pelo constituinte derivado[1], afora inúmeras propostas que se encontram em andamento nas casas legislativas.
Por evidente, pressupõe-se que as alterações até então efetivadas obedeceram ao devido processo legal (legislativo) para a implementação de sua alteração (formal), bem como se respeitou ao conteúdo substancial (controle de constitucionalidade material preventivo) para a implementação de qualquer modificação, incluindo aquelas inerentes à legislação infraconstitucional.
No processo constitucional brasileiro, o legislador desenvolveu mecanismos destinados ao controle dos atos normativos para verificar não somente a proteção dos direitos fundamentais, mas, sobretudo, a própria força normativa do texto constitucional[2], mediante os mecanismos de controle.
Não obstante estes mecanismos de controle de constitucionalidade, seja para efetivação dos direitos e garantias, seja para a limitação dos poderes jurídico e político, verifica-se que no campo da interpretação e compreensão dos princípios, a leitura da Constituição ainda padece de um grande déficit que pode ser traduzido a partir de uma polifonia de vozes inautênticas que busca atribuir um sentido à Constituição, com reflexos perniciosos na sua efetividade.
Sem embargo de outras críticas a serem feitas aos métodos empreendidos na leitura dos princípios no ordenamento jurídico brasileiro, é que alguns elementos teóricos podem ser verificados como óbices[3] para uma compreensão autênica dos princípios, com alicerce nos estudos desenvolvidos a partir de Lenio Streck, sobre teoria da decisão judicial.
E na linha das críticas desenvolvidas pelo autor brasileiro, uma das principais causas da crise instalada através de uma verdadeira epidemia principiológica foi a recepção equivocada de determinadas teorias jurídicas, cuja ascensão fora impulsionada no período do segundo pós guerra, dentre as quais, podemos mencionar a jurisprudência dos valores e a teoria da argumentação jurídica, que com uma introdução acrítica no ordenamento jurídico brasileiro ocasionaram uma verdadeira anarquia principiológica[4].
Longe de querer esgotar a presente questão, buscaremos neste espaço elencar alguns aspectos de influência que a teoria dos princípios e a jurisprudência dos valores vêm causando no ordenamento jurídico brasileiro e o perigo que reprsentam por serem originárias de contextos e ordenamentos jurídicos diversos e por terem, muitas vezes, aplicação alheia a maiores debates acadêmico e político.
No ambito da história do direito constitucional, após os fatos que sucederam na Alemanha a partir de 1933, restou demonstrado que não havia mais como identificar o direito exclusivamente com a lei, pois não haveria como desprezar certos princípios que, muito embora não se encontrassem explicitamente positivados na lei, impunham-se a todos aqueles de modo a compreender que o direito também poderia/deveria ser manifestado mediante a expressão de valores, dentre os quais figurava o primeiro plano de justiça[5].
Os movimentos que se iniciam a partir de tal contexto como forma de repudiar as meras técnicas de resultados científicos para o direito, serão fundamentais para as teorias jurídicas emergentes a partir de então, porquanto a propositura de soluções para todos estes problemas passava pela revisão do modelo de direito até então praticado e essa revisão implicava, inexoravelmente, novas perspectivas teórico-metodológicas[6].
Naquele contexto, buscando superar os impasses da legislação nacional socialista e romper com o positivismo legalista, a jurisprudência dos valores se vê obrigada a recorrer a alternativas metodológicas – muitas vezes se invocou um direito supralegal – capazes de evitar o formalismo que caracterizava a tradição jurídica alemã[7].
Assim, ao fundamentar suas decisões neste período de reconstrução do direito, o Tribunal Constitucional Alemão passou a estabelecer uma série de métodos interpretativos com vistas a superar os limites estritamente formais, a exemplo das cláusulas gerais e enunciados abertos, e assim construir argumentos lastreados em princípios[8] numa exegese para além do espólio normativo deixado pelo Terceiro Reich[9].
Daí a importância a qual a jurisprudência dos valores teve na construção do significado de princípio no ordenamento jurídico brasileiro, pois a partir da implementação e atuação do Tribunal Constitucional Alemão, a preocupação maior passou a ser com a resolução dos casos práticos, em manifesto repúdio às questões meramente abstratas.
Essa postura adotada pelo Tribunal, até mesmo como forma de resgatar o prestígio internacional da Alemanha após ser arrasada pela Segunda Grande Guerra, implicou numa verdadeira tomada de decisão extra legem e, em última análise, até contra legem como forma de legitimar suas decisões por intermédio de argumentações construídas com fundamento em princípios axiomáticos-materiais, a exemplo de cláusulas gerais, enunciados abertos e também de princípios[10].
Num segundo momento da jurisprudência dos valores, emergiu a pretensão de se estabelecer parâmetros de justificação, a partir de procedimentos, de não relativismo de valores através de mecanismos discricionários da atividade do tribunal, o que desembocou na ponderação, elemento fundamental para o significado do conceito de princípio no âmbito da teoria do direito[11].
Na tentativa, portanto, de aniquilar com a herança formalista dedutiva deixada pelos nazistas, o Tribunal Constitucional Alemão passou a implementar métodos de interpretação calcados nos princípios incidentes sobre os casos práticos.
Por evidente, sob uma pretensa justificativa de fazer justiça, o Tribunal passou a primar pelo preterimento da lógica formal normativa em detrimento de um direito supralegal.
E sob esta ótica, que no Brasil surgirão teóricos do denominado neoconstitucionalismo que buscarão tomar emprestado da jurisprudência dos valores, a tese fundante de que a Constituição é uma ordem concreta de valores, sendo o papel dos interpretes o de encontrar e revelar esses interesses ou valores[12].
No entanto, com a ascenção da Constituição de 1988 e no curso dos anos, vem se observando um grande deficit hermenûtico em relação à efetividade constitucional, já que no período pré-constituição o empirismo interpretativo, inspirado na jurisprudencia dos valores, buscava afastar a aplicação de uma legislação autoritária a partir de elementos práticos justamente por conta da ausência de um elemento moral normativo que sobreveio com a Constituição de 1988.
Segundo Lenio Streck, mesmo após mais de duas décadas de promulgação da Constituição do Brasil de 1988, considerando as peculiaridades do direito brasileiro, tem se verificado uma verdadeira multiplicação de pseudo teorias interpretativas, mormente aquelas concernente à ponderação de “valores” (sic) ou até mesmo criação ad hoc de princípios, o que certamente contribui para um verdadeiro esvaziamento do próprio texto constitucional[13] e, acrescentamos, da força normativa da Constituição.
Não obstante a necessidade de se observar o conceito de princípios dentro de uma teoria dos direitos fundamentais, Alexy menciona a importância de três objeções frequentemente levantadas à teoria dos princípios.
A primeira delas, sustenta que da hipótese de colisão de princípios um deles poderá ser declarado inválido, a segunda, afirma que existem princípios absolutos que não podem ser colocados em relação de preferência numa eventual colisão e, por fim, a terceira, que sustenta ser o conceito de princípio muito amplo e inútil, na medida em que representaria uma carta em branco para o preenchimento de qualquer interesse ad hoc (valores) num mecanismo retórico denominado ponderação[14].
O problema surge quando este caráter teleológico das normas como princípios extrapola a sensível fronteira de uma decisão objetivamente democrática, na medida em que acaba por se tornar um fator de justificação até mesmo de decisões autoritáras, ainda que com um bom disfarce retórico a título de fundamentação.
Deste modo, por certo que na busca pela “melhor ponderação”, as vezes qualquer ponderação, acaba sendo inevitável o “jogo valorativo” cuja validade originalmente incondicional dos princípios é usurpada por uma incontrolável relação de preferência, a qual não é limitada por nenhuma premissa que venha a estabelecer limites para os critérios de uma esperada escolha racional[15], deslocando a decisão final para a discricionariedade do julgador.
Daí a fértil abertura retórica para a imposição de moralismos ad hoc, o que se mostra manifestamente pernicioso para a democracia por intermédio da efetivadade da Constituição.
É por isso que a teoria dos princípios vem sofrendo duras críticas no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente naquelas dirigidas por Lenio Streck no que tange à ponderação e à recepção de forma equivocada e acrítica da jurisprudêncoa dos valores e da teoria da argumentação de Alexy.
Na visão de Lenio Streck, tal movimento faz com que se observe, na maior parte das decisões judiciais, a utilização destes argumentos para o exercício da mais ampla discricionariedade e o livre cometimento de ativismos, pois por mais paradoxal que possa parecer, a ponderação é um procedimento que busca resolver casos em abstrato, do qual, quando adequadamente realizada, emerge uma regra de direito fundamental que será aplicada mediante subsunção ao caso concreto[16].
A partir desta perspectiva, verifca-se que Alexy não conseguiu se livrar dos grilhões analitico dedutivos inerentes ao Círculo de Viena, na medida em que, com a sua pretensão de criar uma racionalidade ao sistema mediante o método da ponderação, ao final e ao cabo, acabou por se assumir um cultuador do método matemático e do dualismo “sujeito-objeto” inerente ao método analítico-dedutivo.
Portanto, a crítica que se faz à teoria da argumentação jurídica e a aplicação da ponderação, no Brasil, se deve à sua recepção equivocada e aplicação desmedida em sem critéiorios, o que acaba por causar uma verdadeira bolha principiológica a partir de uma equivocada ponderação de valores, sem qualquer critério e manifestamente contrária à uma leitura adequada dos princípios.
A grande resistência do autoritarismo dentro do Direito está em não aceitar nem reconhecer a existência de uma moral pública e democrática, prevista, no Brasil, no programa constitucional de 1988.
Programas similares são reconhecidos pelas constituições da Alemanha, Espanha, Portugal e Itália, com forte inspiração no pós-guerra de 1945.
Essa moral pública, escolhida pelo constituinte de 1988, é que pretendeu a convivência e a tolerância de uma diversidade moral (liberdade de religião, liberdade de pensamento, de consciência, pluralismo político, devido processo legal, etc.), justamente para que uma moral (privada) não queira prevalecer sobre a outra de forma autoritária, mormente quando essa moral ad hoc é rotulada de princípio pelo proprio julgador autoritário.
São esses parasitas morais, quando disfarçados de princípios, que ameaçam cotidianamente a democracia e a constituição, na medida em que enfraquecem a consistência do sistema constitucional e democrático deslegitimando o caráter democrático das decisões judiciais.
É nosso dever combater e denunciar esses parasistas, pois a cada nova “ponderação de valores”, a democraticidade da decisão judicial é usurpada, abrindo-se espaço para uma permanente aniquilação da própria constituição.
Notas e Referências:
[1] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 197-198: Para Paulo Bonavides, o Poder Constituinte derivado, pela sua própria natureza jurídica está contido num quadro de limitações explicitas e implícitas decorrentes da Constituição, a cujos princípios se sujeita, em seu exercício, o órgão revisor, porquanto mediante Limitações explícitas ou expressas, formalmente postas na Constituição, lhe conferem estabilidade ou tolhem a quebra de princípios básicos, cuja permanência ou preservação se busca assegurar, retirando-os do alcance do poder constituinte derivado.
[2] Neste sentido: HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991.: O autor afirma que todas as diretrizes racionais estabelecidas e positivadas na Constituição devem ter conexão com a cultura e identidade do povo, pois a mola de propulsão e efetividade da constituição decorre do amadurecimento histórico do povo, o qual cria a constituição a partir de um contexto de necessidade histórica, donde decorre sua maior rigidez
[3] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: Limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013. p. 113.: “[...] o ativismo norte americano, juntamente com a jurisprudência dos valores e a ponderação alexyana, é uma das três recepções teóricas equivocadas que ocorreram no Brasil. Ou seja, o direito brasileiro revelou-se como um campo fértil para a proliferação de posicionamentos derivados de outras culturas jurídicas. Para além disso, esta recepção ocorreu de modo acrítico e equivocado, provocando, inclusive, mixagens entre estas teorias.”
[4] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 60-61: Embora o termo neoconstitucionalismo possa nos levar a equívocos, segundo advertiu Lenio Streck, é possível afirmar que na linha do que desenvolvido pela sua influência, o caminho percorrido acabou por desembocar na “jurisprudência da valoração” com suas derivações axiologistas, requentada, entretanto, por elementos analítico-conceituais oriundos da ponderação e que embora tenha representado salutar importância para a consolidação da força normativa da Constituição na Europa Continental, no Brasil, acabou por incentivar/institucionalizar uma recepção acrítica da jurisprudência dos valores, da teoria da argumentação de Robert Alexy (que cunhou o procedimento da ponderação com instrumento pretensamente racionalizador da decisão judicial) e do ativismo judicial norte-americano.
[5] PERELMAN, Chain. Lógica jurídica. Trad. Verginia K. Pupi. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 95.
[6] DE OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o conceito de princípio: A hermenêutica e a indecisão do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 58.
[7] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 113.
[8] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 113.
[9] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 113: “Na verdade, a jurisprudência dos valores é o movimento impulsionado a partir da atividade exercida pelo tribunal constitucional que alça o protagonismo judicial no cenário alemão, cujo objetivo era romper com o modelo jurídico vigente à época do nazismo e, paralelamente, legitimar as decisões tomadas com base na Constituição outorgada, em 1949, pelos aliados”
[10] DE OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o conceito de princípio: A hermenêutica e a indecisão do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 60.
[11] DE OLIVEIRA, Rafael Tomaz. Decisão Judicial e o conceito de princípio: A hermenêutica e a indecisão do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p. 60.
[12] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 72.
[13] Garantismo, hermenêutica e (neo)constitucionalismo: Um debate com Luigi Ferrajoli e outros. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 60-62.
[14] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. 2. ed. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 109-110.
[15] BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Sobre a justificação e a aplicação de normas jurídicas: Análise das críticas de Klaus Günther e Jürgen Habermas à teoria dos princípios de Robert Alexy. In Revista de informação legislativa. Brasília: Senado federal, Subsecretaria de edições técnicas, ano 43, julho-seembro de 2005, n. 171. p. 84.
[16] STRECK, Lenio. O que é isto – decido conforme minha consciência?. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. p. 50-52
. . Marlo Almeida Salvador é advogado especializado em Direito Constitucional e graduado pela Universidade do Vale do Itajai – UNIVALI. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Le Jour ni l’Heure 1790 : Jérémias Mittendorf, né à a fin du XVIe s., connu à Ypres entre 1616 et 1647, Le Martyre de saint Pierre de Vérone, 1629, dét., livre ensanglanté, Palais des Beaux-Arts de Lille, Nord, samedi 23 novembre 2013, 14:14:10 // Foto de: Renaud Camus // Sem alterações
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